Falar em retorno presencial hoje significa mandar deliberadamente 60 milhões de crianças e adolescentes para dentro de câmaras de gás, as salas de aula. Isso tem nome: genocídio...
"A Base Nacional Comum Curricular – BNCC e os currículos dela decorrentes – todos os 26 estados mais o Distrito Federal já tem currículos próprios aprovados e já em fase de implementação – estabelecem alguns princípios fundamentais para a educação no país. Dentre eles está a busca permanente pela igualdade de condições de acesso e permanência, respeito às diferenças, mas também a perseguição da equidade como um dos objetivos centrais da educação pública. Isso visa garantir uma educação integral para a formação de sujeitos capazes de se relacionar autonomamente consigo mesmos e com o mundo à sua volta, seja no exercício das práticas cotidianas, na sua formação como cidadãos ou para o mundo do trabalho."
Wagner Geminiano dos Santos, doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor das redes municipais de ensino de São José da Coroa Grande e Água Preta (PE)
Essa formação não pode deixar de prescindir da escola como instituição social responsável não só pela oferta de ensino; mas, sobretudo, como espaço de socialização e de acesso à vida pública. No entanto, esses objetivos foram seriamente comprometidos pela emergência da pandemia de COVID-19, uma vez que o acesso à vida pública e, portanto, ao espaço escolar, foi interditado em função das políticas de isolamento e distanciamento social. Desse modo, a COVID nos lançou num cenário assustador e sem muitos horizontes possíveis a prognosticar, ao menos no curto prazo. A educação foi uma das primeiras a parar, literalmente. E deverá ser uma das últimas atividades a voltar, ao menos assim deveria ser. Diante disso quero pontuar algumas questões e ir encaminhando comentários acerca da proposta de retomada das aulas presenciais ainda para o ano letivo de 2020:
1 – Comecemos pelo óbvio, que infelizmente a maioria não quer admitir: não haverá pós-pandemia para nós brasileiros em 2020. Se não há uma vacina e se as medidas para controle do contágio (testagem em massa e isolamento social rigoroso) não foram e não estão sendo feitas a contento (apesar dos esforços iniciais de governadores e prefeitos, mas que já cederam às pressões e entraram numa flexibilização apressada), dificilmente diminuiremos nossas curvas de infectados e de mortos, não nos próximos três ou quatro meses, como apontam a maioria dos estudos. Estudos esses que indicam que chegaremos a dezembro com o assombroso número de 250 a 300 mil mortos e algo próximo dos 10 milhões de infectados no país. No momento que escrevo esse texto estamos beirando os 90 mil mortos e mais de 2,4 milhões de infectados. Início de agosto teremos ultrapassado a macabra marca de 100 mil mortos e mais de 2,5 milhões de infectados, o que nos rende uma taxa de letalidade de 5%, com uma média de cerca de 1.100 mortes/dia.
2 – Diante disso, desse quadro e desse futuro tenebroso, torna-se quase desumano falar em retorno às aulas de modo presencial. Nossas escolas não estão estruturadas fisicamente para um cenário pós-pandemia, ainda mais para um cenário de plena pandemia. Na maioria dos municípios as salas de aula dos anos iniciais aos finais têm quase sempre mais de 30 alunos cada. Impossível estabelecer qualquer medida de distanciamento social. Impossível não haver aglomerações. Como manter crianças e adolescentes sentados e em distanciamento social, usando máscaras por, no mínimo, quatro horas? A escola é espaço de socialização, de trocas, de contato, de interação. Além disso, é preciso pensar nos inúmeros professores e profissionais da educação que têm comorbidades e são de algum grupo de risco. Sem falar dos próprios alunos e suas famílias, que ficariam ainda mais expostas ao risco de contágio e de morte de algum parente desses grupos. Quem se responsabilizará por esses riscos? O retorno às aulas presenciais esse ano vale a pena, mesmo diante de se colocar em risco a saúde e a vida das pessoas? Admitamos, para 2020 não há possibilidade de retorno com aulas presenciais. A não ser que alguém esteja disposto a assumir todos os riscos e contribuir para sepultar mais algumas centenas de milhares.
Não quero acreditar que quem faz educação esteja disposto a pagar esse preço apenas pelo suposto imperativo da manutenção do “ano letivo”. Quem assinará os protocolos da morte? Qual governador? Qual secretário estadual de educação? Qual prefeito ou secretário municipal? Qual cumpridor de ordens arriscará assumir o argumento de Eichmann e dirá apenas seguir ordens, quando se sabe mandar milhões ao risco do abate? Falar em retorno presencial nessa altura do campeonato significa mandar deliberadamente 60 milhões de crianças e adolescentes para dentro de câmaras de gás, digo, salas de aula. Com uma taxa de letalidade de 5% como a nossa, é só fazer as contas; isso tem nome: genocídio. Passo ao terceiro ponto;
3 – Sei que todo mundo está atordoado pela pandemia, mas isso não pode ser pretexto para perdermos a sensibilidade e a humanidade. A educação não se resume a produtivismo conteudista e ao imperativo da manutenção do ano letivo. A educação significa formar cidadãos, formar sujeitos, construir valores. E os valores para os quais essa retomada abrupta aponta, mesmo cheia de boas vontades, não nos torna melhores que Bolsonaro, por que no fundo estamos dizendo, como ele diz em relação à economia, que a educação também não pode parar, que as coisas tem que voltar o mais rapidamente possível ao normal. Mesmo que para isso tenhamos que dizer, em silêncio: e daí se estão morrendo mil pessoas dia? E daí se em agosto já serão 150 mil brasileiros mortos? E daí se alguns deles são ou serão professores, se são ou serão alunos? É isso que, deliberadamente, estamos dizendo quando aduzimos em silêncio a essa urgência de querer retorno de aulas presenciais ainda para esse ano.
Precisamos parar para compreender que estamos diante da maior catástrofe da nossa história. É preciso ter a consciência disso e não nos desumanizarmos, não nós que fazemos a educação pública desse país. Justo ela que ainda aponta para uma possibilidade de futuro no presente. Não sejamos nós a querer matá-lo ampliando ainda mais, com os protocolos de retomada, a que chamo de protocolos da morte, o nosso já doloroso genocídio. Sensibilidade senhor@s…sensibilidade e empatia com a dor e o sofrimento do outro, é disso que precisamos para atravessar com mais parcimônia, menos pressa e o menor número de perdas possíveis – se ainda nos é possível afirmar isso – esses tempos tristes e dolorosos. A paciência talvez seja, hoje, a principal das virtudes pedagógicas. Nosso tempo urge por ela!!!
Fonte: Jornalistas Livres
Nenhum comentário:
Postar um comentário