Vivemos tempos que oscilam entre incertezas, perplexidades e urgências. Encontramo-nos diante do fato incontestável de que é preciso interromper o convívio social para não sermos contaminados por um vírus que é capaz de nos acometer velozmente e de forma escalar. Parar e refletir sobre como continuar o trabalho, os projetos e arranjos da convivência familiar tornou-se a prioridade. E isso em âmbito mundial.
São muitas as explicações, esclarecimentos e avaliações sobre como o processo de contaminação pode (ou vai) acontecer no Brasil. Alguns especialistas brasileiros se dedicam a entender, a partir das experiências de outros países, como o processo ainda se desenrolará por aqui e, ao mesmo tempo, o que pode conter essa possível tragédia anunciada. No entanto, não é preciso ser especialista para entendermos que o melhor não nos espera. É preciso aceitar o fato de que nosso cotidiano vem sendo radicalmente alterado, sem sabermos como medir, ainda, a profundidade desse impacto, nem por quanto tempo.
Partindo dessa constatação, é necessário olharmos para outro fato incontestável: como sempre, a vida e a rotina da população brasileira estão sendo afetadas de forma distinta, dependendo drasticamente do seu estrato social e econômico, do seu CEP na cidade e, dentro disso, das muitas variáveis da população que integra classes de baixa renda – moradores em situação de rua, de ocupações, de cortiços, de espaços de uso de crack, de favelas e periferias. Sem dúvida, sem um olhar cuidadoso acerca dessa realidade, segmentos já historicamente negligenciados pelo sistema no país são ainda mais afetados.
É nesse cenário que várias instituições e especialistas, preocupados com o processo acelerado de contaminação da população, começam a atentar para algo que é ignorado na prática todos os dias por uma parcela grande da sociedade e, também, por uma parte dos governantes brasileiros: o país tem a 2ª maior concentração desigual de renda do mundo, segundo Relatório de Desenvolvimento Humano, publicado pelas Organização das Nações Unidas em dezembro de 2019.
De repente, frente a uma crise que foge ao nosso controle, planejamento e organização social, surge uma “nova” preocupação coletiva, que indaga sobre o que acontecerá com os pobres neste momento. Como ficar trabalhando em casa? De que forma se manterão financeiramente, se boa parte destas pessoas trabalha sem vínculos fixos? Como os pequenos comércios sobreviverão? Como os idosos não se contaminarão se, em muitos casos, são os responsáveis diretos por cuidar dos netos enquanto os pais trabalham, por exemplo?
Diante dessas e muitas outras questões, é possível pensar que o atual momento nos coloca diante da possibilidade de reavaliarmos a maneira como queremos enfrentar as demandas historicamente estruturais que permeiam nosso cotidiano. Não é possível mais aceitar o abismo que se formou no Brasil em função da desigualdade e também do racismo, que nos estrutura como sociedade.
É preciso pensar em medidas de curto prazo para sanar uma pandemia que já se mostra catastrófica. É fundamental que existam correntes sólidas de solidariedade e confiança a partir da sociedade civil – e são elas que vêm fazendo a diferença nas favelas e periferias do país, mas é crucial, na mesma medida, que os governos façam a sua parte. Como prevenir de uma contaminação em massa quem não tem o privilégio de comprar itens para higienização, quem precisa pegar transportes públicos lotados? Como garantir a proteção dessas pessoas quando ficar em quarentena significa permanecer com a família sem poder sair, numa casa de apenas um cômodo, em alguns casos? Ou ainda: como preservar a saúde daqueles que sequer têm teto para se abrigar e que, simplesmente, não têm o que comer?
Em cada favela e periferia, existem lideranças, coletivos e instituições confiáveis que têm sido os mediadores para que recursos cheguem a quem necessita. É para eles que as doações devem ser dirigidas. Em tempos de desespero coletivo, é preciso cuidado redobrado com os oportunistas que rodeiam, que se apresentam para receber doações que nunca chegarão a quem precisa.
Temos uma necessidade imediata de auxílio financeiro para empregados informais e formais que perdem suas rendas e pequenos comerciantes que assistirão à diminuição de clientela. Somente nas 16 favelas que compõem a Maré, na zona Norte do Rio de Janeiro, residem mais de 140 mil pessoas e existem quase quatro mil estabelecimentos comerciais que estão sendo duramente atingidos. Mais do que medidas emergenciais, é preciso pensar a médio e longo prazos e garantir a essa parcela da população, historicamente negligenciada, o acesso efetivo aos mesmos direitos – saúde, segurança, saneamento e educação – das camadas mais favorecidas.
A maneira como lidaremos com esse momento sem precedentes na história mundial será determinante para que novas formas de vida se estabeleçam já. A crise instalada pelo vírus provoca e evoca uma mudança nas formas como nos relacionamos com chão que pisamos e de onde vem nosso sustento, com as existências que forjamos e, ainda, com o mundo que queremos ver no devir da pandemia.
Fonte: Carta Capital
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