Que tipo de ciência é a análise do comportamento? Ora descrita como parte da biologia, ora como parte da psicologia, ainda hoje permanece controversa sua posição no cenário científico. B. F. Skinner, talvez o principal epígono (se não prógono) dessa ciência no século XX sustentou diferentes posições sobre o assunto.
Em algumas ocasiões, defendeu uma espécie de “reforma” da psicologia, reivindicando que no lugar da mente ou cérebro, o comportamento fosse estabelecido como objeto de estudo. Exemplo desses esforços são os textos “Can the experimental analysis of behavior rescue psychology?” (Skinner, 1983) e “Whatever happened to psychology as the science of behavior?” (Skinner, 1987)
Em algumas ocasiões, defendeu uma espécie de “reforma” da psicologia, reivindicando que no lugar da mente ou cérebro, o comportamento fosse estabelecido como objeto de estudo. Exemplo desses esforços são os textos “Can the experimental analysis of behavior rescue psychology?” (Skinner, 1983) e “Whatever happened to psychology as the science of behavior?” (Skinner, 1987)
Posteriormente, Skinner (1990, p. 12010) demonstrou certo desencanto diante dessa possibilidade, e encerrou seu último texto publicado em vida com a asserção: “se a análise do comportamento será chamada de psicologia, essa é uma questão para o futuro decidir”. Mas foi uma publicação póstuma que revelou uma mudança mais contundente de Skinner em relação à psicologia. Em “A world of our own” (Skinner, 1993/2014, p. 24), ele declarou: “Temos sido acusados de construir nosso próprio gueto, de recusar contato com outros tipos de psicologia. Em vez de sair do gueto, eu penso que deveríamos fortalecer os seus muros.”
O texto foi originalmente publicado num periódico chamado Behaviorology, e republicado pelo European Journal of Behavior Analysis em 2014. Essa edição do journal traz ainda a republicação de um dossiê (seguido de análises por uma série de comentadores) que revela um pouco sobre o contexto prévio à publicação de “A world of our own”: trata-se da correspondência trocada entre Jerome “Jerry” Ulman e B. F. Skinner, entre os anos 1986 e 1990.
Como Skinner, Ulman também mudou de opinião sobre o assunto ao longo do tempo. Na primeira carta endereçada a Skinner, datada de 20 de Junho de 1986, ele escreveu: “Eu cheguei à conclusão que você está inteiramente correto. Nós devemos continuar a luta pelo estabelecimento de uma psicologia científica. Por que abandonar o campo de batalha e deixar mentalistas e cognitivistas reivindicarem o título de psicólogos?” (Ulman, 1986/2014, p. 11). Dois anos depois, contudo, Ulman (1988/2014, p. 12) reconsiderou, e escreveu ao amigo: “…eu não mais compartilho daquela posição. Tornou-se cada vez mais evidente para mim que tentar reformar a psicologia é não somente uma grande perda de tempo e esforço, mas nos desvia da linha principal, de estabelecer uma ciência natural do comportamento.”
O descontentamento de Ulman ia além da psicologia: ele também se mostrava insatisfeito com a organização institucional da análise do comportamento. Em suas palavras: “Quando a ABA foi formada eu tinha esperança de que a nossa disciplina finalmente tivesse uma comunidade de apoio para o seu crescimento futuro. Mas ao longo dos anos, o que tenho observado naquela organização é uma crescente ‘deriva tecno-cognitiva’ longe da ciência básica do comportamento e do comportamentalismo radical, sua filosofia orientadora. Parece que cada vez mais estudantes de programas de análise de comportamento estão sendo ensinados como aplicar um determinado conjunto de estratégias de intervenção com diferentes tipos de comportamentos em várias configurações, enquanto a formação na ciência básica está sendo negligenciada.” (Ulman, 1988/2014, p. 12). É por conta dessa insatisfação que Ulman finaliza a carta comunicando a Skinner sua filiação a uma nova associação, a TIBA – The International Behaviorology Association.
Fato curioso que merece ser mencionado é a simpatia de Ulman pela filosofia marxista. Convencido de que o comportamentalismo radical subscreveria um “monismo materialista”, e crítico da tendência da psicologia em buscar explicações em “outros mundos” (como o mundo da “psique”), ele considera que a negligência ao modelo selecionista se deveria à resistência à demanda por modificar o ambiente: “Sem pressupor uma teoria da conspiração, essas orientações [psicológicas] do ‘outro mundo’ servem para sustentar o status quo … Eu acho que é útil para nós considerar a afirmação de Marx de que em qualquer sociedade as ideias dominantes são aquelas da classe dominante.” (Ulman, 1988/2014, p. 13) O comportamentalismo radical, na visão de Ulman, seria uma filosofia inerentemente subversiva, desafiadora das ideologias então vigentes.
Em resposta a essa carta, Skinner (1988/2014, p. 14) foi enfático: “Eu não gosto do termo ‘behaviorology’ … Eu prefiro permanecer um psicólogo desde que isso possa ser definido como Watson o fez em 1913.” Skinner escreveu ainda que o que era preciso era não tanto uma nova organização, mas um trabalho experimental mais ativo sobre campos ainda inexplorados, bem como discussão sobre as implicações da análise do comportamento para outras áreas. “Esse é o tipo de coisa que eu estou tentando fazer por mim mesmo nos dias de hoje. Receio que isso não é o que você queria ouvir, mas parece-me ser tudo o que eu devo tentar fazer pelo o resto da minha vida”: assim Skinner (1988/2014, p. 15) encerrou a resposta a Ulman.
Conquanto desapontado com a posição de Skinner, ousando alertá-lo que seus esforços em reformar a psicologia se traduziriam num trabalho de Sísifo, Ulman reponde reiterando a disposição dos “behaviorologistas” em lutar pelo reconhecimento de uma ciência natural do comportamento, e chega a comparar o papel da TIBA com aquele desempenhado por Thomas Huxley, o “bulldog de Darwin”, famoso por ser um dos principais defensores e disseminadores de suas ideias.
Em resposta, Skinner (1988/2014, pp. 15-16) agradece pelo “entusiasmo e lealdade” dos behaviorologistas, mas insiste que as preocupações capitais deveriam ser outras: “O que mais me preocupa não é a necessidade de ter uma outra organização, mas fazer com que as pessoas competentes ataquem o que está sendo feito em nome da psicologia. E os analistas do comportamento estão fazendo um monte de coisa errada eles mesmos. É difícil encontrar um artigo que não reporte algo acontecendo dentro da cabeça.” Além disso, ele chama atenção para a apatia da comunidade de analistas do comportamento, pouco disposta a responder a críticas ou popularizar seus achados: “Eu escrevi três artigos atacando a psicologia cognitiva, mas quem mais o fez? E quem tem falado para o público leigo?”
Mesmo concordando com as preocupações de Skinner (mais especificamente, com suas críticas à comunidade de analistas do comportamento), Ulman seguiu inconformado com sua posição em relação à psicologia, e estrila na penúltima carta: a manutenção de uma aliança com a psicologia serviria apenas para invalidar os esforços pelo estabelecimento da “behaviorologia”. Mas, surpreendentemente, o tom da próxima e última carta (na verdade, trata-se de uma breve nota) é bastante diferente: “Querido Fred, parabéns pela sua declaração de independência!” (Ulman, 1990/2014, p. 18). Era uma reposta a um pronunciamento de Skinner (que os amigos gentilmente chamavam de Fred) na 15ª. reunião da ABA em Milwaukee, posteriormente publicado em “A world of our own”: “Por muito tempo tentei seguir Watson em dizer que a psicologia era a ciência do comportamento. Eu agora estou convencido de que isso está errado.” (Skinner, 1993/2014, p. 21)
Passadas mais de duas décadas de todas essas declarações, provenientes de dois eminentes analistas do comportamento (sendo patente a influência de B. F. Skinner sobre a comunidade analítico-comportamental ainda hoje), convém questionar: poderiam elas ajudar a explicar o cenário contemporâneo da análise do comportamento no geral, e, em particular, das relações entre a análise do comportamento e a psicologia? Sejam quais forem as lições a tirar das cartas Ulman-Skinner, antes de reiterar ou abandonar suas ideias, convém notar como tais ideias sofreram mudanças profundas com o passar do tempo.
Um dos maiores méritos da republicação dessa correspondência, me parece, é que ela dá relevo a algumas circunstâncias que fizeram com que os autores se posicionassem do modo como se posicionaram inicialmente, às mudanças que operaram em seus discursos, e a potenciais variáveis que influenciaram tais mudanças. Isso ajuda a prevenir que transformemos numa doutrina aquilo que restou do comportamento verbal desses autores, ao mesmo tempo em que talvez nos ajude a refletir sobre a questão, ainda candente, da relação entre análise do comportamento e psicologia. Estamos em 2014: se, como Skinner alertou no passado, “essa é uma questão para o futuro decidir”, estejamos preparados!
Fonte: Boletim Behaviorista - Postado por César Antonio Alves da Rocha, doutorando do Laboratório de Estudos do Comportamento Humano – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de São Carlos. Bolsista FAPESP. Publicadas originalmente pela Behaviorology, as cartas também podem ser acessadas
Fonte: Casa de Cultura
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