Assume relevo a questão do celibato sacerdotal, enquanto crescem os sinais de mudança
A questão do celibato eclesiástico é antiga e controvertida. Tema de debate entre teólogos, bem como fofoca de gente comum.
Entre o Vaticano clerical e a Itália, sua anfitriã e femininamente “corruptora”, o fenômeno dos padres com amante, por evidentes razões, teve sempre uma intensidade especial. A escabrosa “ligação” foi tratada em livros e até no cinema, como quando o diretor Dino Risi, em 1971, dirigiu Marcello Mastroianni e Sofia Loren, deliciosos nos papéis do padre de carreira e sua aspirante a esposa (La Moglie del Prete, A Mulher do Padre).
Até agora a problemática do celibato dos sacerdotes católicos foi enfrentada sobretudo do ponto de vista masculino, mas o pontificado de Francisco, com sua abertura para o diálogo, está criando espaços que são ocupados por iniciativas de signo diferente.
“Querido Papa Francisco, somos um grupo de mulheres de todas as partes da Itália (e não só) que lhe escreve para quebrar o muro de silêncio e indiferença com que nos deparamos todos os dias. Cada uma de nós está vivendo, viveu ou gostaria de viver uma relação amorosa com um padre por quem está apaixonada.” Assim começa a carta assinada (com apenas o nome e a inicial do sobrenome, cidade de origem e número de telefone) por 26 mulheres que afirmam viver relações sentimentais com sacerdotes. As signatárias se definem como uma “pequena amostra”, mas afirmam falar em nome de tantas outras que “vivem no silêncio”. A missiva, publicada tempos atrás pelo site Vatican Insider, espalhou-se em poucas horas pela imprensa internacional, suscitando vivíssimo interesse. Não teve confirmação oficial nem foi desmentida, mas algumas fontes indicam que foi divulgada por ambientes muito próximos ao papa – sinal de atenção às corajosas mulheres que apelaram a Bergoglio para pedir-lhe, em última instância, a revisão do celibato.
Vale lembrar que o celibato obrigatório não é um dogma, mas uma lei da Igreja, estabelecida em meados do século XVI pelo Concílio de Trento. O papa que o convocou foi Paulo III (foto abaixo), aliás, Alessandro Farnese, pai de quatro filhos. Além das contradições terrenas de muitos papas do passado, é fato que durante o primeiro milênio da Igreja Católica o celibato não era obrigatório e, como o próprio cardeal Bergoglio escreveu, “até 1100, havia quem o escolhesse e quem não”.
A recente carta das 26 mulheres não é novidade absoluta: foi precedida por iniciativa similar de dez “concubinas” que escreveram a Bento XVI em 2010. Essas manifestações revelam a existência de uma rede internacional de pessoas que dialogam sobre a questão, compartilham as próprias experiências e coordenam suas ações, como na associação Vocatio (Vocação) ou no site Il Dialogo. Aspecto ainda mais importante, essas cartas demonstram que o universo feminino sai do silêncio e reivindica sua dignidade.
Partindo dessa tomada de consciência, novas testemunhas têm vindo à tona, como é o caso recente de uma das 26, que, entrevistada pela agência católica Adista, pretende manter o anonimato, mas oferece uma interpretação derradeira da carta escrita em termos mais diplomáticos com suas colegas: “Os tempos estão maduros para enfrentar finalmente a questão escabrosa do celibato obrigatório. E se nós, mulheres, não tivermos a coragem de tentar, não haverá mudança. Acreditamos que Francisco, apresentando-se como o papa da escuta e da misericórdia, não pode fingir que esse problema não existe. No íntimo do seu coração, ele deve saber que é possível ser sacerdote mesmo sendo casado”.
Dados oficiais do Vaticano indicam em 46 mil o número de renúncias ao estado clerical por parte de padres, durante os anos 1970-1995, mas a avaliação de vários estudiosos e da entrevistada anônima é bem diferente: “O fenômeno é muito mais extenso do que se possa perceber do lado de fora. Só o contato com outras mulheres na mesma condição, quebrando as barreiras da clandestinidade, pode revelar a amplitude e a profundeza dessa realidade, com todos os seus limites e fragilidades”.
Em suas palavras finais, cai qualquer sentido de culpa e se define a reivindicação: “Quando um padre ama realmente e é amado por uma mulher, os dois vivem um amor concreto. Experimentam toda a beleza de uma relação, feita de afetividade e sexualidade. Só o pavor de uma mudança autêntica pode empurrar setores da Igreja para uma atitude conservadora. Diante de nosso sofrimento, a Igreja deve recolocar seus filhos no centro da atenção. Nesse sentido, esperamos uma resposta clara do papa Francisco”.
Sem medo de se expor, Stefania Salomone, uma das dez signatárias da carta de 2010 e colaboradora do site Il Dialogo, declara com particular firmeza: “Com base em minha experiência, uma porcentagem muito alta do clero teve ou tem relações amorosas com homens e mulheres. Ou, pelo menos, atravessou o momento da paixão, que foi sufocada ou sublimada, como se costuma dizer. Trata-se de mais de um terço dos sacerdotes, estimativa oficiosa que circula em ambientes vaticanos”.
Mulheres cansadas de hipocrisia e vida dupla reclamam respeito e direitos. Merecem respostas da Igreja (e não somente).
Fonte: A Carta Capital
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