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domingo, 27 de novembro de 2016

Pró-Esia - Fábrica de Versos...A bebida dos escravos e dos filhos da terra

Ao fundar a indústria do açúcar, o português criou a do álcool. E se o estado de embriaguez indígena ou africana resultava da quantidade de líquidos fermentados, a rapidez com que eles se embriagavam com cachaça, aguardente de cana destilada dos alambiques, surpreendia. A mais antiga notícia sobre o assunto é dada pelo viajante François Pyrard de Laval em 1610: “Faz-se vinho com o sumo da cana, que é barato, mas só para os escravos e filhos da terra”.
Ao fundar a indústria do açúcar, o português criou a do álcool. E se o estado de embriaguez indígena ou africana resultava da quantidade de líquidos fermentados, a rapidez com que eles se embriagavam com cachaça, aguardente de cana destilada dos alambiques, surpreendia.
A mais antiga notícia sobre o assunto é dada pelo viajante François Pyrard de Laval em 1610: “Faz-se vinho com o sumo da cana, que é barato, mas só para os escravos e filhos da terra”.
        Sua fabricação foi descrita por Guilherme Piso: uma vez isolada a espuma que servia para o gado, os expurgos do caldo de cana eram filtrados em pano de linho e, misturados a água, resultavam na garapa, avidamente procurada pelos habitantes quando envelhecida. O envelhecimento era feito num vaso apropriado chamado “coche descumas”. E Antonil a esclarecer: “A derradeira escuma da última meladura, que é a última purificação do caldo, chamam claros, e estes misturados com água fria, são uma regalada bebida para refrescar a sede nas horas em que faz a maior calma”. Vê-se que o bom jesuíta não provou a beberagem. A garapa, designação legitimamente africana, é vinho ou cerveja que ainda se bebe em Angola e título, também, para cervejas de outras frutas.
        Da ladroagem nas tabernas onde a bebida era “batizada”, deixou testemunho, em 1728, Nuno Marques Pereira. A conversa entre o taberneiro e o escravo, o primeiro pergunta, sem cerimônias, quanta água o segundo “deitara no vinho e nas mais bebidas”. Resposta: “no vinho deitara duas canadas de água e no vinagre três; e que também caldeara a aguardente do Reino com a da terra […] tudo fiz, Senhor, como Vossa Mercê me tem ensinado”.
         Em 1799, o Marquês de Lavradio, em relatório, assinalava a produção de 3.969 pipas de aguardente. Todos os naturalistas estrangeiros que visitaram o Brasil do Rio Grande do Sul ao Amazonas encontraram a cachaça, a aguardente da terra ou jeribita como a bebida favorita e indispensável ao brasileiro pobre. No século XIX, eles observaram pequenas engenhocas para fabrico doméstico ou alambiques de cobre ou barro escondidos pelos matos, a maior parte funcionando clandestinamente e sem pagar impostos.
          Segundo Câmara Cascudo, o modelo se exportou para a África Ocidental e Oriental onde a cachaça, feita de frutas, sementes e raízes, tinha venda garantida. Os tumbeiros, ou navios negreiros, levavam em seus porões, barris ou garrafas de cachaça que eram trocados por cativos. Certo Antônio Coelho Guerreiro enviou da Bahia para Luanda, em 1689, barris de “jeribita” avaliados em 2$279 cada um. E num ofício de 12 de julho de 1730, o governador de Angola, Rodrigo César de Menezes oferecia a D. Sebastião Francisco Cheque Dembo Caculo Cacahenda, do Congo, “um quinto de jeribita que, como o tempo está fresco, servirá para vos esquentar”. Presente português num inverno africano!
A cachaça ou jeribita ainda inspirou poemas como o que lhe fez de Gregório de Matos:
“Aguardente é jeribita
Filha da caninha torta”
         “Tortas”, mesmo, ficavam as autoridades. Os alambiques, no entender de uma autoridade, eram prejudiciais ao sossego público posto que lugar para “bebedices dos negros”. Por um lado, sabia-se que o uso da jeribita acalmava. Pacificava ânimos de escravos exaltados, evitando comportamentos rebeldes e contribuindo para que os senhores pudessem dormir sem susto. Por outro, o elevado consumo podia acarretar problemas de saúde, acidentes de trabalho e a inutilização ou perda do escravo. Veja-se o exemplo de Minas Gerais: a repressão à venda da aguardente, ordenada por meio de “bandos”, ou seja, ordens e instruções de comando emanadas pelo governador português que eram burladas pelas negras de tabuleiro. Elas não se esquivavam em oferecer o produto e ganhar dinheiro com sua venda. Tabernas e zungus também tinham suas pipas e garrafas ao abrigo do olhar das autoridades. Quando havia quilombos por perto, a repressão era ainda mais violenta. Uma provisão de 1659, decorrente do surgimento de quilombos na Serra dos órgãos, ordenou a aplicação de penas severas aos infratores e a destruição dos alambiques.
         Se até o século XVIII foi considerado saudável remédio contra vermes, mal da vista e erisipela, a aguardente passou ao index dos médicos. Só bebida com moderação era útil, sobretudo para os velhos cujos órgãos aquecia. Em excesso, fazia perder a razão e os sentidos: “Que fraqueza! Que tristeza! Que palidez! ” – Pontuava o médico mineiro Francisco de Mello Franco, vituperando contra a bebedice. Beber em demasia passou a ser problema moral. A embriaguez fora de controle era capaz de gerar “furores e ímpetos perniciosos”, levando seu adepto a homicídios, adultérios e ladroagens. Tornada “vício”, a cachaça teve, porém, seu consumo embalado pelo comércio transatlântico de destilados e a modernização das garrafas. Antes em forma de cebola, agora, tinham formato de bastão podendo ser empilhadas umas sobre as outras, para a alegria dos comerciantes e dos “viciosos” consumidores!
       Na defesa dos comportamentos moderados, os médicos davam largas à imaginação. Um remédio eficaz, por exemplo? A cabeça de um cordeiro lanudo, uma mancheia de cabelos humanos, uma enguia com seu fel, tudo levado ao forno até torrar. O pó resultante devia ser misturado à bebida. “Tiro e queda!”

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