Será que alguém ainda se lembra do velho conceito geopolítico da Guerra Fria, de “estados do Bloco Norte”? Eram três países – Turquia, Irã e Paquistão (às vezes o Afeganistão) localizados ao longo da fronteira sul da União Soviética;
eram considerados, no ocidente, como potencial muralha de contenção contra o avanço da União Soviética em direção ao sul, para o Oriente Médio. Será possível que estejamos assistindo hoje a uma talvez recrudescência de outro “Bloco Norte”? Dessa vez, não seria união contra a Rússia. Bem ao contrário, aqueles três estados manifestam-se calorosamente simpáticos, em vários aspectos, às ideias geopolíticas russas, chinesas e “eurasiáticas”.
eram considerados, no ocidente, como potencial muralha de contenção contra o avanço da União Soviética em direção ao sul, para o Oriente Médio. Será possível que estejamos assistindo hoje a uma talvez recrudescência de outro “Bloco Norte”? Dessa vez, não seria união contra a Rússia. Bem ao contrário, aqueles três estados manifestam-se calorosamente simpáticos, em vários aspectos, às ideias geopolíticas russas, chinesas e “eurasiáticas”.
A crise que se desenrola no Iêmen pode ter-se convertido em parteira desse desdobramento. Se isso estiver correto, o Irã parece ser quem está juntando as peças de uma nova coalizão de poder, frouxa, no Oriente Médio.
A suposta coalizão sunita de dez nações, que teria sido constituída pela Arábia Saudita para dar combate à “ameaça iraniana e xiita” no Iêmen e no Golfo, e que foi fartamente noticiada, já sofreu, recentemente, dois grandes golpes: a inesperada defecção de dois países, Turquia e Paquistão, que deixam a posição de parceiros ativos dos sauditas na campanha militar no Iêmen – depois de haverem sinalizado que se incorporariam.
Sim, chama a atenção que Turquia, Irã e Paquistão são, os três, estados não árabes no Oriente Médio. Mas ao falar de um novo “Bloco Norte”, não se fala aqui de bloco árabe vsbloco não árabe. As diferenças são mais ideológicas e geopolíticas; envolvem diferentes visões do futuro, que podem reformatar o mapa geopolítico no Oriente Médio. O “Bloco Norte” pode vir a constituir um novo bloco informal de poder, que desafia as novas ousadas – e reacionárias – ambições de Riad na região.
No momento, há, em competição, duas narrativas da luta no Iêmen.
Os sauditas vangloriam-se de terem forjado uma ativíssima ousada coalizão sunita, para bloquear a super inflada e propagandeada ameaça de algum imperialismo iraniano/xiita, que estaria ganhando espaço no Iraque, Síria, Líbano, no Golfo e, agora, no Iêmen. Riad teme que o Irã livre-se em breve das sanções impostas pelos EUA, para assumir seu lugar como playerlegítimo no cenário regional. Washington deixou de ser percebida como força confiável anti-Irã.
Mas uma narrativa alternativa sugere que há outra fonte para o medo saudita – fonte que brota não, de modo nenhum, de algum desacordo de base teológica, mas do medo dos objetivos da revolução iraniana: revolução; derrubada de elites empedernidas; postura republicana (antimonarquista); apoio a estruturas democráticas significativas (sim, porque o Parlamento iraniano é o mais ativista e independente dentre, praticamente, todos os estados árabes); desafio direto contra a longa dominação política e militar, pelos EUA, sobre o Oriente Médio; forte apoio à causa palestina; e resoluto nacionalismo. Legiões, na “rua árabe”, sempre admiraram o Irã por sua posição de independência e a bem-informada e lúcida determinação na oposição declarada de Teerã a Washington.
A Turquia, como se sabe, tem a melhor democracia, mais bem estabelecida e em funcionamento, da região, não obstante a dura política doméstica, vez ou outra.
E o Paquistão opera há décadas dentro de estruturas democráticas, ao lado das armadilhas islamistas, embora pontuada por governos militares periódicos.
Esses três estados representam estados “modernos”, em termos de instituições e de suas estruturas bastante desenvolvidas econômicas e de classes.
Esses três estados diferem ainda em mais um aspecto, dos estados árabes do Oriente Médio. Turquia e Irã mantêm fortes identidades nacionais; e o Paquistão esforça-se para crescer a partir de uma forte personalidade regional. Os três são estados multiétnicos, mas a legitimidade do conceito de estado não está exposta a desafios entre as várias etnias, embora o estado ainda tenha de trabalhar para reconciliar algumas insatisfações de minorias domésticas. O futuro conceito e as fronteiras desses estados não estão em discussão (embora o Paquistão tenha sido fortemente abalado pelos respingos destrutivos da fracassada guerra dos EUA no Afeganistão).
Muito mais difícil é dizer o mesmo da maioria dos estados árabes, hoje. Só o Egito tem forte identidade regional dentro de fronteiras geográficas clássicas – e seu potencial como “estado moderno” foi praticamente exaurido por longos duros tempos de mau governo. O Egito já não tem qualquer visão para a região ou para o mundo árabe – nem islamista, nem nacionalista árabe, nem democrática, nem socialista. Nada. E tampouco há outros grandes estados no mundo árabe que sejam hoje politicamente funcionais.
O Iraque tinha uma identidade regional mesopotâmica, mas a guerra a destruiu para qualquer efeito no futuro próximo. Os pequenos estados do Golfo, mesmo que até razoavelmente bem administrados, vivem do petróleo e suas estruturas políticas e sociais são arcaicas e defensivas. Estabilidade, onde há no mundo árabe, é sempre em vasta medida imposta por monarcas e presidentes vitalícios.
O que aconteceu, para que a Turquia se desligasse, agora, da coalizão saudita? Francamente, muito me surpreendeu o apoio inicial de Ancara, em março, para a campanha de Riad no Iêmen; e mais ainda me surpreenderam as duras críticas que Erdoğan distribuiu publicamente contra o papel do Irã na região naquele momento. Essa adesão dos turcos a Riad, que teve vida curta, sempre esteve em direta contradição com políticas que os turcos adotam há muito tempo. Em meu livro recente, Turkey and the Arab Spring, descrevo Ancara e Riad como representantes, na essência, de polaridades ideológicas em vários campos: no sectarismo, na democracia, na globalização, no secularismo, no multiculturalismo, na modernidade e na Fraternidade Muçulmana. O único item sobre o qual estão de acordo é a necessidade de derrubar o governo do presidente Assad da Síria.
Talvez o primeiro movimento de Erdoğan na direção de Riad seja mais bem compreendido se visto como oportunismo – uma preocupação inicial com não ser deixado de fora do que poderia vir a ser uma “nova força árabe”. Depois, durante visita relativamente tensa a Teerã no início de abril, Erdoğan voltou atrás nas críticas contra o Irã e desistiu de participar da campanha saudita contra o Iêmen – o que foi notável “tapa na cara” de Riad. O Irã continua a ser o país mais importante para a Turquia, no Oriente Médio, em termos econômicos, geopolíticos e de energia. E Ancara tem de considerar a grande minoria de alevitas (quase-xiitas), que integra a população turca. Quanto terá havido de influência iraniana, nessa súbita mudança de desejos?
Não menos dramática é a virada paquistanesa. Inicialmente, Islamabad parecia estar considerando positivamente a requisição de soldados paquistaneses, feita por Riad, para a campanha no Iêmen. Mas o primeiro-ministro Sharif do Paquistão, apesar de seus laços pessoais muito próximos com a Arábia Saudita, decidiu levar o pedido à decisão do Parlamento – bem consciente, claro, de que a opinião pública paquistanesa rejeitava firmemente qualquer envolvimento do Paquistão na distante guerra do Iêmen.
Na mesma época, o ministro Zarif de Relações Exteriores do Irã visitou Islamabad, no serviço de arregimentar o Paquistão para uma ação conjunta de todos os muçulmanos a favor de solução pacífica negociada. O quanto o Irã influenciou a mudança de posição dos paquistaneses?
Talvez ainda não se possa falar de um “Bloco Norte” como tal. Mas, sim, faz muito sentido essa confluência de visões entre esses estados sobre várias questões. Um bloco informal desse tipo representaria coalizão significativa mais progressista, moderada e com visão de futuro, que a atual “coalizão sunita” comandada pelos sauditas, que é divisionista, ideológica, destrutiva e sectária.
O Oriente Médio espera ansiosamente qualquer coisa mais progressista que a visão de futuro reacionária que a coalizão saudita-sunita traz. A aprovação de ambas, Rússia e China, às políticas geopolíticas não intervencionistas desse “Bloco Norte”, além do mais, dá ainda maior peso a esses estados. Um “Bloco Norte” desse tipo também representa visão claramente não árabe para o Oriente Médio – em tempos nos quais o próprio mundo árabe parece não ter a oferecer nenhuma liderança visionária e construtiva que represente futuro genuinamente modernizante.
Os árabes podem não querer ouvir o que dizem não árabes, mas eles, afinal, oferecem praticamente nenhuma alternativa na sombria paisagem do mundo árabe. Resta esperar que Washington não se deixe capturar tampouco pelo outro lado – e acabe presa dentro da coalizão árabe “contrarrevolucionária” como base para futuras políticas dos EUA para a região.
Fonte: EmcontraSenso
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