Tomada de poder em 24 de março de 2013 desencadeou onda de confrontos cuja brutalidade atinge agora níveis alarmantes no país
Desde que conquistou a independência da França em 1960, a RCA (República Centro-Africana) manteve um panorama político instável, com sucessivas deposições e tomadas de poder com o passar das décadas. No entanto, há exatamente um ano –
no dia 24 de março de 2013 – um golpe de Estado afastou o então presidente François Bozizé e declarou Michel Djotodia o primeiro líder muçulmano em um país de maioria cristã. Djotodia renunciou há dois meses e Bozizé nunca mais voltou desde que se exilou na República Democrática do Congo, mas o derramamento de sangue continua até os dias de hoje e se aproxima cada vez mais da categoria de genocídio – em grande parte, por ser um dos conflitos mais ignorados no mundo contemporâneo.
“A verdade é que a RCA sempre foi um Estado falido e nunca deu muito certo”, relata o brasileiro Hugo Reichenberger, funcionário do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) no país, em entrevista a Opera Mundi. Com 4,5 milhões de habitantes, a República Centro-Africana sempre teve tensões internas inconciliáveis, mas a atual situação tem alarmado as agências da ONU que trabalham para apaziguar o confronto na região. “A diferença entre o que acontecia antes e o que vemos agora é a intensidade: o número de vítimas e deslocados é muito maior e os níveis de brutalidade são incríveis”, explica Reichenberger.
Apesar das reservas de ouro, diamante, urânio e ferro, a RCA é um dos países mais pobres do mundo. Para entender a atual dimensão do conflito é preciso compreender as condições a que o país estava submetido em 2013. Na liderança da República Centro-Africana desde 2003, Bozizé também virou presidente após um golpe. Contudo, dez anos depois, o então presidente foi deposto, segundo Djotodia, “por causa da situação miserável” que deixou o país. Líder da milícia muçulmana Seleka, Djotodia também havia dito que ficaria no poder “o tempo que fosse preciso para estabelecer a paz”.
No entanto, a duração do governo Seleka foi efêmera. Como apenas 15% da população da República Centro-Africana é muçulmana, a entrada da facção no poder foi censurada pela maioria cristã – particularmente pela milícia cristã Antibalaka –, marcando o início da crise no país. O clima de tensão atingiu proporções alarmantes no dia 5 de dezembro. A escalada da violência dos ataques entre as duas milícias rivais fez da capital Bangui um campo de batalha, resultando na morte de mais de 600 civis até o fim de 2013.
Incapaz de pôr fim à violência entre cristãos e muçulmanos que se intensificou no país, Djotodia renunciou no dia 10 de janeiro de 2014 devido às fortes pressões da comunidade internacional. Segundo Reichenberger, o Seleka ‘perdeu a guerra’ e agora se refugia em outras regiões do país, atacando, de tempos em tempos, vilarejos cristãos. “O jogo de poder virou para os Antibalaka. Essa milícia cristã é o principal problema: não entendemos muito bem qual é a sua hierarquia e como funciona, mas ela está caçando e atacando a todo custo a população muçulmana”, conta.
Em meados de janeiro, o chefe de operações do Escritório de Ajuda Humanitária da ONU, John Ging, já havia alertado que existiam todos os elementos para que ocorresse um genocídio na República Centro-Africana. “Há raízes de um genocídio e potencial para se tornar um. Por enquanto, o que estamos vendo agora é uma verdadeira limpeza étnica e religiosa”, sintetiza Reichenberger.
Para tentar estabilizar a crise, o Conselho de Segurança da ONU autorizou uma intervenção militar francesa com 1.600 soldados que se somou às tropas africanas do Misca (Missão Internacional de apoio à RCA, em francês), já atuantes no país. “É interessante notar que nesta força de paz africana há congolenses, chadianos e até ruandeses – que passaram por genocídio em 1994 e estavam lá para evitar uma situação semelhante em Bangui”, observa.
Mapa apresenta localização da República Centro-Africana, a capital (Bangui) e seus limites fronteiriços no continente africano
“Devo admitir que sempre fui contra intervenção armada, mas A presença das tropas foi extremamente positiva: facilitou muitas coisas e acalmou um pouco a situação. Deu para reduzir a matança que estava Bangui no final de dezembro. Tanto que, há três semanas, o próprio Ban Ki-moon (secretário-geral da ONU) pediu um aumento de 3.000 tropas africanas justamente para aumentar a segurança”, acrescenta.
Uma das esperanças de reconciliação entre os muçulmanos e cristãos é a nova presidente interina do país, Catherine Samba-Panza, que entrou no poder no dia 20 de janeiro e deve permanecer até as eleições presidenciais oficiais, previstas para 2015.
Fonte: Opera Mundi
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