Presidente da Associação Nacional dos Praças e membro do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública, Elisandro Lotin defende que o primeiro
passo para combater a violência é garantir os direitos dos policiais
Abusos da polícia não são um desvio de função da corporação – muito
pelo contrário. Desde a sua origem, o sistema de segurança pública no
Brasil existe para servir ao Estado e não à sociedade.
É o que defende
Elisandro Lotin, cabo da Polícia Militar de Santa Catarina: “Nós temos
um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de uma lógica
econômica. A polícia tem por função manter o controle social de 95% da
população, que está fora de qualquer discussão político-econômica,
quando necessário, com a utilização da violência. A grande questão é que o policial não se dá conta de que faz parte desse 95% de excluídos”.
Lotin é presidente da Anaspra (Associação Nacional dos Praças),
membro da diretoria Aprasc (Associação dos Praças de Santa Catarina), do
Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública) e do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública. Pelo Código Penal Militar, ele não poderia sequer
dar a entrevista a seguir. “Já fui preso várias vezes. Os policiais são
subcidadãos, não podemos nem falar. Mas cada vez mais, nosso pessoal
questiona e se mobiliza contra isso”.
Para ele, defender os direitos dos policiais é o primeiro passo para
combater a violência cometida pela instituição e repensar um novo modelo
de segurança pública: “Se o policial é aviltado em seus direitos mais
básicos enquanto trabalhador, ele vai respeitar os direitos dos outros?”
Revista Brasileiros – A polícia do Brasil é uma das que mais
matam e que mais morrem no mundo. A quem serve o sistema de segurança
pública no Brasil?
Elisandro Lotin - Em sua origem, o sistema de
segurança pública do Brasil serve a um pequeno grupo de pessoas,
detentoras do poder político e econômico. Desde as origens das
instituições de segurança pública, quando a polícia caçava escravos,
mantinha os pobres afastados e isso não mudou muito. Foi assim no
passado e é assim hoje, o desafio é mudar esta lógica e fazer da polícia
uma instituição para proteger o cidadão.
A violência da polícia no Brasil pode ser considerada um desvio ou é justamente essa a finalidade dela?
Nós temos um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de
uma lógica econômica. Ela é uma polícia montada e treinada nessa lógica
econômica e política, naturalmente tem por função manter o controle
social de 95% da população que está fora de qualquer discussão, e é
obrigada a ficar nos seus espaços, não pode agir. A polícia tem que
manter essas pessoas controladas a qualquer custo, quando necessário com
a utilização da violência.
O senhor defende que o policial é vítima e não algoz da violência. Por quê?
O policial também faz parte desses 95% de pessoas que precisam ser
controladas. O policial não faz parte da elite, da classe dominante.
Acontece que no treinamento do dia a dia, e através de regras e
legislações que tiram dele a cidadania, ele avalia que está fora – mas
não está. Não é só dentro dos quartéis. O Estado brasileiro é um Estado
militarizado. Não é só a polícia, que está na linha de frente, um órgão
de coerção. O Judiciário é assim, o Ministério Público é assim. O Estado
gira em torno de manter 95% da sociedade sob controle, todos os órgãos
estão a serviço disso.
E qual o papel da formação do policial nesse contexto de violência?
Temos dois modelos de policiamento no mundo, que se destacam nos
países ocidentais. O policiamento inglês, um modelo de policiamento
comunitário, de proximidade, de bairro, onde a polícia está próxima do
cidadão. Alguns estados dos EUA, Inglaterra, Japão desenvolvem esse
modelo. O outro é o modelo francês, que é da polícia do Estado. No
Brasil temos o modelo francês, que é de Estado, e dominado pelo poder
econômico. A formação do policial vai nessa lógica, formá-lo para
defender o Estado e o poder econômico – não a sociedade. Não só do
policial, mas de todos os segmentos que deveriam estar protegendo a
sociedade e não estão. Na formação do policial você passa por uma
ideologização, tem que ver naquela outra pessoa, naqueles 95%, um
inimigo do Estado – como tal, vai criar conflito. A grande questão é que
o policial não se dá conta de que faz parte desse 95% por conta dessa
ideologização ao longo de sua formação e do desempenho de suas
atividades.
E como se dá essa ideologização?
Eu defendo que nas academias de polícia os cursos sejam dados por
pessoas capacitadas em suas áreas. Alguns estados têm evoluído para um
novo modelo de policial, mas outros estão muito atrasados. Por exemplo,
no curso de direitos humanos. É preciso falar mais sobre isso, sobre
cidadania, formação da sociedade, antropologia, sociologia, psicologia.
Claro, se partirmos da lógica de que é preciso controlar a ferro e fogo
os policiais, e o modelo impõe isso, matérias militares se fazem
necessárias, afinal o objetivo delas é justamente controlar e adestrar.
Sim, somos adestrados, os manuais militares dizem isso, que somos
adestrados e não treinados. Ainda temos uma lógica em algumas
instituições em que um policial, no adestramento, vai para o mato e
fica uma semana apanhando, passando fome, sem dormir, sendo humilhado e
até torturado física e psicologicamente. Me pergunto: que benefício este
tipo de treinamento trará para a segurança pública? Que tipo de
policial queremos? Em que momento esse tipo de treinamento vai ajudar a
termos uma segurança pública cidadã, que defenda e prime pelos direitos
humanos, por exemplo? A própria palavra, adestramento, já é uma afronta.
É óbvio que neste contexto o policial vai priorizar coisas que não são a
cidadania, o respeito aos direitos, e para ajudar nisso tudo, temos uma
legislação penal, militar, regulamentos, que acaba por nos forçar a
ser assim também. Por exemplo, eu tenho que cumprir uma reintegração de
posse de uma fazenda que está lá improdutiva e que o Incra está em
processo de desapropriação para entregar à reforma agrária. Eu, enquanto
cidadão, pensador policial e defensor de uma outra lógica de polícia,
tenho a compreensão de que aquele trabalho é injusto e errado. A
Constituição garante a utilização social da terra. Só que se eu não for
cumprir essa ordem judicial, eu vou preso. Todo mundo sabe que não pode
bater e espancar. Mas se o policial é espancado no seu treinamento, se
ele é aviltado em seus direitos mais básicos enquanto trabalhador, ele
vai respeitar os direitos dos outros? Não. Ele não sabe o que é isso.
Minha tese é de que somos produto de um modelo, não se pode culpar o
policial. Ele foi treinado para ser assim. O policial é violento porque a
sociedade é violenta, o Estado é violento. O Estado é obrigado a dar
saúde e educação, por exemplo. Quando ele não dá, a população se
revolta. Quem é que vai lá controlar essa população? A polícia. É um
órgão do Estado pago para fazer o que o Estado deveria fazer e não faz.
Nós estamos agindo na falha e omissão do Estado.
O senhor diz que as denúncias de tortura contra policiais têm
aumentado. O senhor acha que as denúncias é que aumentam ou os casos de
tortura em si?
Acho que isso se deve ao aumento de denúncias formais, bem como ao
“novo” policial que começa a surgir e que tem consciência de seus
direitos e deveres. Este “novo” policial surge consciente da evolução
social, conhece seus direitos, ou seja, ele acompanha a evolução do
mundo, da sociedade, do Brasil. Temos muitos policiais hoje com nível
superior, ele não aceita mais determinadas situações e isso tem criado
um aumento de denúncias, o policial hoje é mais questionador. Os
policiais brasileiros querem mudar a realidade – as estatísticas dizem
isso. O problema é que encontramos barreiras dos dois lados: do Estado
que não deseja mudar nada, que vem com todo seu poder de força
disciplinar e tenta calar o policial, e por outro lado encontramos uma
resistência da sociedade em geral, que também é moldada em uma lógica
excludente. A sociedade brasileira é violenta e exige, inclusive, que o
policial seja assim, claro, desde que não seja com ele, com o filho, o
amigo, o parente, enfim. Vivemos um antagonismo. Imagino um policial
cheio de interrogação na cabeça. Ao mesmo tempo em que a sociedade prega
a defesa dos direitos humanos, pesquisas mostram que 50% defende que
bandido bom é bandido morto. Ao mesmo tempo que o policial deseja mudar,
o Estado, que deveria ser o principal indutor desta mudança, age de
forma oposta.
A militarização em si da polícia é um problema?
Eu sempre fui um defensor da desmilitarização, porém ao longo de
anos de estudo e por experiência empírica, creio que hoje, para termos
uma melhoria de fato na segurança pública, não basta só desmilitarizar. É
preciso mudar o modelo, a cultura. A sociedade é “militarizada”, a
política é “militarizada”, belicistas, e quando falo militarizada
refiro-me à questão cultural. Veja a Polícia Civil, por exemplo, lá
também tem órgãos tão “militarizados” quanto a PM, repito, refiro-me à
cultura. Na Guarda Municipal ou civil, a mesma coisa. Enfim, a sociedade
brasileira é militarizada. Isso porque o grupo dominante quer que seja
assim. Desmilitarizar por desmilitarizar não vai adiantar. A
desmilitarização é um processo bem mais complexo do que simplesmente
deixar de estar vinculada ao exército. Existem no mundo instituições com
um organograma militar, mas com cultura diferente, cidadã, humana.
Quando os policiais falam em desmilitarização, eles querem dizer
humanização, respeito, dignidade, respeito aos direitos dos mesmos,
enfim. A questão é: nosso modelo militarizado aceitaria isso? Me parece
que não, e neste caso é preciso desmilitarizar. A quem interessa o
modelo militar de segurança pública, que prende policial ou bombeiro por
questões disciplinares irrelevantes no contexto da segurança pública,
ou mesmo da eficiência do trabalho? A resposta me parece clara,
interessa a um grupo de pessoas que deseja nos manter alijados de um
debate mais progressista. Para a sociedade civil, desmilitarização
significa acabar com a violência, e isso não vai ocorrer, pois a
sociedade é violenta e o Estado maximiza essa violência na medida em que
é formatado e mantido para um pequeno grupo de pessoas.
Se o senhor relaciona a violência a qual o policial é
submetido dentro dos quartéis com a que ele comete na rua, então não são
visões tão diferentes.
A violência sofrida dentro dos quartéis tem o cunho de moldar, de
controlar, é tudo impositivo, sem discussão, e se um PM no seu dia a dia
sofre com isso, ele absorve e externa essa realidade para a sociedade.
Me parece meio lógico, se você é maltratado, desrespeitado e aviltado
em seus direitos mais básicos, você fará o mesmo com os outros. Quando o
policial fala em desmilitarização, ele fala isso em função dele
enquanto cidadão detentor de direitos que são sistematicamente violados
pelo Estado. A sociedade, quando fala em desmilitarizar, tem a crença
de que a violência policial acabará, o que não é verdade, visto que a
própria sociedade fomenta a violência, ou seja, contribui para a
violência policial. Em outras palavras, o policial é produto de um
modelo que o torna violento. A violência policial e a violência da
sociedade possuem uma ligação direta. Como eu disse, e insisto, no
Brasil existe uma banalização da violência, fomentada pelo Estado, pela
mídia e por parte da sociedade.
O senhor está na ativa. De acordo com o Código Penal Militar, o senhor poderia estar dando essa entrevista?
Não, nem pelo código penal militar e nem pelos regulamentos internos
nossos. Estou sujeito à punição. Os nossos regulamentos, em sua maioria,
são da década de 80, ou seja, de antes da Constituição.
O senhor já recebeu algum tipo de punição?
Já, eu e inúmeros outros companheiros. Mas a gente insiste porque
estamos defendendo inclusive o próprio policial e um novo modelo de
segurança pública, o qual tenha por princípio a dignidade humana, o
respeito, a humanização, enfim. Nós não gostamos do que estamos vendo em
termos de segurança pública, até porque este modelo faz vítima de todos
os lados, sejam policiais ou da população. Defendemos um novo modelo de
polícia, com cidadania, ética, e respeito. E isso é defender,
inclusive, os polícias e a polícia. Faço parte de vários grupos de
discussão sobre segurança pública, como por exemplo “Policiais
antifascismo”; “Policial Pensador”, “Militares para a Democracia”. Hoje
temos milhares de policiais (civis, militares, guardas municipais,
policiais federais, rodoviários federais, agentes prisionais), de todos
os níveis hierárquicos que debatem segurança pública.
E qual foi a punição que o senhor recebeu?
Já fiquei preso, peguei punição administrativa. De 1997 para frente,
várias polícias no Brasil fizeram greve, seja para reivindicar salário,
mudança de jornada de trabalho, e greve na polícia é algo proibido.
Vários policiais que discutem isso já foram punidos. Estamos sujeitos a
todo tipo de punição disciplinar. Aqui em Santa Catarina tivemos um
policial expulso. Em outro estado, teve um que defendeu a
desmilitarização na tese de mestrado e foi expulso. Não podemos falar
sobre segurança pública. Imagina um médico, uma enfermeira ou auxiliar
de enfermagem que não pode falar sobre saúde? É absurdo.
O senhor ficou preso quanto tempo?
Se somar tudo, eu nem sei. Fui preso várias vezes. Fiquei 48 horas
uma vez, 24 horas, enfim. Foram várias punições ao longo desses 20 anos
discutindo a situação da polícia. Claro que tem conjuntura política
nessa jogada. Em SC, por exemplo, faz algum tempo que não tenho tido
nenhum problema. Algumas polícias estão aplicando mudanças, como a de
SC, já começa a chegar uma nova geração de oficiais, de gestores, que já
pensam pós-Constituição de 1988. Mas em estados como Rio Grande do
Norte, e outros do Nordeste, o militarismo e as regras militares,
principalmente que tolhem qualquer cidadania do policial, ainda são
muito aplicadas.
O senhor é presidente da Anaspra, ex-presidente da Aprasc e membro da diretoria. Como é ser sindicalista nesse ambiente militar?
Difícil, muito difícil. Para começar, essa palavra “sindicalista”
para nós é proibida, vetada pela Constituição. Tanto que não temos um
sindicato, mas uma associação. Fomos processados em 2009, pelo governo
de SC, por estarmos agindo como sindicato. Primeiro você tem que vencer
barreiras internas, nosso próprio pessoal tem dificuldade em aceitar que
tem direitos e que tem que lutar por esses direitos. Falar em
manifestação, o cara fica com um ponto de interrogação, não sabe se é
trabalhador, se é policial ou militar. Se ele é cidadão, se não é. Ele é
condicionado ao longo da sua vida para não pensar nisso. E tu sofre
barreiras jurídicas, legais. Apesar disso, em SC hoje, a gente já está
em outro patamar, superamos essas questões politicamente. Somos a maior
entidade de praças do Brasil, proporcionalmente. Temos praticamente todo
o efetivo da PM e BM, tanto da ativa quanto da reserva, filiados à
entidade, são 15 mil. E temos uma inserção social muito grande, o que
nos dá uma certa blindagem política. Tivemos um deputado eleito duas
vezes aqui. Eu fui candidato a deputado estadual pelo PSOL. A gente
criou um certo respeito e reconhecimento das autoridades.
Esse cenário é atípico para o resto do País?
Só ocorre em Santa Catarina e Minas Gerais, que foi o primeiro estado
do Brasil a fazer uma greve, em 97, quando inclusive um cabo da PM foi
assassinado. A maioria ainda tem uma lógica secular, que existia na
época da ditadura. No RN teve um policial que fez um comentário numa
plataforma de debates na internet e pegou 15 dias de prisão. Eu sou
presidente da Anapra, temos feito essa discussão com outras organizações
e o debate tem evoluído, as discussões sobre modelo de segurança
pública estão mais acirradas, o que obriga o Estado a pensar mais nessa
questão. Mas ainda existe uma repressão muito grande com relação aos
policiais pensadores. Parta da premissa de que até 1988 soldado e cabo
eram proibidos de votar. A política é muito nova no nosso meio. Aí em
São Paulo a segurança pública é um absurdo e os policiais são vítimas
disso, de um lado do Estado e do outro do crime organizado. Sofre uma
influência do PSDB, que está há 20 anos no poder. Em termos de
regulamento, ainda não se adequou à Constituição de 88, existem
problemas sérios com relação à sociedade civil organizada que vê no
policial o inimigo, quando na verdade ele é tão vítima quanto os outros.
Quando a gente pensa no combate à violência policial, de quem
devemos cobrar? Quem é o responsável por repensar esse modelo de
segurança pública?
Nós vivemos um modelo completamente arcaico. Temos duas polícias, uma
civil e uma militar, que em tese se complementam, o que não existe em
nenhum lugar do mundo, por isso somos defensores do ciclo completo de
polícia. Cada órgão de polícia fazer todo o procedimento do início ao
fim. O modelo de segurança público é suis generis, porque o Estado, a
União tem pouca gerência sobre o modelo. O artigo 144 da Constituição é
muito falho, foi muito limitado. Os estados é que gerenciam as suas
polícias, existem normas gerais que a União legisla, mas quem gerencia
são os Estados. A PM, por exemplo, é força auxiliar reserva do Exército.
Se todos os efetivos da PM estivessem no Itaquerão, vai chegar o
presidente da República e me dar uma ordem, o governador do Estado para
dar outra ordem, o comandante geral da PM dá outra ordem e vai chegar o
general comandante do Exército e dar outra. A gente entra em parafuso,
não sabemos a quem responder. Devemos obediência a vários senhores.
Que tipo de tortura um policial sofre dentro dos quartéis?
Tem imagens na internet, qualquer um pode ver, de policial em
treinamento e comendo a mesma comida que um cachorro, na mesma gamela.
Tortura psicológica, isso é regra. As ameaças. O índice de assédios
moral e sexual de mulheres nos órgãos de segurança pública chega a quase
40%, segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Tivemos
casos de policiais fazendo flexão no asfalto quente às 16h, num sol de
40 graus. O filme “Tropa de Elite” mostra aquela cena dos caras comendo
comida no chão. Aquilo acontece.
Apesar dos avanços que o senhor aponta com relação aos
direitos para policiais, o número de suicídios na polícia é alto e
crescente. Por quê?
Aqui em SC, nos últimos cinco anos, foram 20 suicídios nos órgãos de
segurança pública. Em 2015 até agora foram 9 suicídios na PM, com um
efetivo de 9 mil pessoas. É um numero absurdo. Temos em média quase sete
vezes mais chance de se suicidar do que a sociedade comum. Isso se deve
a vários fatores: assédios, a gente trabalha com a área que a sociedade
joga para debaixo do tapete. Ao mesmo tempo em que atendo uma
ocorrência de algo lindo como um parto, dez minutos depois vou atender
uma ocorrência de um pai que estuprou uma menina de um ano. Existe ainda
uma lógica na sociedade que o policial é herói. Ele não é herói, é um
ser humano como qualquer outro. Se ele está num ambiente muito propício
de ter altos e baixos psicológicos, que sofre uma carga negativa muito
grande com o pior tipo de violência que existe, que tem todo um
regramento que priva ele de cidadania, de poder falar, inclusive, isso
tudo aumenta os índices de suicídio.
Existe um atendimento psicológico para os policiais?
Esse é um outro problema. Aqui em SC nós conseguimos a partir de 2011
aprovar várias leis que davam acompanhamento psicológico. Porém essa
legislação chegava na mão do governador e ele vetava porque é
inconstitucional criar custos para o Estado na Assembleia.
Pois bem, a partir de um caso que ganhou repercussão nacional (um PM
que teve um surto psicótico em Joinville e tirou a farda, enfim), com o
apoio do governo federal, bem como por conta de nossas cobranças, o
comando da PM da época, criou um programa de acompanhamento dos
policiais e bombeiros, mas ainda existem algumas dificuldades do ponto
de vista prático. Temos um efetivo muito pequeno e aí às vezes o
policial teria que ser afastado e não é, a orientação do psicólogo não é
atendida pela necessidade de ter policial na rua. Para além destas
dificuldades, temos o fato de que os próprios policiais por vezes
resistem a procurar ajuda, afinal, para todos e para ele ele é um super
herói e assim imune a tudo e todos. Em suma, existem programas que
funcionam de forma muito tímida ainda.
E com relação à atual conjuntura política e os projetos que
tramitam no Congresso? O senhor se sente contemplado pela bancada da
bala?
Absolutamente não. Sou radicalmente contra a redução da maioridade
penal, a mudança do estatuto do desarmamento. Nós tivemos uma ruptura
institucional ilegítima com o impeachment de Dilma e temos um Congresso
extremamente conservador. Temos vários policiais discutindo melhoras na
segurança pública enquanto temos um Estado que, com essa ruptura, vai
no sentido contrário do que estamos discutindo. Estamos regredindo em
termos de Estado ao mesmo tempo em que avançamos em termos de policiais
pré-dispostos a discutir isso. Acho que o governo federal anterior pecou
muito, poderia ter dado uma contribuição muito maior, não fez e ainda
abriu portas para que esse governo de agora piore o que já era ruim.
Lula e Dilma poderiam ter feito esse debate de forma muito mais
propositiva. Não fizeram e aí vem esse governo agora conservador que vai
na lógica de retirar direitos dos trabalhadores, inclusive dos
militares que até então estavam blindados na previdência, pelo menos.
Eles também serão vitimas disso, só que quem vai ser utilizado para
manter sob controle esses trabalhadores que vão perder direitos? O
Estado comete erros e utiliza os policiais para manter a massa sob
controle. O grande diferencial agora é que esses policiais também vão
ser vítimas diretas desse conservadorismo e vão ter seus direitos mais
aviltados ainda. Como que eles vão reagir? Não sei. O que temos dito
para nossos policiais é: nenhum direito a menos e só a luta muda a lei.
É comum ter policiais de esquerda com o senhor?
Somos milhares em vários grupos de debate. Tem bastante, mas boa parte não se manifesta por conta desses regulamentos.
O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) é representativo da ideologia predominante na PM?
Sim, e isso me deixa muito frustrado. Conheço o Bolsonaro, debati com
ele alguma vezes, é o que representa a maioria da categoria hoje. Ele
tem um discurso fácil. A sociedade mundial hoje é fascista. As lógicas
de direita e extrema direita, em função das crises econômicas, estão se
fortalecendo. Aí você foca sua insatisfação no Bolsonaro, e quem é ele?
Está há 20 anos no poder e nunca fez nada pelos policiais ou pela
sociedade, exceto discursos fáceis e via de regra divisionistas e
maniqueístas.
Fonte: Site Brasileiros
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