Situação similar é vivida por Maria de Fátima, 42 anos, em Cujubim, a quase 160 km de Porto Velho.
Chegar ao assentamento onde Maria de Fátima vive é quase como participar de um rally, com veículos precisando vencer trechos de barro puro, em outros cascalhos, com muita área desmatada, florestas, fazendas e resquícios de queimadas.
Chegar ao assentamento onde Maria de Fátima vive é quase como participar de um rally, com veículos precisando vencer trechos de barro puro, em outros cascalhos, com muita área desmatada, florestas, fazendas e resquícios de queimadas.
Cerca de cinco quilômetros (km) antes de entrar no assentamento 10 de Maio, no município de Buritis (RO), uma placa avisa aos que se aproximam: “Quem estiver de moto, tire o capacete. Quem vier de carro, é necessário abaixar os vidros”. O aviso não obedece à ortografia da norma vigente no Brasil, mas o recado é bem claro. É uma reação dos pequenos agricultores ameaçados de morte por pistoleiros a mando de latifundiários. E nesse pedaço da Amazônia, ameaças de morte não costumam ficar na promessa.
Maria Franco Cardoso, 34 anos, sabe disso. Ela escapou de um atentado uma vez, quando ia com o marido de moto para o centro de Buritis, distante cerca de 300 km da capital rondoniense de Porto Velho. Em outra ocasião, foi agredida por policiais militares que obrigavam as famílias a abandonar a área improdutiva ocupada por elas numa área distante cerca de 40 km do centro de Buritis, onde o acesso, por estrada de terra e barro, é complicado e praticamente obriga as famílias de trabalhadores rurais a permanecer quase que o tempo todo isolados de tudo.
O ombro direito de Maria Franco traz as sequelas da agressão policial. Apresenta inchaço permanente. “Um calombo”, como ela mesma diz. Resultado da coronhada de um rifle desferido por um policial militar conhecido pelo apelido de ‘Domador’, um dos mais violentos na repressão aos pequenos agricultores assentados. O auge dos enfrentamentos ocorreu em 2013, quando o latifundiário Caubi Moreira Quito entrou no assentamento acompanhado com uma equipe da PM. A intenção era desalojar os trabalhadores rurais.
O assentamento existe há quase três anos. São 2 mil alqueires divididos em 160 lotes que abrigam aproximadamente 20 famílias. Em 2015 o Incra reconheceu o assentamento. Isso não tem sido o suficiente. Há pressões por parte de fazendeiros, alguns, segundo os moradores, políticos. O principal problema atualmente é definir a quem cabe a responsabilidade pelo assentamento. As prefeituras de Buritis e Alto Paraíso empurram uma para a outra a quem cabe atender aos assentados.
Isso porque o assentamento, embora esteja no mapa ligado a Buritis, está muito mais próximo de Alto Paraíso. “A gente nunca sabe a quem recorrer”, diz a assentada Custódia Celeste, 49 anos. Escola para as crianças, por exemplo, não há.
Maria Franco é uma das pioneiras do assentamento e conta que passou por todas as privações possíveis. Só encontra conforto na religião para superar as adversidades. “Para quem não tem nada, esse pedaço de chão é tudo”, diz ela, enquanto prepara o almoço simples num fogão à lenha.
O conforto da religião é proporcionado uns 300 metros da casa de Maria Franco. É onde, em uma barraca com bancos de madeira e telhados de palha, funciona um templo evangélico. É lá que ela ouve atentamente à pregação do pastor Valmir Banazasser. Ele fala sobre justiça na terra.
Quando o culto acaba, Maria Franco diz que precisa ir até o centro de Buritis. É quando ela e o marido começam a articular como isso vai ser feito. A regra básica é evitar voltar pelo mesmo caminho da ida. Na verdade, só existem dois caminhos para se chegar ao assentamento e ambos são ladeados por imensas áreas descampadas, fazendas de gado e floresta fechada. Em outras palavras, não há muita segurança no deslocamento, palco ideal para ataques surpresa. “Por muito tempo, sempre achei que cada ida era um caminho sem volta”, diz.
Ouvindo a conversa, o pastor Valmir confirma que a situação é sempre tensa. “A luta de todos no assentamento é uma luta de fé. Cada um aqui já viveu situações de extrema dificuldade e medo”, afirma.
Ameaças
Em dezembro de 2015, numa manhã de chuva fina, Maria de Fátima era uma das representantes de 38 famílias que, num barracão, ouvia atentamente o que diziam os servidores enviados pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Era uma reunião que iria definir detalhes como cadastramento de famílias para o envio de cestas básicas, entre outros passos para regularizar efetivamente o assentamento.
Maria de Fátima, uma mulher baixinha de fala rápida e coragem maior que seu tamanho, lidera um grupo de assentados cercados por duas fazendas. Com o apoio da Liga dos Camponeses Pobres, ela se considera uma sobrevivente.
“Já queimaram barraco meu e colocaram uma arma na minha cabeça pra me expulsar daqui”, conta enquanto corta uma melancia colhida na roça da família. A ameaça veio de policiais militares cumprindo ordem de despejo.
Foi um dia de pura tensão, menos de dois anos atrás. “Meu marido estava chegando quando percebeu que tinha coisa errada. Ele foi abordado pela polícia, mas disse que não conhecia a gente. Teve que passar direto com a moto”. Naquele final de tarde, Maria de Fátima viu, sob a mira de um revólver, o barraco de madeira ser queimado, com todas as coisas dentro.
“Depois tentaram matar meu marido”, lembra. Mas as balas que deixariam Maria de Fátima viúva acabaram encontrando outro corpo. O de Maurício Silva, 47 anos. Ele não esquece o dia em que quase morreu, em novembro de 2015.
“Era sete da noite. Eu estava sentado em um banco. Meu cachorro ouviu um barulho e começou a latir. Achei que era um tamanduá, aí levantei e vi um vulto. Só deu tempo de dar um pulo pra trás”.
Como resultado daquela noite, Maurício ainda tem oito projéteis de chumbo no corpo. Para provar, o agricultor exibe uma imensa cicatriz que cobre toda a barriga dele.
“Depois desse dia passei a tomar muito mais cuidado com as idas e vindas no assentamento”, diz Maria de Fátima.
A cabeça de Maria de Fátima ficou a prêmio. Uns diziam que custava R$ 5 mil. Outros R$ 10 mil. O fato é que ficar perto dela era um risco. “Teve uma reunião que ninguém quis ficar do meu lado. Eu estranhei. Depois é que me contaram”, relata.
A advogada da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Porto Velho, Cintia Paganoto Rodrigues, destaca que esta é uma violência que tem atingido cada vez mais as mulheres. “Em toda a Amazônia, as mulheres estão cada vez mais na linha do tiro. Elas passaram a ser cada vez mais protagonistas, mas também cada vez mais as ameaçadas de morte”, explica.
‘Epidemia de homicídios’
Em 2015, a violência no campo voltou a patamares históricos. Só em Rondônia foram 20 assassinatos e 3928 conflitos na luta pela posse da terra, segundo relatório da CPT. Há ainda 23 pessoas que estão sob ameaça de morte e quatro tentativas de assassinato. Junte-se a isso mais de 3 mil conflitos pela questão da água e se tem um cenário de guerra. Silenciosa para os grandes centros, mas ainda assim, guerra. Não é a toa que a Anistia Internacional classificou como ‘epidemia de homicídios’ os dados sobre violência no campo no Brasil em 2015.
À época da divulgação desses dados, o Ministério do Desenvolvimento Agrário contestou os números da CPT. Segundo o MDA foram ‘apenas’ 16 assassinatos em todo o Brasil e não os 50 em todo o território nacional denunciados pela pastoral.
Como resposta a essa violência, o Governo do Estado rondoniense tentou minimizar os danos. A Secretaria de Segurança formou um grupo de trabalho sobre os conflitos fundiários (GT-Terra/RO). A ideia primordial foi a de mapear os principais focos de conflitos, causas e apresentar propostas capazes de nortear uma pacificação rural.
O Grupo de Trabalho foi constituído por representantes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-RO), Coordenação Estadual de Regularização Fundiária (Terra Legal), Secretaria de Estado da Segurança, Defesa e Cidadania (Sesdec), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama-RO), Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam-RO), Ministério Público Federal (MPF-RO) e Ordem dos Advogados do Brasil (RO). O resultado foi o envio de um relatório encaminhado à Ouvidoria Agrária do Incra, em Rondônia e Brasília. Em 10 páginas o relatório aponta 88 focos de conflito no estado. O problema é que as soluções ainda não chegaram.
Para Fernanda Kopanakis, advogada e doutora em Planejamento Urbano e Regional, esse é “basicamente” um conflito do capital. “Tem muitos conflitos aqui que são de trabalhadores rurais com indígenas, índios com seringueiros, seringueiros com garimpeiros e isso forma um ciclo vicioso. Não é a toa que existem esses conflitos", afirma. Fernanda já foi secretária de Habitação de Porto Velho, no início da administração do prefeito Roberto Sobrinho (PT) e estuda a questão agrária no Estado.
É uma violência que estende os tentáculos da forma mais imprevisível possível. A própria Fernanda sentiu isso de perto. Uma das coordenadoras do Cineamazônia, uma mostra itinerante de cinema que percorre distritos e comunidades afastadas dos grandes centros, na Amazônia, Fernanda e o restante da equipe foram ameaçados por um madeireiro em Vista Alegre do Abunã, distrito de Porto Velho.
O madeireiro se aproximou da equipe depois da exibição dos filmes e disparou a ameaça. “Vocês estão enganando esse povo com esse negócio de meio ambiente. E tem mais, eu fumei, bebi e estou cheirado. O recado está dado”, declarou. Por via das dúvidas a equipe achou melhor não ignorar a ameaça. Todos se recolheram cedo ao hotel.
A reportagem enviou um email a Assessoria de Comunicação do Governo do Estado de Rondônia sobre as atuais ações a respeito dos conflitos agrários. Até o fechamento da edição desta série de reportagens, não havia ocorrido resposta.
Fonte: Brasil de Fato
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