Para o economista, é armadilha estabelecer idade mínima sem a existência de uma rede de proteção social
A população envelhece, a taxa de natalidade cai e, com esses argumentos, o governo Dilma Rousseff defende uma reforma da Previdência Social com foco na redução da idade de aposentadoria.
Trata-se, no entanto, de um desvio de foco, justificado com projeções atuariais sem base técnica.
Trata-se, no entanto, de um desvio de foco, justificado com projeções atuariais sem base técnica.
Além disso, se a dívida bruta como proporção do PIB explodiu, foi por causa dos juros, não da Previdência, defende o economista Amir Khair, ex-secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo e consultor nas áreas fiscal, orçamentária e tributária, na entrevista a seguir.
CartaCapital: Por que a reforma da Previdência é considerada urgente pelo governo?
Amir Khair: O governo precisa focar o problema mais importante das contas públicas e diz que é o da Previdência, mas não é. Ele está tentando enganar a todos. O problema central das contas públicas, que vem de alguns anos e já foi pior em certos momentos como no governo de Fernando Henrique Cardoso, é o fato de você ter uma conta de juros extremamente elevada no País.
Juros fazem parte da contabilidade pública, da despesa, não são algo apartado do orçamento. Eles são classificados como despesa corrente, do mesmo modo que a despesa de pessoal o é. Em 2015, por exemplo, os juros foram responsáveis por 80% do déficit do setor público. Aqui no Brasil se discute o déficit primário, e não se enfrenta a questão dos juros. O resultado disso é a explosão da dívida bruta como proporção do PIB, por causa da taxa Selic historicamente elevada e dos swaps cambiais, que são outra loucura do Banco Central.
CC: Qual é o papel do BC nessa história?
AK: O grande responsável pela atual situação das contas públicas no Brasil não é o Tesouro Nacional, e sim o Banco Central. Isso não vem sendo discutido porque a mídia interditou o debate sobre a questão fiscal no País. Você dificilmente verá nos meios de comunicação a expressão déficit nominal, que é, em qualquer país, o que mede o déficit, e que consiste no déficit primário mais o déficit com juros.
A situação é semelhante àquela de uma pessoa que ganha um salário de cinco mil reais, gasta quatro mil, portanto tem uma economia de mil, mas está dependurada no banco com cartão de crédito e paga 10% de juros sobre um empréstimo de 50 mil reais. Então ela tem de pagar todo mês cinco mil reais. Se poupa 1 mil, o “resultado primário” dela, tem um déficit nas suas contas de quatro mil reais.
CC: Como evoluíram as despesas da Previdência?
AK: Em valores de dezembro, portanto comparáveis, entre 2014 e 2015 as despesas com os benefícios previdenciários tiveram um aumento de 6 bilhões de reais, o que representa 1,4% em valores reais. No entanto, os juros cresceram 130 bilhões de reais no mesmo período. Ou seja, 21 vezes mais que o déficit dos benefícios previdenciários.
CC: Argumenta-se que a Previdência vai estourar porque o número de idosos crescerá e não haverá recursos para pagar a aposentadoria nas gerações futuras.
AK: Eles não sabem discutir nem têm projeções atuariais para fazer qualquer afirmação sobre o déficit futuro da Previdência.
CC: Por quê?
AK: Porque não existe estudo técnico sério no Brasil sobre a questão previdenciária.
CC: O cálculo atuarial tem alguma tradição no País, mas pode-se confiar nele ou não. É esse o problema?
AK: Se você for examinar os poucos estudos feitos sobre a questão das projeções atuariais, constatará que estão todos tecnicamente furados, a começar por aqueles realizados pelo próprio governo. Quando houve o Fórum Nacional da Previdência Social em 2007, aberto pelo ex-presidente Lula, em um formato reeditado hoje na discussão tripartite com representações de centrais sindicais, do setor empresarial e do governo, houve previsões de técnicos do Ministério da Previdência assustadoras, que eram mandadas ao encontro.
Eu assessorava tecnicamente o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, que centralizava a assessoria às centrais sindicais. Pedimos para informarem as premissas adotadas e fornecerem a memória de cálculo. Nada além do que a Lei de Responsabilidade Fiscal obriga, no que se refere à transparência das contas públicas. Toda vez que se quer mexer em algo que tenha repercussão para frente, tem de apresentar as premissas e a memória de cálculo, portanto as planilhas.
CC: A própria Lei do Direito à informação permite obter esses subsídios.
AK: Também, mas a Lei de Responsabilidade Fiscal é mais específica, ela fala na memória de cálculo. Só com as premissas, posso apresentar uma conclusão e você não tem como checá-la se não tiver a memória de cálculo.
CC: Por que foram feitas essas solicitações?
AK: Desconfiamos que aquelas previsões exageradas estavam furadas. Mas eles enviaram só as premissas, não entregaram a memória de cálculo sob a alegação de que era sigilosa.
CC: O Ministério da Previdência descumpriu a Lei de Responsabilidade Fiscal?
AK: Sem dúvida nenhuma. E o governo vai ter que mudar de postura, dar acesso à memória de cálculo e permitir que a sociedade verifique se as projeções da Previdência Social estão corretas.
CC: Qual é o possível resultado da atual discussão sobre a Previdência conduzida pelo governo?
AK: O atual ministro da Fazenda nada entende de Previdência Social. É deselegante falar de um assunto sobre o qual nada se entende. E ele é membro do atual fórum, e a presidente idem. Então eles vão levar um “baile” pela frente, porque as centrais estão unidas, o Dieese está assessorando, a gente está conversando com o pessoal. Não se brinca com uma questão que impacta milhões de brasileiros. E está-se brincando com isso ao pretender uma reforma na Previdência exatamente num momento ruim para todos que temem o desemprego e uma situação social mais grave.
CC: O fator previdenciário foi eliminado?
AK: Não foi. Quem está na regra 85/95 recebe a média de 80% dos maiores salários. Quem não atingiu a regra 85/95 e contribuiu no mínimo por 35 anos, no caso dos homens, ou 30 anos, no caso das mulheres, multiplica aquela média pelo fator previdenciário. Mas quanto mais os anos passam, maior o tempo de sobrevida calculado todos os anos pelo IBGE, portanto a cada ano cai o fator previdenciário, e disso quase ninguém fala.
Em geral, o trabalhador é expulso do mercado de trabalho por volta dos 50 anos de idade e se apressa para conseguir se aposentar porque prefere ganhar pouquinho em vez de esperar até os 65 anos, com cada vez menos chance de encontrar emprego e mais despesas com saúde. Portanto há uma armadilha na exigência de idade mínima. Argumenta-se que na Europa e nos Estados Unidos há idade mínima, mas lá existe proteção social, e aqui não tem.
CC: O que pode acontecer?
AK: O barco está afundando, nós estamos a cada ano gastando mais e mais dinheiro com juros. No ano passado, foram 501 bilhões de reais com juros. Neste ano, será acima de 600 bilhões. O ministro da Fazenda está falando numa economia de 24 bilhões de reais de superávit primário, mas está gastando 600 bilhões em juros. A água está entrando no barco e o pessoal continua discutindo se não seria muito legal ter no futuro um barco muito melhor, mas enquanto isso, vai todo mundo para o fundo.
CC: Por que se insiste nesse caminho?
AK: Para desviar a atenção, tirar o foco dos juros. Não se discute juros no Brasil, apesar de termos a taxa básica mais alta do mundo. Nos outros países emergentes ela está no nível da inflação, nos desenvolvidos é zero ou negativa. Aqui, não, tem-se a taxa de juros 7 pontos porcentuais acima da inflação projetada. Além disso, não se leva em conta que 70% das pessoas com dívida estão atreladas ao cartão de crédito. E os juros do cartão de crédito são de 440% ao ano!
CC: A quem beneficia desviar a atenção dos juros?
AK: Na minha opinião, é uma tática dos bancos. Foi a partir dos bancos que surgiu essa ideia da reforma da Previdência e de desvincular educação e saúde dos impostos previstos na Constituição. Eles querem diminuir isso para não mexer nos juros. Então só falam em resultado primário, não mencionam resultado nominal. Essa é a estratégia. Quem comanda toda a discussão teórica são os bancos, e os demais são “papagaios” reprodutores do mesmo discurso.
CC: Além das centrais sindicais, quem mais se preocupa com o problema?
AK: Os partidos políticos, que deveriam dar muita atenção a isso, especialmente o PT, estão falando muito pouco do assunto.
CC: Como é a gestão da Previdência Social?
AK: A Previdência Social tem uma gestão muito fraca. Ela deve ter uma inadimplência próxima de 30%, são receitas que poderia ter mas não tem porque a fiscalização é praticamente inexistente. Muito benefício e muita pensão não deveriam ser pagos, mas isso não quer dizer que certos ajustes deveriam ser feitos. Nada justifica defender idade mínima para aposentadoria, as mesmas regras para a aposentadoria de homens e de mulheres e de trabalhadores rurais e urbanos, nem a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo, que é outra proposta dos defensores dessa reforma.
CC: Que importância tem o que foi feito em relação a Previdência nos governos Lula e Dilma?
AK: Ajudou a melhorar a Previdência. Quem a prejudicou foi o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, que fez desoneração à larga na cota patronal, que é a principal arrecadação da Previdência Social. Ele trocou os 20% sobre a folha de pagamento por 1% a 1,5% sobre o faturamento e a diferença que as empresas tiveram a seu favor deveria ter sido compensada à Previdência Social pelo Tesouro.
Não é aceitável fazer caridade com o chapéu alheio. O dinheiro da Previdência não pertence ao governo, mas a quem contribui com ela e a quem está aposentado. Com a desoneração, a receita da Previdência começou a cair e com a crise econômica e a queda do faturamento das empresas, piorou ainda mais.
Fonte:A Carta Capital
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