Pode parecer algo meramente técnico e
jurídico, já que quando classificado como feminicídio, a pena do autor do crime
é aumentada podendo chegar a 30 anos de prisão – enquanto em outros casos de
homicídio simples a pena máxima fica em 20, – mas não é apenas isso. Vale
lembrar também que especialistas da área não consideram que leis como essas são
responsáveis por reduzir o número de casos, mas sim contribuir para a criação
de políticas públicas para lidar com a raiz do problema.
“A importância que vejo quando você dá um nome específico para
violência de gênero, muito embora o termo gênero não tenha entrado na
tipificação do feminicídio ― o que é um problema ― mas acho que o grande ponto
positivo é você visualizar um tipo específico de violência e ao fazer isso
propor novas políticas para a sua prevenção”, explica Maíra Zapater, advogada
especialista em direito penal e doutora em direitos humanos.
“Tipificar não é importante em relação às punições como por vezes
se pensa, e às vezes surgem argumentos no sentido de ‘poxa, mas os feminicídios
têm aumentado ou continuam muito altos mesmo depois da lei?’ Isso é um ponto
que temos insistido desde 2015. Vender [a Lei do] Feminicídio como sendo uma
solução para violência fatal para as mulheres é um equívoco. A gente só aplica
a lei penal depois que o crime já aconteceu, então não vai servir para
prevenir”, defende Maíra.
Vender a Lei do Feminicídio como uma solução para violência
fatal para as mulheres é um equívoco.
Maíra Zapater, advogada
especialista em direito penal e doutora em direitos humanos.
No entanto, segundo a
especialista, categorizar uma violência desse tipo cria registros específicos o
que pode, ao menos em tese, gerar dados para ajudar no trabalho de prevenção de
fato.
“Aqui no Brasil foi
estabelecido um protocolo específico de investigação e essa sim é a grande
contribuição. Então, quando chega à delegacia a notícia de um crime fatal
contra uma mulher, existe um protocolo que as delegacias devem em tese seguir
para fazer aquela investigação e verificar se ali foi um crime de feminicídio
ou não, o perfil da vítima, perfil do autor do fato, as circunstâncias em que
aquilo se deu e começar com isso a produzir dados sistematizados que permitam
elaborar diagnósticos e com isso propor soluções”, explica a advogada.
Em abril de 2006, a ONU Mulheres, a antiga
Secretaria de Política para as Mulheres do Governo Federal, a Secretaria
Nacional de Segurança Pública, com o apoio da Embaixada da Áustria, publicaram
documento intitulado Diretrizes Nacionais Feminicídio - investigar,
processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres.
O documento se baseia em algumas premissas,
dentre as quais se destaca a disposição para mudar o olhar sobre o crime, desde
o primeiro profissional acionado para comparecer ao local dos fatos. Isso
significa que desde o momento inicial, o agente público deve questionar
internamente se aquela morte ocorreria daquela forma, naquele determinado
contexto, caso a vítima não fosse mulher.
Outra premissa contemplada nas diretrizes está
relacionada à linguagem empregada desde o momento da notícia da morte até
o julgamento do caso, passando pela forma como a situação é reportada por
agentes públicos à imprensa e à sociedade. Essa linguagem não pode ser
reprodutora da violência, culpabilizando a mulher ou acompanhada de
estereótipos de gênero. As diretrizes também destacam a importância de
reconhecer e promover os direitos das vítimas sobreviventes e indiretas, os
dependentes e familiares, assim como a adoção de medidas de preservação e
reparação da memória das pessoas.
A socióloga Wania Pasinato
destaca também a relevância da tipificação para pensar em prevenção no futuro.
“A importância de nomear essa violência e esses homicídios como feminicídio é
justamente poder demonstrar que essa violência tem como causa principal essa
desigualdade de poder na sociedade. Então, nomear os homicídios contra as
mulheres têm o propósito de jogar luz sobre essa causa, sobre essa desigualdade
sobre a qual temos que lutar, temos que combater por meio de políticas
públicas, e principalmente políticas preventivas, que atuem na área da educação”
Feminicídio nos júris
Com as novas discussões sobre o
tema e as novas leis – a do Feminicídio e, anterior a essa, a Lei Maria da Penha –
diversos casos de homicídio e tentativa de homicídio contra a mulher passaram a
serem tratados de outra forma. Antes disso, por muito tempo, autores de crimes
contra suas companheiras ou ex-companheiras eram vistos como “vítimas” de forte
emoção e até mesmo movidos por amor para matar.
O caso de Ângela Diniz é um exemplo. A socialite foi morta a tiros
pelo então companheiro Raul “Doca” Fernandes do Amaral Street na década de
1970. “[Na época], foi acatada a tese de legítima defesa contra a honra.
Construiu-se no júri a imagem de uma mulher sedutora, insaciável do ponto de
vista sexual e a imagem de um homem frágil, seduzido e impelido pela emoção e
paixão. Decidiu-se que era possível que ele matasse para proteger a sua honra”,
conta a defensora Nalida.
Condenado a dois anos de prisão, após intensa campanha do
movimento feminista com o slogan “quem ama não mata”, Doca foi a novo
julgamento e condenado a 15 anos de cadeia. No entanto, casos do tipo ainda são
realidade. “Anos depois, o caso da estudante Eloá [em 2008, a jovem de 15 anos
foi morta pelo ex-namorado após ser mantida presa por ele em seu apartamento]
ainda foi retratado em diversos meios do mesmo modo. O cárcere privado foi
romantizado e visto como uma prova de amor”, resalta a especialista.
Mas, aos poucos, é possível ver mudanças. Manuel Castanheiras,
advogado que atuou no caso
de Bárbara Penna, sobrevivente de uma tentativa de feminicídio em
2013 – o autor do crime foi a júri em setembro deste ano e foi condenado a 28
anos e quatro meses de prisão – vê evolução na área.
Em 7 de novembro de 2013, Bárbara, então com 19 anos, sofreu uma
tentativa de feminicídio dentro de sua própria casa, em Porto Alegre (RS).
Naquela noite, seu ex-companheiro colocou fogo no apartamento em que a jovem
morava e depois a jogou da janela do prédio. Os dois filhos pequenos do casal
morreram no incêndio, assim como um vizinho de 79 anos, que tentou ajudar.
Parte 1 da matéria AQUI!
Fonte: huffpost Brasil
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