O fascismo não tem aparência do mal, não é um demônio horrendo, pelo contrário, é sútil, caminha na escuridão do inconsciente e grassa em tempos sombrios. O fascismo não se apresenta hoje como fascista. Uma senhora distinta ou um velhinho com rosto amigável podem compactuar com noções fascistas e, ao mesmo tempo, não ter nada que nos assuste
Esse artigo é diferente de todos os demais que tenho escrito até o momento: nele pretendo contribuir para a reflexão da atual conjuntura a partir de uma história que vivi e de uma experiência que só me fez sentido seis anos depois.
Experiência que sem nenhuma jocosidade alcunhei de minha conversa com um nazista genuíno. O objetivo desse texto é chamar atenção para a inconsciência do ódio político que atinge, não apenas o Brasil, mas grande parte dos países ocidentais com os desdobramentos da crise econômica de 2008/2009. Se ao fim dele, o leitor tiver a sensação de que o fascismo é inconsciente e independente de aparência ou autodesignação, esse artigo terá, então, atingido sua meta:
Experiência que sem nenhuma jocosidade alcunhei de minha conversa com um nazista genuíno. O objetivo desse texto é chamar atenção para a inconsciência do ódio político que atinge, não apenas o Brasil, mas grande parte dos países ocidentais com os desdobramentos da crise econômica de 2008/2009. Se ao fim dele, o leitor tiver a sensação de que o fascismo é inconsciente e independente de aparência ou autodesignação, esse artigo terá, então, atingido sua meta:
Em 1933, nas ruas de Weimar, uma menina com nove anos de idade, de mãos dadas com sua mãe, contemplava, assustada, as bandeiras com a suástica estendidas no frontão principal do que sobrou do Reichstag. O antigo parlamento alemão havia sucumbido às chamas e junto as fumaças alçou Hitler como chanceler da Alemanha. Na ocasião os nazistas acharam a desculpa perfeita: os comunistas queriam dominar a Alemanha. A menininha, uma judia chamada Henrietta Dymetman, com olhos de caramelo desconfiado, questionou então sua mãe: “Por que esses homens marcaram a loja de papai?”. Obtendo como resposta: “Porque somos judeus!”.
Setenta e sete anos depois, estou fazendo hora no meu antigo trabalho de monitor no Catavento Cultural que fica lá para as bandas do Parque Dom Pedro em São Paulo. Como estagiário a grana era curta, mas a galera bacana, o trabalho pouco e o tempo livre para estudar, minha única ambição.
Sentado sobre os trilhos de uma portentosa locomotiva alemã fabricada em 1936 e exposta ali para curiosidade de visitantes e turistas, fumava um cigarro tranquilamente, quando reparei um senhor com olhos atentos na grade que separava o “museu” da, carinhosamente apelidada,Faixa-de-Gaza.
Os olhos murchos do velho acendiam com os faróis da memória. O olhar se perdia nos mínimos detalhes, parecia se deslocar do presente rumando, num átimo, para o passado. Retirou sua boina fazendo um sinal ao que me aproximei da grade e ele perguntou: “Posso entrar para ver?”, respondi: “Por favor!”.
Com dificuldade, o velhinho bem trajado, com olhos azuis como oceano e de cabelos ralos se aproximou da locomotiva com exíguo sorriso nos murchos lábios.
Ia lentamente batendo a bengala nas estruturas de ferro enquanto andava no entorno da locomotiva. Olhava para mim, mas como se não quisesse que a lembrança, correndo livre no seu espírito, se dissipasse, retornava os olhos rapidamente para a grandiosa, luxuosa e intrigante máquina à sua frente.
Aos poucos os modos daquele homem começaram a me encafifar. Fixei um olhar, a um só tempo, interrogativo e suplicante. E esses gestos, que não se explicam porque não cabem na linguagem ordinária, foram entendidos pelo velho que começou a falar.
“Esse trem é alemão, mas foi produzido com dinheiro judeu quando Hitler já estava no poder!”, fez com um olhar que me media da cabeça aos pés. Depois satisfeito com seu exame, reparou com atenção redobrada uma portinhola que dava acesso a cabine do maquinista. A prudência logo me aconselhou que não deixasse transparecer qualquer inquietação – embora, aquelas palavras soassem com estranheza. Balancei a cabeça e como sempre sorrio quando o nervosismo ataca, estampei um sorriso babaca.
“Então… o senhor conhece a fabricante? O senhor viveu na Alemanha nesse período?”, respondi esperando levar, aos poucos, o velhinho a me fazer confidências, “Olha! Eu era uma criança, mas, me lembro de tudo. Eu tinha oito anos e mais cinco irmãos. Morávamos em Berlim e toda noite corríamos para os abrigos fugindo das bombas britânicas… mas, é melhor mudar de assunto. Em merda quanto mais se mexe, mais fede!”.
Os sinais misteriosos na fala do senhor, sua calma inquietação, algumas palavras que o desconhecido deixou escapar, tinham já formado minha opinião sobre aquele homem. Já não tinha dúvida de que estava tratando com uma testemunha ocular da história. E por isso, queria fuçar na merda mais um pouquinho: “E o que sua mãe dizia da guerra?”
“Eu não queria mais falar nisso, mas saiba de uma coisa: não existem bonzinhos nessa história. Penávamos com ração, eu passava fome com meus irmãos, enquanto eles descarregavam artilharia pesada em cima de nossas cabeças… não quero falar nisso, mas é mentira a maioria das coisas que contam… queríamos uma Alemanha unida e forte, mas quem estava com o dinheiro? Não eram os judeus? Não eram eles os capitalistas?…”
O leitor com razão deve imaginar o espanto que tive ao ouvir tais palavras. Infelizmente ou felizmente, fui ingênuo. Apaguei meu cigarro na sola do sapato e me despedi com angústia na alma. Virei as costas ao velhinho que com sua bengala ao chão, entendeu claramente minha inquieta reprovação as suas palavras, encerrando: “É melhor eu ir embora, essa história é muito triste!”, fez cabisbaixo.
Naturalmente, a narração dessa experiência concreta tem um claro alerta: O fascismo não tem aparência do mal, não é um demônio horrendo, pelo contrário, é sútil, caminha na escuridão do inconsciente e grassa em tempos sombrios. O fascismo não se apresenta hoje como fascista. Uma senhora distinta ou um velhinho com rosto amigável podem compactuar com noções fascistas e, ao mesmo tempo, não ter nada que nos assuste. O fascismo pode entrar em nossa casa, estar nos discursos daqueles que nos são íntimos e sorrateiramente ir se solidificando nas falas de nossos parentes e amigos de infância.
Qual o motivo disso? João Bernardo é quem em sua colossal obra nos fornece uma das melhores respostas – aliás livro obrigatório aos interessados sobre o tema – ao dizer que:
“Após a segunda guerra mundial a forma mais nociva de fascismo tem sido a sua existência larvar. Os fascismos foram derrotados nos campos de batalha e nas cidades bombardeadas muito antes de as suas contradições os terem derrubado ou sequer enfraquecido. Para agravar a situação, a vitória aliada não levou a uma crítica da ideologia fascista, mas à sua supressão material”. De certa forma, o fascismo manteve e mantém a sua energia inconsciente e larvar porque não foi problematizado. Não foi discutido e sim ignorado, não foi avaliado permanecendo teoricamente desconhecido.
Isso porque estudar o fascismo pressupõe uma crítica contundente e profunda do capital, mas também das formas políticas que durante muitos anos foram defendidas pela esquerda ligada, sobretudo, a URSS. Como parte da esquerda nega, por motivos ideológicos, a filiação que grande parte de dirigentes fascistas tiveram com as ideias do sindicalismo de Sorel e com o nacionalismo bolchevique é, por isso, interessante notar que o fascismo realmente nasce no seio socialista. Naturalmente, degenerando e pervertendo as demandas sociais dos trabalhadores.
Por isso, quando a extrema-direita atual acusa a esquerda de fascismo, ela não está mentindo inteiramente, mas contando uma meia verdade ao não ir até o fim da história. A ignorante extrema esquerda, apostando na ignorância generalizada de seus adeptos, esquece-se de falar sobre a perseguição, assassinato e linchamento dos dirigentes comunistas, sobretudo, se, se confessassem marxistas.
O mesmo fantasma do marxismo que ronda as mentes doentias dessa direita que se formou a partir dos anos petistas rondavam as cabeças das senhoras alemãs que rapidamente se filiariam ao nazismo. O mesmo impedimento atual de ideias críticas que fossem contrárias a sociedade de mercado – como o Escola sem partido – fora aplicado na Itália e Alemanha dos anos 1930.
O fascismo cega, ensurdece, dissimula e justifica diariamente o injustificável. Ele não é irracional, pelo contrário, usa da razão para tornar racionalizável a banalização da violência. Por exemplo, quando um grupo entra com ação no MPF para tentar processar uma universidade (UFABC) que ajudou uma de suas alunas cujo o olho fora arrancado pela polícia militar, esse grupo tem que ser chamado pelo nome e, ademais, combatido incansavelmente. A questão fundamental a ser respondida é como foi possível que tantas pessoas compactuem – e compactuavam como o velhinho que encontrei – com ideias cujo fundo é falso, e não se preocupam com a verdade das afirmações?
De fato, no Brasil nunca se superou o alto índice de violência. Tanto que atualmente é modelo de controle e vigilância para países mais desenvolvidos. Como fora escravocrata durante quatrocentos anos; como muitas periferias podem ser consideradas senzalas – ou cidades dormitórios –; como a polícia tem licença para matar a juventude negra sob os olhares cúmplices da invenção chamada “opinião pública”, então pode ser que no Brasil o fascismo seja um estado “natural”. Com a diferença de que agora, pela primeira vez, atinge as forças simbólicas se instituindo como norma e constituição.
Ademais é preciso lembrar como nacionalismo se funde com a perspectiva fascista. Nacionalismo que aparece tanto no ingênuo discurso de parte da esquerda quanto da direita. Muitos acreditam que o fascismo é passível de ser predicativo. Não. Os conceitos se transformam com a história, adquirem novas roupagens e se traduzem de maneiras diferentes. Assim como o conceito de família muda, o conceito de fascismo também. Contudo, o fascismo não pode ser isolado, como também, não pode ser confundido com tudo. As ideias fascistas não atendem pelo nome. O fascismo adquiriu por isso volubilidade; como não houve crítica, não houve superação.
E tudo isso se expressa na sua sutileza dos gentis olhos azuis de um velhinho que não entendeu que o que deveria ser extinguido não eram os judeus e sim o capital. Assim também hoje as pessoas devotam seu ódio ao PT e não ao modelo político corrupto que mantém o processo de produção e reprodução desse mesmo capital. Eis, novamente a extrema-direita atuando e seu bode-expiatório perfeito. Novamente o ódio é normatizado e se espalha por todos os lugares do globo, a questão é: quando iremos refletir com seriedade sobre isso?
Fonte: Pragmatismo Político
Nenhum comentário:
Postar um comentário