Talvez a mais frequente atribulação sofrida por um militante de um partido político — qualquer que este seja — seja ver a sua dedicação à coisa pública ser pejorativamente classificada de oportunismo, e o seu círculo de correligionários ser designado de aparelho clientelar.
Na verdade, a atmosfera política portuguesa degradou-se ao ponto de a maioria dos eleitores se abster do seu direito de voto, preferindo proclamar as suas opiniões sobre os destinos colectivos à margem de qualquer envolvimento partidário ou lista eleitoral, como se partidos e eleições representassem manifestações inferiores da vida democrática. Aos olhos de quem se abstém, os partidos converteram-se em meros aparelhos. Será mesmo assim? Será fatalmente esse o destino dos partidos?
Em democracia, a verdadeira maioridade política de um cidadão não começa quando ele consolida as suas próprias convicções ideológicas e concebe um projecto para a vida do colectivo, mas sim quando se propõe a ser eleito para concretizar essas ideias. E é então que, perante a necessidade de congregar apoiantes e recolher votos, descobre as realidades práticas do activismo político em democracia. Tais realidades apresentam-se como dilemas concretos, desprovidos da abstracção da teoria. Como compaginar uma carreira profissional com a militância política, sem sacrificar proficiência na primeira por dedicação à segunda? Como conseguir os recursos financeiros e humanos para divulgar as suas ideias? Como fazer-se eleger para os órgãos partidários, como garantir presença em lugares elegíveis das listas para os órgãos autárquicos e legislativos? Como não poderia deixar de ser em democracia, a sós nenhum cidadão consegue superar estes dilemas. Sem o apoio de uma máquina eleitoral — uma equipa de apoio integrada ou não em um partido — nenhum cidadão ascende a um cargo onde possa pôr em prática os seus ideais governativos. Sem uma boa máquina eleitoral, nenhum projecto ou ideologia podem triunfar, por elevados e benévolos que sejam os seus propósitos. Sem máquinas não há candidatos eleitos nem, por consequência, democracia.
Ora, por essenciais que elas sejam, as máquinas eleitorais têm sido uma figura muito pouco simpática aos olhos da opinião pública desde o advento das democracias constitucionais no século XIX, sobretudo porque a pura luta pelo poder tende a degenerá-las em aparelhos políticos nos quais o debate de ideias é sufocado. A partir do instante em que os sociólogos de inícios do século XX traçaram um quadro explicativo do funcionamento destes aparelhos, definindo as suas peças e engrenagens, os comentadores políticos começaram a vê-las, ou a crer que as viam, disseminadas por todo o cenário político: o financiador, o barão, o cacique, os boys, os sindicatos de voto. Contrariamente às máquinas, os aparelhos são estruturas ideologicamente insinceras, para as quais o poder é um fim em si mesmo e não um meio de melhorar os destinos da sociedade.
Não é fatal que tais degenerações se passem. O código genético das máquinas eleitorais é dado pela legislação que regula a vida partidária, os actos eleitorais e, co-extensivamente, a indigitação de cargos governativos. Diferentes genes — leis deFINANCIAMENTO, estatutos partidários, limitações de mandatos e nomeações políticas — podem produzir diferentes máquinas. Podem torná-las justos e transparentes meios de exercício da vida política, ou degenerá-las em aparelhos clientelares e opacos. Ao legislador compete decidir.
Qualquer militante sincero deseja ter a certeza de poder encontrar nas estruturas do seu partido uma máquina cujo funcionamento seja claro e esteja ao serviço do programa político em que acredita. Deseja, de igual modo, ter a certeza de que existe um procedimento justo e transparente para concorrer a cargos partidários e governativos, livre de manobras de manipulação de resultados e de cooptações oportunistas de votantes a soldo. A qualidade da democracia começa no seio das eleições para as estruturas partidárias. Sem democracia interna nos partidos, não há democracia externa aos partidos.
Fonte: Esquerda Presente
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