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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

No Chile, emerge uma esquerda sem medo

Surpresa nas eleições municipais: além da abstenção altíssima, e da derrota da ambígua presidente Bachelet, uma frente de organizações autonomistas vence na terceira maior cidade — e pode disputar a presidência
Domingo, 23 de outubro, foi dia de eleições municipais no Chile. A imprensa e os ativistas locais destacam três grandes fatos, nas análises preliminares dos resultados. Primeiro, os altíssimos índices de abstenção, reflexo da decantada crise de legitimidade do sistema político e dos partidos no país, reforçada por recentes escândalos envolvendo financiamento ilícito de campanhas. Segundo, a derrota da coalizão, supostamente de centro-esquerda, da presidente Michelle Bachelet, cujo governo tem se enredado cada vez mais em seus próprios limites e recuos com relação à agenda de reformas com que se elegeu.
Domingo, 23 de outubro, foi dia de eleições municipais no Chile. A imprensa e os ativistas locais destacam três grandes fatos, nas análises preliminares dos resultados.
Primeiro, os altíssimos índices de abstenção, reflexo da decantada crise de legitimidade do sistema político e dos partidos no país, reforçada por recentes escândalos envolvendo financiamento ilícito de campanhas. Segundo, a derrota da coalizão, supostamente de centro-esquerda, da presidente Michelle Bachelet, cujo governo tem se enredado cada vez mais em seus próprios limites e recuos com relação à agenda de reformas com que se elegeu. Em terceiro lugar, a vitória, para prefeito de Valparaíso, da “candidatura cidadã” do advogado Jorge Sharp, de 31 anos, construída de forma ampla e aberta por um novo campo de forças da política chilena, formado sobretudo a partir do potente movimento estudantil que atingiu seu auge em 2011, confrontando os pilares do modelo político e econômico neoliberal implantado no país. Também houve vitória de outras candidaturas externas ao “duopólio” formado pela direita tradicional e por um centro-esquerda convertido, em grande parte, ao programa e método neoliberal-oligárquico. A eleição de Sharp na terceira maior cidade do país (ainda que muito menor do que Santiago), foi certamente a mais significativa.
A crise de legitimidade da política e o aumento de abstenções têm abalado sobretudo o “centro-esquerda” integrado ao sistema neoliberal chileno. Talvez porque seu projeto histórico define-se pela promessa de produzir mudança social por meio da ordem estabelecida. A descrença na capacidade mudancista do sistema e na sua perna esquerda têm se mostrado, assim, como duas faces de uma mesma moeda – um fenômento que guarda semelhanças com o Brasil e a Espanha, ainda que de formas variadas.
A crise dessa esquerda e desse projeto de mudança social não é sinônimo, porém, de inviabilidade de qualquer esquerda e horizonte transformador emancipatório. A vitória de Sharp é mais um caso em que um projeto de inequívoco antagonismo com o neoliberalismo ganha vitalidade a partir de novas forças políticas que emergem a quente da rebelião social, inseridas na renovação de seus métodos, formas e linguagens.
O novo prefeito foi escolhido candidato a partir de “primárias cidadãs” que aconteceram também em diversas outras cidades do Chile, construídas por ativistas independentes e organizações políticas como o Movimiento Autonomista (da qual ele faz parte), Revolución Democrática, Izquierda Libertaria, Nueva Democracia, Movimiento de Pobladores Ukamau e Partido Humanista, além de coletivos locais. Vitorioso nas primárias com vantagem de apenas 28 votos sobre o segundo lugar, o arquiteto Daniel Morales, Sharp chegou à Prefeitura com 54% dos votos válidos, mais de 30 pontos percentuais à frente de cada uma das duas candidaturas das coalizões que há 26 anos comandam a política chilena.


Interessante observar seus grandes paralelos com a experiência das “confluências municipalistas”, na Espanha. Assim como em Barcelona e Madri, as “candidaturas cidadãs” no Chile não resultaram de meras coalizões entre organizações, mas de plataformas amplas que, juntas, foram capazes de produzir um todo muito maior do que a soma das partes, pois aberto à participação social protagonista. A unidade aberta como método para que as maiorias sociais, excluídas do poder, convertam-se em maiorias políticas.
Unidade não é identidade. Há diversidade de visões estratégicas, táticas, composição social e estilos políticos entre as forças citadas antes, que vão tecendo um novo bloco histórico e embrião de frente amplio no Chile. Esse processo de emergência não tem sido imune a grandes discussões, embates, rupturas, reconfigurações, como aquela que teve lugar há poucos meses na Izquierda Autónoma (IA). Jorge Sharp e Gabriel Boric, ex-líder estudantil, militante fundador e principal figura pública da IA, eleito deputado independente em 2013, lideraram o “racha” de quase metade da organização, rumo à fundação do novo Movimiento Autonomista.
Apesar dessa divisão e de algumas divergências barulhentas pela imprensa e redes sociais à época, os dois lados envolvidos explicitavam seu desejo de seguir colaborando na constituição de um novo campo político no Chile. Ontem à noite, a Izquierda Autónoma e suas lideranças manifestaram publicamente suas congratulações à vitória de Sharp, em tom esperançoso. Tanto Movimiento Autonomistacomo Izquierda Autónoma estão entre as forças que procuram articular, para o ano que vem, uma candidatura presidencial única, escolhida mediante primárias abertas, do campo de forças emergentes da política chilena, antineoliberais e fora do “duopólio”.
Gabriel Boric e Giorgio Jackson, outro ex-líder estudantil eleito Deputado em 2013, estão entre as lideranças políticas com maior índice de aprovação popular no país, conforme as pesquisas de opinião. Não obstante as diferenças táticas e de estilo – a Revolución Democrática de Jackson manifestou apoio crítico à presidente Michelle Bachelet no segundo turno em 2013, e apenas recentemente abandonou os dois cargos políticos que detinha no ministério da Educação –, têm procurado atuar juntos nos últimos anos. São figuras importantes na conformação desse possível frente amplio, junto a outras como Cristian Cuevas, ex-líder sindical e ex-militante do Partido Comunista.
A generosidade e amplitude na busca por unidade têm sido a tônica entre as organizações emergentes. Não se trata de unidade em torno ao mero rótulo de esquerda, reduzido a um simulacro de dimensão simbólica quando esvaziado de antagonismo com o neoliberalismo e o sistema político oligárquico carcomido. Não se vislumbra unidade, pois, com os velhos partidos da Concertación da “esquerda” social-liberal hoje liderada por Michelle Bachelet sob um novo nome (“Nueva Mayoría”). Porém, procura-se gerar fissuras no interior do campo governista, buscando-se seduzir setores, lideranças e militantes em conflito com sua inércia conservadora, e que têm pesadelos ante a possibilidade de o ex-Presidente Ricardo Lagos voltar a ser candidato desse bloco. Ao invés do sectarismo, das demarcações estéreis, a vocação das organizações e lideranças empenhadas na construção embrionária do Frente Amplio tem sido a de somar e multiplicar forças para construir uma alternativa de poder para o país.
O processo de emergência política em curso no Chile pode inspirar o Brasil – ainda que as distâncias sociais, políticas e institucionais entre os dois países inviabilizem intentos de cópias mecânicas de experiências. Não obstante essas diferenças, a unidade entre forças combativas, a ousadia no intento de articular um projeto de maiorias para o país e a construção criativa de processos de primárias e campanhas abertas à participação cidadã têm muito a nos inspirar. As organizações brasileiras seguirão escolhendo e construindo suas candidaturas mediante disputas sectárias e autocentradas? Ou se abrirão à inundação recriadora da multidão emergente que mostrou sua cara em Junho de 2013 e no aquecimento das lutas (ocupações secundaristas, sem-teto, mulheres, greves) que, até aqui, não encontraram uma via política nacional para a qual canalizar sua energia mudancista?

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