Já publiquei, à revelia, alguns de seus escritos aqui.
Mas, além da qualidade – do pensamento e do texto – é especial ter um artigo de Nílson Lage redigido especialmente para este Tijolaço por dois motivos, que fundem razão e emoção.
Mas, além da qualidade – do pensamento e do texto – é especial ter um artigo de Nílson Lage redigido especialmente para este Tijolaço por dois motivos, que fundem razão e emoção.
O primeiro é a coerência de Lage. À distância, sempre a acompanhei – ou melhor, acompanhamos, eu e outros muitos, centenas, de seus ex-alunos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, há 37 anos.
A segunda razão é perceber que, também nos indivíduos, se expressa a continuidade do sentimento dos povos em busca de seu destino. E que, assim, o fio da História não se tece apenas com fatos, porque os fatos murcham sem luz, o pensamento e a ação humana que os empurram a vencer a inércia do status quo.
Possivelmente vou levar uma bronca por este “nariz de cera”, mais ainda porque Lage foi juvenil no time de craques que fez a histórica reforma no Diário Carioca, que inaugurou o moderno jornalismo no Brasil e adotou o lead no lugar da lenga-lenga que escrevo, desobedecendo a tudo o que me ensinou.
Como já as levei, quase 40 anos atrás, vale a pena. Elas, sempre, como as próximas linhas, me fizeram aprender.
Nos próximos, professor, prometo, calo os dedos e entramos direto no assunto.
O segredo de Marina
Nilson Lage*
Desde os governos de Getúlio Vargas, que formataram a vida pública brasileira, as lutas políticas se vêm travando entre postulações ideológicas que conflitam em duas vertentes:
• o nacionalismo (entendido como afirmação do país, território e Estado, não de etnias) oposto ao liberalismo modernizador ou entreguismo (objetivamente, a submissão à esfera de poderdos Estados Unidos);
• a produção de conhecimento próprio da realidade nacional, oposto à importação acrítica da reflexão estrangeira (americana, europeia – dominantemente francesa) fundada em outras experiências nacionais.
A primeira dessas contradições é bem conhecida: opôs Getúlio (e os trabalhadores organizados, a instituição acadêmica da época, parte das forças armadas – essencialmente o exército – , produtores rurais voltados dominantemente para o mercado interno) à UDN (a maior parte da elite jurídica e tecnológica, setores bancários, exportadores e importadores).
Da vitória da corrente entreguista em 1964 – que não durou muito: a lógica do pensamento militar logo geraria o retorno a soluções nacionais em áreas sensíveis, como a informática, a energia nuclear e a indústria de defesa – resultaram o aguçamento dos conflitos internos no país e enorme desgaste político das forças armadas, antes (no tenentismo, na FEB) tidas como vanguarda modernizadora.
O instrumento para cooptação dos militares foi a aceitação de um único rótulo para todo pensamento político que não convergisse com os interesses multinacionais – o “comunismo”, então, como, hoje, o “islamismo” ou o “terrorismo.” Ora, os partidos comunistas no Brasil sempre foram essencialmente organizações de classe média, tocadas por militares, principalmente na década de 1930, e por intelectuais (dos melhores do país), no pós-guerra. Tratou-se de ocultar a natureza nacional específica do trabalhismo de Vargas e seu antagonismo histórico às tentativas de organização das classes trabalhadoras pelos comunistas.
O entreguismo triunfou ao destruir o que restava da imprensa que poderia contrariá-lo: a Rádio Nacional, poderosa estrutura de Estado resistente ao engajamento político, foi anulada na década de 1950, e a mídia perdeu, em poucos anos, núcleos de inteligência consolidados ao longo de décadas, em torno de veículos como o Correio da Manhã, oDiário de Notícias ou o Jornal do Brasil.
O discurso único, propagado por poucas empresas integradas ao setor bancário e coordenadas no plano continental, sobrepôs-se à diversidade da produção cultural antes característica do país, tanto em termos regionais quanto de classes sociais, e manteve aceso o espírito do liberalismo, que teria seus anos de glória nas negociatas da privatização, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
A reação inevitável sobreveio com a eleição de Lula e seu governo, que recuperou em pouco tempo os ideais de Vargas. Foi um processo sofrido (os governos militares toleravam, até certo o ponto, o PT como alternativa “moderna” ao getulismo e ao comunismo; essa imagem foi ainda dominante na campanha eleitoral de 1979, que contrapôs Lula a Brizola) e incompleto (há núcleos de resistência, aqui e ali), mas dele resultou mudanças sociais importantes e a afirmação da eficácia de soluções econômicas não liberais na linha do pensamento keynesiano.
Diante dos resultados alcançados, resta ao conglomerado neoliberal – ou entreguista –denunciar a corrupção (que é estrutural e, no plano do governo, pode apenas ser combatida) e prenunciar tragédias futuras.
No entanto, há novo espaço a ser ocupado. A invasão cultural que o Brasil sofreu nas últimas décadas trouxe não só avanços nas ciências da natureza, na tecnologia agrícola e na medicina, mas também promoveu transformação radical no pensamento dominante em ciências humanas e sociais, com ampla repercussão no discurso dos meios de comunicação e no comportamento de grupos intermediários nos centros urbanos.
Na Antropologia, na Sociologia e nas ciências econômicas, o que se defendia era a administração e a superação paulatina das contradições; agora, o que se busca é expô-las e aguçá-las.
Na sociedade real, isso deságua em conflitos que tendem a submergir a política. Num país em que a maioria das famílias é multirracial, o realce dado aos conflitos étnicos fere relações consolidadas, com grande custo emocional; quando a tolerância sempre se antecipou à lei, em questões como a homossexualidade, a sexualidade adolescente, o adultério etc., a exposição agressiva desses comportamentos motiva o questionamento de valores e desperta reações muito variadas. Disso tiram proveito as novas religiões pentecostais que se implantaram no Brasil ocupando o vazio deixado pelo recuo institucional de igreja católica sob o reinado de Vojtila e Ratzinger.
É para esse espaço – menos de intolerância, mais de perplexidade – que converge parte do pensamento oposicionista, em sua falta de perspectivas no quadro da política tradicional.
Eis aí o cacife político de Marina Silva.
Fonte: O Tijolaço
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