Com a repetição de denúncias contra ministros e a criação incessante de pequenos fatos jornalísticos em geral mal investigados, a grande mídia conservadora visa transformar o governo Dilma num grande escândalo político.
A substituição do ex-ministro do Esporte Orlando Silva, numa cerimônia na qual a presidente Dilma Rousseff fez grandes elogios a ele, a seu sucessor, Aldo Rebelo, e à legenda de ambos, o PCdoB, foi considerada, pelos maiores meios de comunicação do país, um escárnio, um desprezo à opinião pública. Jornais e revistas como O Estado de S. Paulo, O Globo, Veja, Época e IstoÉ promoveram uma agressiva e eficiente campanha de denúncias contra Silva e seu partido e acham que falam de um Olimpo, acima do bem e do mal, em nome de todos, “da sociedade”, como se fatos extraordinários tivessem se arremessado sobre eles por imposição divina, para que denunciassem a gestão do ex-ministro e de seu partido no Ministério do Esporte.
Mesmo os mais ingênuos sabem, no entanto, que não é assim. Os fatos não se impõem aos jornais por conta própria nem são selecionados por uma divindade superior, imune aos interesses dos mortais comuns. O jornalismo é parte da luta política. Os fatos são empurrados para a mídia por pessoas, que representam interesses – próprios, de grupos, de classes sociais. A campanha contra Silva foi deflagrada pelo PM João Dias Ferreira, que chegou a ser candidato a deputado distrital pelo PCdoB em 2006 e de quem o Ministério do Esporte cobrava cerca de R$ 4 milhões.
Ferreira estava ameaçado de perder todos os bens, em função de ação iniciada pelo ministério e levada adiante pela Justiça Federal, que o acusava de ter desviado aquele montante para benefício próprio, pela manipulação, com notas “frias”, das contas de um convênio com o ministério. O ataque a Silva foi combinado também com uma ofensiva contra o governador do Distrito Federal (DF), o ex-ministro do Esporte e também ex-militante do PCdoB Agnelo Queiroz. Nessa parte da campanha foram usadas pessoas que compunham o grupo do PM, mas se voltaram contra ele depois de terem sido cooptadas pela Polícia Civil do governo do DF em 2010. E até as crianças menos ingênuas da capital federal sabem que as forças derrotadas por Queiroz na campanha do ano passado estão vivas na política do DF e interessadas em desestabilizá-lo.
Tanto o PM Ferreira quanto seus dissidentes acharam na grande mídia conservadora aliados essenciais. A história de Ferreira foi divulgada pelo semanário Veja e pelo diário O Estado de S. Paulo. Veja divulgou o depoimento do PM na sua edição que começa a circular nacionalmente no sábado sem investigar praticamente nada da história e sem efetivamente dar ao ministro acusado o direito de defesa – pois o conteúdo mais preciso da acusação, como disse a Retrato do Brasil o secretário-executivo do ministério, Waldemar de Souza, só foi recebido no final da tarde da sexta-feira anterior. Mesmo assim a revista apoiou a acusação com vastas considerações editoriais.
O jornal paulista, em editorial, já na segunda-feira seguinte, 17 de outubro, após Veja estar em todo o país com a entrevista do PM afirmando ter Silva recebido na garagem do ministério R$ 1 milhão em dinheiro ilícito, disse claramente que a presidente Dilma deveria demitir o ministro do Esporte, mesmo sem essas acusações estarem minimamente documentadas. Como fizera uma campanha de denúncias contra o ministério no início do ano, também sem provar nada, talvez o grande diário conservador se julgasse no direito de exigir a demissão de um ministro apenas porque o denunciava.
A campanha contra Queiroz foi liderada pela IstoÉ, com um artigo de capa no qual a semanal pretendeu revelar “com detalhes como o atual governador de Brasília teria montado um propinoduto para desviar dinheiro público no Ministério do Esporte”. O material básico com o qual IstoÉ trabalhou é, no fundo, o mesmo de Veja. Foi produzido pela Polícia Civil do Distrito Federal (PC-DF) no final do primeiro semestre de 2010, num inquérito estranho que investigava desvio de verbas federais – que é da competência da Polícia Federal (PF) e não da Polícia Civil. Já se vivia, então, a plena campanha eleitoral, a qual disputaram, de um lado, Queiroz, e, de outro, Weslian Roriz, a mulher de Joaquim Roriz, o grande político do DF, cuja candidatura fora vetada pela Justiça.
Ferreira e mais cinco pessoas ligadas a ele foram presas em abril daquele ano. Duas pessoas que aparentemente participavam do esquema de manipulação de verbas de convênios com notas “frias”, Geraldo Andrade e Michael Silva, foram cooptadas pela PC-DF e depuseram a favor de Weslian, no programa eleitoral de TV, algum tempo depois. Esses mesmos depoimentos foram usados agora contra o governador Queiroz, e gravações de conversas de Ferreira daquela época, apreendidas em sua casa pela PC-DF, foram usadas, agora, por IstoÉ e Veja, contra Queiroz e Silva.
Não se deve acreditar que a grande mídia conservadora aja assim por acaso e, tampouco, que faça isso por participar de uma grande conspiração, inventando fatos do nada para infernizar um governo de serafins e querubins. A grande mídia tem um método, é o denuncismo. Fez com Silva exatamente o que fez em 2005, logo após as denúncias do então deputado do PTB Roberto Jefferson, que apontou o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, como o chefe da operação conduzida pelo tesoureiro do PT à época, Delúbio Soares, e pelo publicitário mineiro Marcos Valério. O esperto presidente da sigla trabalhista tinha criado, para usar o jargão do jornalismo, a “retranca” do “mensalão”.
O Estadão, por exemplo, foi, também o primeiro a dizer, em editorial, que Dirceu era o chefe do mensalão. Foi ainda peça destacada da grande mídia na campanha de denúncias que levou tanto à demissão, a pedido, quanto à cassação, pelo Congresso, do deputado Dirceu, sem que, até agora, tenham sido apresentadas outras provas concretas – além da palavra de Jefferson – de que ele comandava o tal esquema. No caso da demissão do ministro do Esporte, o jornal criou uma retranca chamada de “esporteduto” sob a qual, além de trabalhar pela demissão de Silva, procurou desmoralizar os comunistas do PCdoB.
A grande mídia não constrói seu ponto de vista do nada, a partir de um amontoado de mentiras. Jornais e revistas são editados com propósito, segundo regras, por um corpo de grandes editores nomeados pelos patrões. E todos têm dezenas de jornalistas e profissionais que todo dia acrescentam ao tema no qual estão focados miríades de informações. Dito de outra forma: a avalanche de informações que divulgam, de modo geral, não é falsa por ser um conjunto de pequenas mentiras; ela induz o leitor ao erro contando pequenas verdades, indo em busca apenas de coisas que são do interesse dos patronos dos editores. Fazendo uma avaliação muito ampla, pode-se dizer que há verdades parciais, “malfeitos”, para usar a expressão da presidente Dilma, em todas as matérias de denúncias publicadas pelos grandes veículos citados.
Ter posição também não é um mal em si. Todos os jornais são assim, sejam de direita, de esquerda ou de centro: de um modo ou de outro têm um “partido”, uma posição. O exemplo do Estadão ajuda a entender o problema político de pretender, como se diz, regular a mídia. O diário paulista é um dos melhores jornais da grande mídia brasileira. Tem um grande número de repórteres e correspondentes e outros recursos para acompanhamento razoável dos fatos mais relevantes do Brasil e do mundo. Tem opiniões claras, bem escritas, o que permite saber com relativa precisão as posições de seus donos em relação a esses assuntos. Além do mais, é um jornal corajoso, militante. É, e sempre foi, um jornal liberal, no sentido de ser amplamente favorável à abertura das fronteiras econômicas do Brasil ao capital estrangeiro.
Do ponto de vista político, fundado em 1875, apoiou a República e, logo depois, a candidatura de Getúlio Vargas pela Aliança Liberal, o movimento liderado pelos “tenentes” que representavam a vanguarda do movimento antioligárquico no País nos anos 1920. Posteriormente, colocou-se na vanguarda do movimento conservador que, em 1932, organizou a rebelião armada contra Vargas em São Paulo e, em, 1964, apoiou o golpe que depôs o presidente João Goulart, herdeiro de Vargas, e instalou no país a ditadura militar que governou o Brasil por duas décadas, até 1984. Mesmo assim, a partir de 1968, quando o regime assumiu posições claramente fascistas, o Estadão divergiu do rumo tomado pelos militares – e viveu, orgulhosamente, sob censura prévia até o começo de 1975.
O Estadão, agora, é um dos campeões na defesa da “faxina” que a presidente Dilma estaria fazendo no governo. A suposta faxina, no entanto, decorre desse rol de pequenas denúncias em geral mal investigadas. O significado político delas parece claro. Tenta-se criar um fosso entre os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e o de Dilma, a sucessora que Lula escolheu. Tenta-se mostrar que o dela é sério e que o de Lula não o foi, com um propósito aparente de exorcizar o passado. Algo nos termos do que disse, na página de editoriais do Estadão, o ex-deputado e ex-secretário de Estado João Mellão Neto, em artigo intitulado, sugestivamente, “Vade retro, Luiz!”.
Mellão diz que Lula “logrou eleger a sua sucessora, mas deixou para ela uma pesada herança”. De modo interesseiro, para criar um contraponto com Lula, o grande jornal conservador está sugerindo que Dilma deveria ser, por exemplo, como o ex-presidente Jânio Quadros, um herói de campanhas de “faxina” no poder, que os conservadores – como o Estadão – apoiaram nas vésperas do golpe militar de 1964 e que imaginavam ser a salvação da pátria. Estadão, Veja, O Globo etc. querem criar um fosso entre Lula e Dilma para enfraquecê-la, obviamente, e não para apoiá-la numa reeleição em 2014. E querem, desde já, minar uma candidatura Lula em 2014, coisa que não é improvável.
Quem é o cacique. Ela? Ele? Ou o jornal?
O diário da família Marinho, O Globo, foi participante ativo da campanha de denúncias contra o ex-ministro Orlando Silva. Um exemplo das técnicas dessa campanha é o tratamento dado pelo diário a uma intervenção do ex-presidente Lula na história. No sábado, 22 de outubro, a manchete do jornal foi “Lula manda PCdoB resistir e Dilma mantém ministro”, apoiada em declarações de líderes do PCdoB que narraram ao jornal o apoio que o ex-presidente estaria dando à resistência do ministro e do partido à demissão. Na terça, no entanto, nas matérias que fez da viagem da presidente para inaugurar a ponte Rio Negro, um empreendimento iniciado no governo Lula, O Globo procurou dizer que Dilma teria convencido o ex-presidente de que era preciso demitir Silva.
O contexto era o seguinte: Lula iria ao México para receber uma premiação; Gilberto Carvalho, seu ex-chefe de gabinete e ministro de Dilma, convidou Lula para ir de Brasília a Manaus com ela, para tratar da situação. De lá, Lula seguiu sua viagem. No trecho Brasília–Manaus, a presidente e o ex trataram do caso PCdoB–Silva. E Lula teria mudado de opinião. De onde vieram as informações sobre o que Dilma teria dito? Não vieram nem de Dilma nem de Lula. Saíram, segundo texto de O Globo publicado no dia 26, de “interlocutores que estavam em Manaus”, do “relato de presentes”, de “um integrante da comitiva presidencial”, de “relatos”.
O jornal não cita as fontes por conta própria ou porque elas pediram para não ser citadas. Essas fontes não existem? O jornal mente nesse detalhe? Quase certamente, não. Possivelmente, estava acobertando fontes que eram contra o ministro e o PCdoB e não queriam aparecer. O jornal não deu destaque aos que tinham interesse contrário e que usaram declarações de Lula e Dilma em Manaus em defesa de Silva, também possivelmente verdadeiras. A senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), por exemplo, afirmou a O Globo que a presidente lhe disse em Manaus que “gostou muito da conversa com Orlando”, que tivera pouco tempo antes, e que o ministro “lhe pareceu muito firme”. Mas a manchete de O Globo foi outra, de sentido contrário. Resumo: o jornal usa as informações que obtém, possivelmente verdadeiras, para construir um contexto do qual omite ou minimiza aquilo que não lhe interessa. Ou ainda: que cacique queria demitir Silva? Dilma? Lula? Ou O Globo?
Fonte: Retrato do Brasil, nº 53, dezembro de 2011 (foram feitas pequenas alterações na apresentação desta extensa reportagem, para adequá-la à internet, sem contudo nenhuma mudança no texto original).
Fonte texto: Portal UJS
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