De Curitiba a Seul, o ano de 2016 foi rico em espetáculos políticos grotescos em todos os sentidos e todos os continentes, mas nenhum é tão estrambótico quanto o Kremlin ser acusado pela CIA e pelos democratas de ter interferido na eleição presidencial dos Estados Unidos a favor de Donald Trump, difundindo “notícias falsas” e espionando os democratas para vazar e-mails comprometedores.
Exceto, talvez, o próprio eleito dar de ombros e negar credibilidade ao serviço de inteligência que está prestes a dirigir. “São os mesmos que afirmavam que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa.”
Exceto, talvez, o próprio eleito dar de ombros e negar credibilidade ao serviço de inteligência que está prestes a dirigir. “São os mesmos que afirmavam que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa.”
Com razão, é preciso admitir. Nada melhor para demonstrar a mendacidade da comunidade de inteligência estadunidense do que lembrar o infame episódio no qual Bush filho, Tony Blair e seus respectivos serviços de inteligência forjaram a patranha que serviu de pretexto à invasão e à pilhagem do petróleo do Iraque ao custo de centenas de milhares de vidas, trilhões de dólares e a desestabilização irreversível do Oriente Médio.
Queixar-se da espionagem alheia é ainda mais hipócrita por parte do país que admitiu espionar até chefes de governo e de Estado de países ricos e aliados como Angela Merkel e François Hollande. E absurda do ponto de vista do Hemisfério Sul, onde é notória a interferência da CIA e de fundações estadunidenses nos processos eleitorais, na construção da opinião publicada e na derrubada de governos eleitos.
Entretanto, a noção ganha espaço também na Europa, onde o canal RT (Russia Today) teve suas contas no banco britânico NatWest subitamente encerradas em outubro. O Parlamento Europeu aprovou em novembro, por 304 votos a 179, uma resolução proposta por conservadores tradicionais que, em tom de Guerra Fria, pede a Bruxelas para “responder à guerra de informação movida pela Rússia para distorcer a verdade, provocar dúvidas, dividir a UE e seus parceiros estadunidenses, paralisar o processo de tomada de decisão, desacreditar as instituições e incitar ao medo e à incerteza entre os cidadãos”.
Quanto aos populismos em ascensão, apesar de seu nacionalismo, festejam os sites russos RT e Sputnik, simpáticos a Vladimir Putin, tanto quanto o estadunidense Breitbart News, de Steve Bannon, decisivo para eleger Trump e prestes a lançar edições francesa e alemã para apoiar as campanhas de Marine Le Pen e Frauke Petry.
Na Itália, o Movimento Cinco Estrelas é acusado pelo BuzzFeed News de construir “uma rede em expansão de sites e contas em redes sociais para espalhar notícias falsas, teorias conspiratórias e histórias pró-Kremlin a milhões”, cujos núcleos seriam o blog pessoal de Beppe Grillo e o site TzeTze, que pertence ao partido.
Diferentes instituições escolheram como “palavras do ano” post-truth em inglês e postfaktisch em alemão, ambas traduzíveis como “pós-verdade”. Trata-se de um nome novo para os embustes de sempre, de uma maneira de afetar sofisticação para desqualificar o ponto de vista adversário ou existe de fato alguma tendência nova a justificar o debate?
Como insiste o jornalista Glenn Greenwald em polêmicas públicas, “notícias falsas” é um termo tão maleável quanto “terrorismo” e igualmente passível de manipulação retórica. Pode significar desde desinformação consciente até teorias conspiratórias e mesmo informações verdadeiras obtidas de maneira tida como ilegítima, como os vazamentos do WikiLeaks, ou divulgadas de maneira parcial, como também frequentemente fazem as mídias “sérias”.
Falar da mentira como fenômeno político novo e associado a “ideologias exóticas”, como gostavam de dizer os ditadores do regime militar brasileiro, é falso. Antes de existirem sites e redes sociais, embustes eram divulgados pela mídia tradicional e boatos transmitidos boca a boca.
Quem viveu a campanha de 1989 ainda se lembra de como eleitores de classe média acreditavam piamente que Lula ia confiscar suas poupanças e obrigá-los a dividir seus apartamentos com sem-tetos e de como jornais e tevê relacionaram falsamente o sequestro de Abilio Diniz ao PT. A manipulação política dos boatos é tão antiga quanto a própria política, das acusações a Sócrates na Atenas clássica aos Protocolos dos Sábios de Sião do czarismo.
Dito isso, na medida em que o meio é (até certo ponto) a mensagem, há uma novidade. Empresas como Google e o Facebook facilitam a difusão de fraudes e as tornam mais atraentes. Por um lado, pelo ganho simbólico de popularidade nas redes sociais, tanto mais rápido e fácil quanto mais sensacionalistas forem as postagens. Por outro, pela remuneração em dinheiro.
Seus sistemas permitem aos autores dessas publicações embolsar certa quantia a cada clique ou visualização de anúncios a elas vinculados, frequentemente de empresas supostamente respeitáveis que parecem emprestar credibilidade ao conteúdo.
O Washington Post entrevistou um “empreendedor” que diz ter preferido Hillary Clinton, mas tirado 10 mil dólares mensais do AdSense (serviço de publicidade do Google) inventando histórias islamófobas e pró-Trump. Em Veles, cidade de 50 mil habitantes na Macedônia, centenas de adolescentes ganham milhares de euros por mês com o mesmo “trabalho”, com o apoio entusiástico da prefeitura.
Não que democratas, liberais e socialistas sejam imunes a crer em notícias falsas e reproduzi-las sem verificação, mas o fervor, o dogmatismo e o baixo nível cultural fazem dos partidários da direita populista excelentes multiplicadores de qualquer absurdo que pareça confirmar suas crenças.
Uma pesquisa da Ipsos mostra que 75% das notícias inequivocamente falsas mais notórias na campanha dos EUA foram acreditadas pelos pesquisados. Notícias verdadeiras foram acreditadas apenas um pouco mais: 83% das vezes.
O mais surpreendente é que, embora as pessoas acreditem mais em mentiras que confirmem suas ideias, frequentemente as aceitam mesmo quando as contrariam. Uma mistificação segundo a qual um agente que investigava Hillary havia sido encontrado morto foi acreditada por 85% dos republicanos e 52% dos democratas.
Não se sabe o quanto tais notícias influenciaram a eleição, mas é certo que inspiram muitos dos atos de intolerância contra minorias e mulheres pós-eleição e pelo menos um atentado. Em 4 de dezembro, um republicano fanatizado foi preso após disparar contra uma pizzaria em Washington, que, segundo falso boato difundido nas redes, seria sede de uma rede de pedofilia e tráfico de crianças comandada por Hillary e seu chefe de campanha.
A saturação do ambiente digital por fraudes de fato pode ter criado um clima no qual se torna impossível criar consensos sobre a realidade, mesmo quando respaldados pela maior parte da mídia tradicional. Ou pelo menos um ceticismo generalizado quanto ao valor da objetividade.
“É como no colégio, quando torcíamos para o nosso time vencer, mesmo quando era ruim”, disse um torcedor, digo, eleitor de Trump entrevistado pelo Boston Globe. E esse clima é cultivado pelo presidente eleito, para o qual parece irrelevante se suas declarações pelas redes sociais são verificáveis, de “o aquecimento global foi uma fraude inventada pelos chineses” a “eu venci no voto popular se deduzirem os milhões que votaram ilegalmente”.
Viu-se algo assim nos anos 1930, mas a internet permite mais agilidade e torna dispensável o controle totalitário explícito da mídia tradicional, gradualmente relegada à irrelevância enquanto tenta sobreviver à custa de amenidades caça-cliques.
É um fenômeno importante, mas atribuí-lo a Putin pelos rumos dos EUA e Europa é apenas mais uma notícia falsa de tipo mais tradicional e uma tentativa de criar um macarthismo às avessas. E que, ao atribuir-lhe tamanha onipotência, apenas lhe afaga o ego e talvez lhe reforce o prestígio ante russos e aliados.
Fonte: A Carta Capital
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