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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Cícero renascido e olhares sobre um homem em percurso

Índio Badaróss, o artista que registra a Cracolândia, volta para Pernambuco depois de 10 anos sem dar notícias. O reencontro com o passado é testemunhado por amigos da São Paulo que ele marcou
Rodantes
Conhecemos Índio Badaróss durante o funcionamento da Casa Rodante pelo território da Luz. Casa Rodante é um projeto de ocupação em parceria da Casadalapa e Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, junto ao Projeto De Braços Abertos.

Entre crianças brincando ou desenhando, moradores e usuários plantando jardins e hortas urbanas, grafites e lambes pelas paredes, surgia, dia sim dia não, aquele carroceiro já famoso pelos seus quadros e pinturas pelas ruas de nossa vizinhança. A imagem de um forte em território de areias movediças, deserto de olhares, reflexos de vidros fechados, desconhecimento.

E assim chegou Badaróss, hoje um grande aliado em nossas andanças, tentativas de transformar olhares, ouvir as vozes, os cantos, as poesias e contos esquecidos. Chegou do nosso lado, sorriu ao nosso lado, pintou ao nosso lado, brindou-nos com suas prosas, cativou-nos com suas histórias. Badaróss, um grande artista, um artista que não me atrevo a ser, um artista de coração sem rédeas, um cavaleiro que carrega em sua carroça as lanças de Jorge a combater dragões de mantos invisíveis.
Vizinhos de uma cidade em pólvora. Em algum momento, três pessoas se cruzam na esquina contrária. Tudo se perpetua em um milésimo de segundo. E nada mais será o mesmo. Acompanhe aqui o relato de André Okuma sobre a volta do artista Índio Badaróss à sua terra natal.

Foto: Sato do Brasil/Jornalistas Livres
Rodantes
Conhecemos Índio Badaróss durante o funcionamento da Casa Rodante pelo território da Luz. Casa Rodante é um projeto de ocupação em parceria da Casadalapa e Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, junto ao Projeto De Braços Abertos.
Entre crianças brincando ou desenhando, moradores e usuários plantando jardins e hortas urbanas, grafites e lambes pelas paredes, surgia, dia sim dia não, aquele carroceiro já famoso pelos seus quadros e pinturas pelas ruas de nossa vizinhança. A imagem de um forte em território de areias movediças, deserto de olhares, reflexos de vidros fechados, desconhecimento.
E assim chegou Badaróss, hoje um grande aliado em nossas andanças, tentativas de transformar olhares, ouvir as vozes, os cantos, as poesias e contos esquecidos. Chegou do nosso lado, sorriu ao nosso lado, pintou ao nosso lado, brindou-nos com suas prosas, cativou-nos com suas histórias. Badaróss, um grande artista, um artista que não me atrevo a ser, um artista de coração sem rédeas, um cavaleiro que carrega em sua carroça as lanças de Jorge a combater dragões de mantos invisíveis.
Abraço carregado de verdade, voluntário de seu destino. Cada vez mais próximo, riso mais solto, quase ao nosso alcance. Quase. Uma alma libertária e liberta, mesmo em suas contradições mais obscuras. Me chamou de amigo. Tinha combinado que iria guardar seus quadros na minha casa para que o “rapa” não fizesse desmoronar sua casa-ateliê da Rua Ribeiro da Silva. Não conseguimos. E o “rapa” levou tudo.
Conversando com o cineasta André Okuma, que está preparando um filme sobre Badaróss, soubemos do caminho de volta. Badaróss resolveu voltar à sua terra natal. Badaróss resolveu enfrentar seu destino. Dar a volta completa. Okuma e sua esposa Reiko Otake decidiram acompanhá-lo nessa viagem sem volta.
Foto: Sato do Brasil/Jornalistas Livres
Foto: Sato do Brasil/Jornalistas Livres
No último dia que o vi pelas ruas da Luz, ele nos ajudou a filmar o episódio “Era Uma Vez Agora”, que faz parte do “Enquadro 5×5”, série produzida pela casadalapa, que será exibida ano que vem nas TVs públicas. Seu personagem foi o carroceiro que carregava a “menina que queria voar”. Quando a filmagem acabou, a qual fez com paciência e alegria, chegou ao meu lado, me deu um abraço e falou: “- Nunca carreguei um anjo, vou indo, preciso andar por aí”. E lá se foi aquele guerreiro, um belo vizinho, imagem que acompanhei com os olhos até ele sumir, a virar a esquina de suas vidas.

Sobre o fim de um ciclo, ou mais um road movie sobre o Brasil
Foto: André Okuma
Foto: André Okuma
“10 anos não são 10 dias” disse Cícero Rodrigues enquanto tomava um café em um posto de gasolina decadente numa estradinha em algum lugar de Minas.
Cícero é conhecido como Índio, nasceu em Petrolina, divisa de Pernambuco com a Bahia. Herdeiro de todos os conflitos históricos-políticos-sociais que formaram o nordeste brasileiro, não aceitava as coisas como eram. Naturalmente se tornou um andarilho. Com 15 anos foi a pé pro Rio de Janeiro, com 20 já conhecia todo o sudeste. Na Bahia, fez parte do MST, se juntou com uma mulher, teve 3 filhos e voltou pra Petrolina. Descobriu que sua mulher o traía com um irmão. Desiludido, pegou a estrada mais uma vez e foi a pé pra São Paulo, direto pra Cracolândia e lá permaneceu por 10 anos.
Na rua, no frio opressor de São Paulo se aquecia com o crack e com sua carroça de 200 quilos que percorria pelas ruas coletando material reciclável. Contou que nas noites de inverno dava voltas no quarteirão com sua carroça para manter o corpo aquecido.
Foto: André Okuma
Foto: André Okuma
Há alguns anos descobriu a pintura e o grafite, intuitivamente tem explorado as possibilidades da tinta, dos suportes e de seu corpo performático no ato de pintar. Percebeu a arte como uma fenda que foi se transformando num portal para outro universo.
Sob seu alterego Badaróss, seus trabalhos invariavelmente são rostos dentro de rostos dentro de rostos, são “as vozes dentro sua mente” como outra vez disse, e que explodem em cor e fúria. Transpõem visceralmente suas dores, frustrações e medos sob os sorrisos infantis de seus desenhos. Suas criações são sensações em forma de cabeças humanas, cabeças humanas desforme em sensações.
Incessantemente Badaróss pinta com a urgência da vida que está sempre por um fio, do desespero em tentar ainda provar para o mundo que ele é um ser humano (e que nunca deixou de ser). Na rua, expunha suas obras, no mesmo lugar onde costumava dormir. Era praticamente uma instalação, de maneira muito superficial e genérica, remete ao Bispo do Rosário, assim como sua eloquência é remetida ao Basquiat, pode se encontrar diálogos no expressionismo e no action painting. Mas no fundo isso tudo não passam de rótulos para classificá-lo como mercadoria. E ele nem é parte do mercado, e, portanto, é mais do que isso. De todo modo, Badaróss conseguiu expor sua angústia no trânsito da cidade, intervindo poeticamente no concreto frio e opressor do espaço urbano, preenchendo o vazio da cidade com o seu vazio.
Sua casa-exposição-instalação era incessantemente destruída pela prefeitura, que levava suas coisas, suas carroças e suas obras. Constantemente ele produzia novas pinturas para substituir as que levavam. Constantemente reconstruía sua casa e sua vida. Não há outra forma de sobreviver lá, renascer é um ato político e, no constante processo de gentrificação que a cidade passa, ele tem morrido mais do que renascido.
Foto: André Okuma
Foto: André Okuma
De uns tempos pra Badaross estava pensando mais nos filhos que deixou, em sua mãe, enfim em voltar pra casa. “Dez anos não são dez dias”. Mas Índio aqui em São Paulo –não só metaforicamente – literalmente não tinha identidade, o que o impedia de sequer comprar uma passagem de ônibus. Com ele fui, em uma manhã fria de inverno, num ônibus clandestino, acompanhar seu caminho de volta a Petrolina.
A margem é um lugar muito específico, fora do centro, fora da atenção, fora de tudo e fora do foco. As aparências não são mais pré-requisitos de nada e toda a essência das coisas explodem como uma bomba na cara da vida. Só uma viagem de São Paulo para Petrolina em um ônibus clandestino para nos mostrar isso. Em um misto de euforia e ansiedade regadas a doses cavalares de conhaque e frango com farofa, todos cantam e dançam celebrando a vida, ainda que implícita de machismos e pequenas opressões. O ônibus ruma para o nordeste, em estradas menores e menos fiscalizadas, de postos clandestinos em postos decadentes. Homens e mulheres com seus planos falidos e desilusões amorosas voltam para seus lares depois de temporadas resignadamente traumáticas na capital econômica do país. Mesmo com todos os problemas e perigos, o transporte clandestino é a única possibilidade de reconectar os destroçados fragmentos que escorreram como sangue daquele famoso quadro do Portinari.
Neste ônibus, Índio se torna apenas mais uma das milhares de histórias destas pessoas que (sobre)vivem nas margens do Brasil. Na chegada a Petrolina, não teve dificuldades em conseguir encontrar seus entes e a si mesmo. Sua solidão e frio acabaram no calor do nordeste. Havia ali uma família grande e muitas crianças e histórias para preencher cada vazio rasgado em São Paulo.
Índio (re)encontra uma família de mulheres guerreiras, obstinadas e corajosas, que lutam diariamente contra o machismo de cada dia pra manterem a ordem das coisas. Sua mãe, tia, sobrinhas, filha e também sua ex-mulher são energia bruta de amor e luta. Índio inevitavelmente se contamina e se embriaga com essa atmosfera que se abre diante dele.
Antes de deixá-lo em Petrolina fiz uma última entrevista com o Índio. Cansado e aliviado disse que Badaróss deixará de existir. Mas não deixará de pintar. “Badaróss pintava a dor e o sofrimento, agora isso não fará mais tanto sentido, quero pintar com as crianças, quero de repente dar uma oficina de arte pra elas, assim talvez eu aprenda algo.”
Badaróss morre aqui para renascer Cícero, renascer é um ato político. Cícero, depois de 10 anos sem dar notícias, está finalmente em casa, e às margens do Rio São Francisco, entra no rio e mergulha pra dentro de si.
É importante dizer que isto não é um romântico final feliz, há muitos problemas e contradições que deverão ser encarados, não é um fim, é um recomeço para Cícero, seus filhos, seus pais e sua arte. De toda forma, no calor escaldante de lá, as lágrimas daqueles dias fizeram o sertão virar mar.
Badaross e família. Foto: André Okuma.

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