As histórias de inúmeras mulheres se cruzam e formam redes de solidariedade e lutas incansáveis de resistência
"A noite não adormece nos olhos das mulheres, a lua fêmea, semelhante nossa, em vigília atenta vigia a nossa memória. A noite não adormece nos olhos das mulheres, há mais olhos que sono, onde lágrimas suspensas virgulam o lapso de nossas molhadas lembranças. (Conceição Evaristo)"
Num contexto de mais de 300 anos de colonização, 400 anos de escravidão indígena e negra, associado projeto de criminalização da periferia e constituição das cidades como o não lugar, “a noite não adormece nos olhos das mulheres” brasileiras. Ambulantes, cozinheiras, empregada doméstica, atendente, professoras, garis, dona de casa, uber, servente, desempregadas, estas e tantas outras, produzindo a riqueza de nossas cidades, porém em condições degradantes de sobrevivência e, em muitos casos, em situações de trabalho escravo disfarçado de trabalho doméstico, relação familiar ou conjugal, gratidão, trabalho terceirizado, hora extra, etc.
Como vínhamos fazendo análises desde o golpe de 2016 e hoje o próprio IBGE comprova, as pesquisas estatísticas de finais de 2018 para cá mostraram que a taxa populacional feminina com idade para trabalhar é de 52,4% e vem aumentando, porém apenas 45,6% deste grupo estão ocupadas e nesta “ocupação” destaca-se especialmente a condição de subemprego, trabalhos autônomos, bicos ou outras formas não estáveis como trabalho análogo ao escravo com modo de inserção no mercado de trabalho. Quando analisamos esses mesmo dados entre mulheres negras e/ou pardas, o índice ultrapassa os dados percentuais de 50% enquanto que o desemprego entre pessoas brancas obteve uma redução de 40% para 34,6%. Tendencialmente estes números só tem a serem progressivos entre a população negra de modo à precarizar e colocar em situação de miserabilidade muitas mulheres à medida que mais retrocessos forem se consolidando no cenário brasileiro.
Ao associarmos esses dados ao número alarmante de mulheres desempregadas no Brasil (mais de 54%), identificamos um fenômeno não muito novo, mas que tem assumido feições diversas e se tornado mais evidente à população em geral: a racialização e feminização da pobreza. As pessoas pobres ou miseráveis são mulheres negras comprovando que a classe trabalhadora no país são mulheres negras, porém invisibilizadas porque estão na condição de exército de reserva. E a cada contradição urbana que surge ou se aprofunda, se mostra ainda mais este rosto feminino visivelmente negro no Brasil, em sua maioria trabalhadoras desde os 4 anos de idade, muitas alcançando a vida adulta sem escolarização alguma ou que concluiu o ensino médio como muita dificuldade, uma parcela incontável de mães solteiras, com tripla jornada de trabalho ou em condição terríveis de trabalho ainda nos tempos atuais.
Nestas condições, desde um dia após a abolição até os dias atuais, na situação de não ter para onde ir, a mulher sobe o morro porque a cidade a marginaliza, a proíbe de ir e vir, de descer o morro, de acessar o centro, de decidir por seu próprio corpo, pelo destino de seu próprio lugar de trabalho e moradia, de decidir por sua existência. Contudo esta Mulher vem se rebelando e entendendo que o desemprego, a carestia do transporte público, a falta de saneamento básico, a falta de moradia, sucateamento da Educação, Saúde, Cultura, a violência econômica, a negação do direito de decidir por seu próprio corpo, de se divertir e de descansar nada mais são do que barreiras à sua felicidade plena e rompe a luta contra esse estado de coisas.
Olha a cidade e a reivindica, vai às ruas, dá voz à paz negada e perde o medo de enfrentar quem a violenta porque constata que, ainda que a cidade tenha se consolidado com o capitalismo, ela (A Cidade) é de quem a produz: da classe trabalhadora. E sendo a classe trabalhadora esse rosto feminino, então a cidade é da mulher e sendo dela, é seu direito lutar por este território e conquistá-lo.
Lendo o mundo, as histórias de inúmeras mulheres se cruzam e formam redes de solidariedade e lutas incansáveis de resistência se acumulam nos espaços auto-organizados, nos bairros, associações, movimentos sociais, na política partidária, na economia solidária, no campo e na cidade, levantando as bandeiras por direitos, vão alargando o horizonte, acolhendo mais camaradas, e fazendo da marcha feminista a libertação de nossa nação.
E descobrindo que a liberdade é uma condição possível, a cidade não adormece nos olhos das mulheres.
Fonte: Brasil de Fato
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