Ao autorizar a permanência do procurador Cassio Conserino à frente das investigações sobre o triplex do Guarujá, o Conselho Nacional do Ministério Público assumiu uma decisão que é uma contradição absoluta, com termos que não dialogam entre si e formam um conjunto incoerente e injusto.
Para resumir a opera: o CNMP reconheceu que se cometeu um erro no processo que manteve o procurador na direção da investigação contra Luiz Inácio Lula da Silva e sua mulher, Marisa, mas concluiu que não era necessário fazer uma correção, preferindo manter tudo como está.
Só para você ter uma ideia: no mesmo dia, na mesma votação, no mesmo texto, o Conselho negou a Lula um direito que, acabara de reconhecer como "direito de todo cidadão" obrigado a prestar contas à Justiça, que é ser investigado por um "promotor natural". Considerando que nem a condição de ex-presidente da República, nem a de investigado pelo Ministério Público lhe tira qualquer direito assegurado a "todo cidadão", o resultado confirmou uma situação absurda.
Entenda-se. Para evitar um personagem típico das ditaduras, o chamado "promotor de encomenda", que assume uma investigação com uma conclusão definida previamente, seja para condenar, seja para inocentar um réu, a legislação brasileira exige que os procuradores sejam escolhidos por um método considerado seguro para se tentar chegar a uma decisão isenta -- o sorteio.
Este princípio se encontra no artigo 103 da Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo, onde Cassio Conserino atua. Ali se diz explicitamente que "toda representação ou petição formulada ao MP será distribuída entre os membros da instituição que tenham atribuições para apreciá-la". O mesmo espírito, com palavras semelhantes, se encontra na resolução número 13 do Conselho Nacional do Ministério Público.
No caso da investigação sobre Lula e Marisa, isso não ocorreu -- e que levou o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) a entrar com uma representação que questiona a escolha para conduzir a investigação.
Numa atitude que dirimiu qualquer dúvida sobre sua parcialidade, em janeiro o procurador disse a VEJA ter elementos de convencimento para denunciar Lula e Marisa por ocultamento de patrimônio. Errou na forma -- a Justiça se manifesta pelos autos -- e pelo conteúdo, pois não conseguiu apontar nenhum fato para sustentar suas suspeitas.
O ponto essencial é que Conserino assumiu o caso, em agosto do ano passado, sem respeitar o princípio do procurador natural. Ele recebeu uma representação de um escritório de advogados que defendem clientes que se consideram lesados pela cooperativa dos bancários, Bancoop, primeira responsável pela construção do edifício no Guarujá. Mesmo que não existisse o artigo 103 da Lei Orgânica e nem a resolução 13 do CNMP, o simples fato de ter sido escolhido por uma das partes de um conflito encaminhar uma representação já deveria ser razão suficiente, baseada no simples bom senso, para Consarino entregar o pedido para ser levado a sorteio.
Tanto é assim que as coisas devem funcionar que, na decisão de ontem, os conselheiros aprovaram, por unanimidade, o voto do relator Valter Shuenquener. Numa referência aos tempos passados, mas que fazem um eco evidente nos dias que correm, ele chega a dizer que o país não pode voltar ao tempos dos "procuradores de encomenda." Shuenquener afirma, essencialmente, o seguinte:"o princípio do promotor natural impõe que todo cidadão tem o direito de ser investigado e acusado por um órgão independente do MP escolhido segundo prévios critérios abstratos e não casuisticamente." São palavras claras. Definem um princípio permanente, que, como disse Shuenquener, que é juiz federal, deve ser assegurado a "todo cidadão". Isso deveria incluir Lula e sua mulher, Marisa, certo? Errado.
Os mesmos conselheiros aprovaram uma exceção a regra que haviam acabado de confirmar. Os casos já distribuídos "ficam como estão." Ou seja: justamente a vítima que entrou em ação contra uma injustiça, demonstrando que tinha razão no ponto de vista do conceito, terá de aturar a injustiça e o erro. Lula e seus advogados têm razão -- mas isso só vale para os outros. A barbeiragem é grande, não custa admitir. Todos tiveram tempo para conhecer as determinações legais. A Lei Orgânica do Ministério Público é de 1993. Está em vigor há 23 anos. A resolução do CNMP é de 2006. Dez anos.
Perguntas: ninguém sabia destes princípios? Não aprendeu que deveria zelar por seu cumprimento? O que acontece agora?
Em vez de corrigir aquilo que todos reconheceram conceitualmente que estava errado, preferiu-se cumprir uma jurisprudência inesquecível anunciada por um dos principais integrantes da força tarefa da Lava Jato, aquela que ensina que não se deve "mexer em bosta seca."
Na mesma tarde, entre muitos discursos protocolares, os conselheiros excluíram -- e fizeram isso publicamente, à vista de todos, inclusive jornalistas -- Luiz Inácio Lula da Silva e sua mulher, dona Marisa, daquele conjunto de pessoas, em teoria os 200 milhões de brasileiros, a quem o Ministério Público tem o dever de assegurar direitos reservados a "todo cidadão".
Por um instante, foi como se Lula estivesse de volta ao Brasil de 60 anos atrás, percorrendo o país na carroceria do caminhão pau-de-arara que trouxe sua família do interior de Pernambuco para São Paulo, criança de um universo de excluídos, tratados sem dignidade nem respeito, em permanente combate, quase animal, contra a fome, o frio, a doença, a fraqueza. Mas foi só um instante.
Ex-presidente da República, líder de um processo político que obteve avanços históricos na luta contra a miséria e a desigualdade, a decisão do Conselho confirmou a condição de Lula como perseguido político. Negou-lhe aquilo que reconhece ser um direito de todos. Não vale para Lula, sabemos agora. Talvez não valha para muitos outros, é verdade. Mas sabemos quem é Lula no Brasil de 2016 e o que representa.
Mais um sinal está dado, certo?
Pela resolução de ontem, é possível até imaginar uma hipótese. Se, um dia, o Ministério Público por acaso vier a acatar o pedido de investigação das acusações da jornalista Mirian Dutra contra Fernando Henrique Cardoso, a apuração será conduzida por "promotor natural" com base "em critérios abstratos", que visam eliminar preferências políticas capazes de contaminar os trabalhos.
Enquanto isso, o procurador Cassio Conserino terá direito a chamar Lula e Marisa para serem interrogados. Já podemos imaginar o próximo passo, certo?
A decisão não poderia ser mais clara, vamos combinar.
Fonte:Blog do Miro
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