PMs matam garoto dentro de casa enquanto ele dormia. Policial que executou a criança disse "fiz merda" e pediu ajuda a superiores para "limpar a cena". Corpo foi sequestrado enquanto família era contida e toda a cena do crime higienizada para não deixar rastros
Mizael Fernandes da Silva, 13 anos, sonhava em ser vaqueiro. Há pouco tempo havia ganhado seu primeiro cavalo, mas não teve a chance sequer de ser fotografado com ele. Na madrugada de quarta-feira (1/7), Mizael foi executado por policiais do Cotar (Comando Tático Rural), pertencente à Polícia Militar, coordenada nesta gestão por Camilo Santana (PT), dentro de casa, em Triângulo, no Chorozinho, região metropolitana de Fortaleza.
Lizangela Rodrigues Fernandes da Silva Nascimento, tia de Mizael, detalhou como foi a execução do menino. Ela conta que o sobrinho foi passar uns dias em sua casa para fazer um tratamento dermatológico. Tinha chegado no dia 30 de junho e depois voltaria para o interior, onde morava com o pai.
Assim que chegou em Triângulo, Mizael trocou as cascas de castanha que havia juntado para conseguir comprar seu primeiro celular. Pagou cerca de R$ 200 no aparelho. Estava animado, tirando fotos de si e da família.
Na noite anterior, Mizael foi dormir cedo, como era de costume, já que sempre acordava às 4h da manhã para ajudar o pai na pequena fazenda. Lizangela ficou assistindo televisão, acompanhada do marido, de dois filhos, um de 12 e um de 22 anos, e um tio.
“Mizael jantou, tomou o remédio do tratamento e foi para o quarto assistindo vídeo no YouTube no celular que ele tinha acabado de comprar. Às 19h30 passei pelo quarto e ele dormiu com o celular na mão. Continuamos assistindo TV”, relatou a tia.
A tia conta que nunca tranca a porta da sala da casa, apenas o portão. Por volta da 1h, ouviu alguém bater com muita força no portão. Imediatamente levantou e falou que já abriria abrir. “É a polícia”, ouviu de volta. Saiu, então, acompanhada por todos que estavam acordados.
“Quando estávamos na área, que é mais ou menos a 6 metros da sala, eles já foram tirando a gente de casa. Não imaginei que precisava acordar o Mizael, porque ele estava dormindo. Perguntei o que estava acontecendo e falaram ‘você sabe já’. Meu marido respondeu que não, não sabíamos”.
“Nisso a gente pensou que eles estavam fazendo alguma abordagem na rua e alguém poderia ter pulado no nosso quintal. Mas não foi. Eles expulsaram a gente de casa e mandaram a gente ficar na calçada”, narrou Lizangela.
Dois policiais entraram na casa, um mais alto e outro de média estatura. A tia falou que, se eles iriam revistar a casa, ela deveria entrar junto. O policial mais alto gritou “eu já não mandei você ficar lá fora, sua vagabunda?”, conta Lizangela. O policial menor disse que ela poderia entrar junto.
“Quando eu pisei na sala, eu só vi o clarão no quarto e o tiro. Aí eu falei ‘moço, você matou a criança que tava dormindo aí no quarto?’. O policial maior, que atirou, não respondeu e veio correndo, falando ‘fiz merda, fiz merda’. E me empurrou para fora. Mandaram a gente ficar mais afastado, mais ou menos 200 metros da minha casa”, descreveu.
O policial, então saiu da casa, e chamou mais três viaturas. “Ouvimos ele falando para uma das viaturas, que parecia ser um chefe dele, que ele tinha feito merda e que queria que eles colocassem outra pessoa no local, esse outro policial disse que era para ele limpar a merda dele. Três policiais ficaram apontando o fuzil para a gente na esquina da rua”.
“O policial que matou Mizael entrou de novo, limpou alguma coisa, tirou a colcha lilás da cama. Ele também levou o travesseiro e o telefone do Mizael. Até então a gente não sabia que o Mizael estava morto. Eu pensei que alguém tinha entrado no quarto e tinha matado esse bandido. Eles entraram e ficaram mais de 1 hora lá”, continuou.
“Embolaram o corpo do Mizael, igual um porco, e colocaram dentro da viatura. Voltaram e pegaram um pano que tinha dentro do carro para limpar o sangue. Não ficou nem um tiro de sangue no chão. Levaram o edredom da cama”, detalhou.
Depois de um tempo, os dois PMs chamaram Lizangela novamente. “O [policial] de média estatura perguntou se eu sabia da arma, que se encontrava com a pessoa, porque ele nem sabia o nome. Aí eu falei que na minha casa não tinha arma”, relata, destacando que o sobrinho não estava armado.
“Também disse que, mesmo que tivessem chamado ele, o que não aconteceu, ele não teria uma arma. O policial não disse nada, simplesmente atirou”, denunciou a tia.
Ela conta que pediu, junto com o marido, que os policiais mostrassem a arma. “Aí eles deram uma resposta brusca e não mostraram nada. Perguntei se eles tinham tirado foto dele segurando essa arma, porque se tinha uma arma deveriam ter feito isso. Entraram sem dar explicação, mataram sem dar explicação e acabou a história”.
Os policiais, então, foram embora em alta velocidade. Não disseram para os familiares para onde levariam o corpo de Mizael. A tia decidiu ligar para a Polícia Militar e contar o que aconteceu: que havia ocorrido um homicídio dentro da casa e que a vítima era seu sobrinho, que estava dormindo.
Os policiais chegaram e Lizangela conta que pediram para ver a cena do crime. “Perguntaram por que eles tinham levado o travesseiro e a colcha da cama. Perguntaram se eu tinha limpado lá e eu falei que só tava entrando agora com ele. Não acharam nenhum vestígio de bala”, relata.
Lizangela conta que, nesse momento, um dos PMs identificou que a cena do crime havia sido adulterada. “Eu nem sabia para onde tinham levado o Mizael. Eles foram para o Hospital de Chorozinho. Nisso eu já tinha ligado para minha mãe e minha irmã e elas foram para o hospital. O PM disse que tinha acontecido um erro e uma negligência, mas que eles, da Militar, não poderiam pagar por algo que não fizeram”.
A morte de Mizael causou diversas manifestações na região, com carreatas e queima de pneus. Em um dos atos por justiça para Mizael, um PM perguntou para a população se queriam que ele matasse mais um.
“Agora a polícia apareceu com uma arma, falaram que o Mizael já tinha feito vários homicídios, assaltos. Um menino medroso, que a gente falava que era o mais medroso da família. Mizael era uma criança muito carinhosa, brincalhona. Ele alegrava todo mundo quando chegava. Só brigávamos com ele para ele parar de ficar abraçando e beijando a gente o tempo todo”, lamentou a tia.
Como entender a execução de Mizael
Ana Letícia Lins, pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança do Ceará, argumenta que, para entender a execução de Mizael, é preciso entender o panorama que o Ceará está vivendo. A pesquisadora menciona a nota pública do Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará, que traz dados sobre a violência no estado.
A pesquisadora destaca que houve um aumento das mortes por intervenção policial no Ceará em 2020. “De janeiro a maio, tivemos 78 mortes por intervenção policial, esse número representa 57,3% do total de mortes por intervenção policial registrado em todo o ano de 2019”.
“Apesar do isolamento social, temos vivenciado essa crescente de homicídios. Os territórios, as comunidades, as periferias em Fortaleza, região metropolitana e interior continuaram vivenciando contextos muito graves de violência, tanto pelos grupos de facção quanto pelas forças estatais. Esses acontecimentos continuaram acontecendo em paralelo com a grave crise sanitária que vivemos”, explica Lins.
Dos 1.880 assassinatos registrados de janeiro a maio de 2020, aponta a pesquisadora, 798 foram de adolescentes e jovens de 12 a 22 anos. “Esse número representa 42% do total de mortes violentas registradas durante esse período. O assassinado do Mizael não é um caso isolado”.
Lins lembra do assassinato de Juan Ferreira dos Santos, 14 anos, em setembro de 2019 quando estava dançando com amigos em uma praça no bairro Vicente Pinzón, em Fortaleza. “Na versão do PM, o tiro foi para o chão, mas a bala acertou na nuca do Juan. Esse caso não pode cair no esquecimento, essas mortes não podem sumir de vista”.
A pesquisadora lamenta que, no caso de Mizael, o local onde mais deveria ser seguro durante o isolamento social foi o cenário de sua morte.”Ver um adolescente assassinado enquanto dormia, por um agente público, torna tudo ainda mais inaceitável”, pontua a pesquisadora. “Isso não pode ser um incidente. Não foi um erro, não foi um ponto fora da curva, a polícia tem agido com truculência nas periferias e nas comunidades. Esse caso é um exemplo disso”, afirma.
Lins critica a atuação do governo de Camilo Santana que, segundo ela, tem adotado como política de segurança pública um investimento grandioso na militarização. “É um projeto de militarização das cidades, das comunidades, da vida das pessoas, com mais controle no espaço urbano. É por isso que esse caso não é uma exceção”, critica.
“Os assassinatos do Juan e do Mizael não geraram constrangimento do poder público. Você não tem um posicionamento público do governador. Não existe um constrangimento mesmo com o relato dos familiares. O que também não existe é uma comoção social em cima desses casos”, finaliza.
Fonte: Pragmatismo Político
Nenhum comentário:
Postar um comentário