Construído pela primeira vez em 2008, o dispositivo previsto em 1971 vem se mostrando promissor, com aplicações em máquinas inspiradas no funcionamento do cérebro. Em sua coluna de junho, Carlos Alberto dos Santos aponta possíveis caminhos para o estudo dos memristores.
Previsto em 1971 e construído pela primeira vez em 2008, o memristor foi depois usado na elaboração de um chip para ser aplicado em pesquisas de neurociência. (foto: Andy Thomas/ Bielefeld University)
Em janeiro de 2009, apresentei aqui na coluna o memristor, um dispositivo previsto em 1971 pelo engenheiro norte-americano Leon Chua e fabricado pela primeira vez em 2008, nos laboratórios da HP.
Em 2014, escrevi sobre uma aplicação pioneira do mecanismo – um chip neuromórfico fabricado na Universidade Bielefeld, Alemanha, entre 2012 e 2013.
Em 2014, escrevi sobre uma aplicação pioneira do mecanismo – um chip neuromórfico fabricado na Universidade Bielefeld, Alemanha, entre 2012 e 2013.
Agora, um artigo publicado recentemente na Nature me chamou a atenção. Era sobre um biomemristor fabricado com um filme de albumina de ovo. Uma rápida navegação naWeb of Science (WoS) motivou a elaboração desta coluna. Até 1971, só havia um artigo sobre memristores registrado nessa base de dados, justamente aquele assinado por Leon Chua. Entre 1972 e 2007, surgiu um artigo com cálculos de circuitos elétricos contendo memristores. Depois da fabricação do dispositivo em 2008, o número de artigos publicados explodiu: só em 2008 e 2009, a WoS registra 96 artigos, e o crescimento anual foi quase exponencial, atingindo a fantástica marca de 1.383 artigos publicados entre 2008 e 2015.
Os fundamentos do memristor foram praticamente esgotados no primeiro artigo de Leon Chua e descritos na minha primeira coluna sobre o dispositivo. Esses quase 1.400 artigos que vieram depois tratam essencialmente de diversos modos de preparação – como o uso da albumina de ovo de galinha –, de propostas de aplicações tecnológicas e de aprofundamentos conceituais a partir dos fundamentos estabelecidos por Chua, sobre os quais falarei agora.
É interessante retomar a história no ponto em que Leon Chua começou a desenvolver suas ideias. Antes da descoberta do memristor, os elementos passivos de um circuito elétrico eram três: resistor, capacitor e indutor, cada um associado a uma propriedade que o caracteriza, respectivamente resistência (R), capacitância (C) e indutância (L). Além disso, cada circuito elétrico é regulado por quatro variáveis: corrente elétrica, carga elétrica, voltagem e fluxo magnético.
Até 1971, das seis relações possíveis entre as quatro variáveis, apenas uma era desconhecida. Ninguém sabia o que resultaria da relação entre fluxo magnético e carga elétrica. Leon Chua postulou, então, a existência do memristor e definiu a memresistência a partir da relação entre essas duas variáveis. Na linguagem científica, a memresistência é a derivada do fluxo em relação à carga.
Memória de metal
Um aspecto pouco explorado nos artigos de divulgação sobre o memristor, que tem importância essencial na sua utilização tecnológica, refere-se ao seu princípio de funcionamento, descrito no trabalho sobre a sua fabricação na HP. Como mencionei na primeira coluna, o dispositivo preparado pela equipe da HP era uma espécie de sanduíche para explorar os recursos da eletrônica molecular – não tinha nada a ver com o memristor; aliás, a equipe envolvida nem sabia da existência do artigo de Leon Chua.
As partes externas do sanduíche eram camadas de platina (Pt) com espessura inferior a três nanômetros (o nanômetro é a bilionésima parte do metro). A primeira camada de platina foi oxidada, para formar o óxido PtO2, e, sobre ela, foi depositada uma finíssima camada molecular de um composto orgânico para facilitar a fixação da próxima camada, constituída de titânio (Ti), com espessura inferior a três nanômetros. Finalmente, vinha a segunda camada de platina.
O dispositivo funcionou como uma memória permanente, com resultados espetaculares, mas seus desenvolvedores não sabiam explicar o mecanismo responsável pelo comportamento. Seis anos se passaram até que alguém da equipe descobriu o artigo de Chua e eles perceberam que estavam diante de um memristor. Portanto, foi por acaso que este dispositivo foi fabricado pela primeira vez.
Depois das reações químicas no interior do sanduíche, o dispositivo fabricado na HP ficou como esse esquematizado na figura. Reduziu-se a um sanduíche com duas camadas no recheio – a camada TiO2 apresenta alta resistência elétrica e a outra, um óxido deficiente em oxigênio, apresenta baixa resistência, ou alta condutividade, o que dá no mesmo. Na linguagem da física de semicondutores, diz-se que esse memristor é uma junção TiO2, onde um lado é dopado (deficiente em oxigênio) e o outro é puro.
Quando se aplica uma voltagem positiva no terminal dopado, as lacunas, que se comportam como cargas positivas, migram para o outro lado, aumentando a espessura da camada condutora e, assim, diminuindo a resistência do sanduíche. Diz-se que, nesse estado, o dispositivo está “ligado”, correspondendo ao bit “0” ou ao bit “1”, como preferir. Quando se aplica uma voltagem negativa, esta atrai as lacunas, diminuindo a espessura da camada condutora, o que significa dizer que a resistência aumenta e o dispositivo fica no estado “desligado”.
Olhar para o futuro
O pessoal da HP logo percebeu o detalhe que mencionei acima, geralmente esquecido nos artigos de divulgação científica sobre o memristor. Manipulando o valor da voltagem aplicada, pode-se ter diferentes espessuras das camadas com alta e baixa resistência, ou seja, em vez de um sistema binário convencional, com dois estados “0” e “1”, o memristor pode ter incontáveis estados, cada um correspondendo a uma relação entre as espessuras das camadas.
Assim, o memristor é um sistema analógico, e isso faz dele um sério candidato a simulador do comportamento biológico, digamos, como elemento central em circuitos neuromórficos. Por exemplo, a condutividade nos canais de potássio e sódio, que deu oNobel de Fisiologia ou Medicina de 1963 a John Carew Eccles, Alan Lloyd Hodgkin e Andrew Fielding Huxley , pode ser associada a um memristor.
A principal propriedade do memristor é que, uma vez desligada a fonte de alimentação, as camadas puras e dopadas permanecem no estado em que se encontram e, quando a fonte é ligada, o memristor inicia do ponto em que estava. Ou seja, trata-se de um dispositivo versátil, que pode ser usado em circuitos analógicos ou digitais, e também como memória não volátil. É por essas propriedades que as principais aplicações devem surgir.
Nesse contexto, o uso do memristor para simular sinapses em circuitos neuromórficos é uma das possibilidades relatadas na literatura. Outro uso possível seria a incorporação de memristores em circuitos computacionais usuais, para aumentar a capacidade de armazenamento e processamento de computadores – para este tipo de equipamento, no entanto, ainda não há protótipos registrados.
Fonte: Ciência Hoje
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