Esse pequeno conflito ocorre várias vezes ao dia diante dos prédios que funcionam como sedes de bancos de investimento e empresas de tecnologia. Crianças e adolescentes pobres são seguidas por um grupo de ex-detentos contratados para organizar os equipamentos de mobilidade ao longo da avenida que virou símbolo do dinheiro paulistano.
Essa alta concentração de renda na Faria Lima levou os jovens empresários e investidores ricos da rua a ganharem a alcunha de "faria limers", dada pela revista Veja São Paulo.
Mas na base dessa pirâmide existe também um enorme contingente de pessoas comuns que lutam para sobreviver trabalhando no asfalto: são os marmiteiros, entregadores de comida, engraxates, mecânicos de bicicletas, manobristas, pedintes, panfleteiros, crianças vendendo balas, catadores de recicláveis, vendedores de panos de prato e compradores de ouro.
Eraldo Virgínio, 42, é guardião de patinetes e bicicletas. Sua função é organizar os equipamentos na avenida e deixá-los disponíveis para os milhares de usuários da Faria Lima, o principal ponto de uso do serviço na cidade. "O pessoal larga os patinetes em qualquer lugar: na ciclovia, no meio da calçada, em cima do piso tátil para as pessoas cegas. Sou um guardião que arruma a avenida", diz.
Ele é um dos membros do time do Projeto Responsa, que contrata egressos do sistema carcerário para atuar para empresas de aluguel de bicicletas e patinetes na cidade.
Virgínio começou na avenida há pouco mais de um ano, depois de um período de desemprego — antes, passou cinco anos preso, condenado por tráfico de drogas. "Fui comprar um baseado e a polícia me pegou com umas parangas de maconha. Lugar errado na hora errada", conta.
Quando saiu da cadeia em 2016, as portas continuaram fechadas para ele. "Se você não tem uma oportunidade, o único que abre os braços para você é o crime. Você não acha emprego de jeito nenhum, porque as pessoas olham seus antecedentes e desistem de você. Mas eu não queria o crime para minha vida, porque vi meus filhos sofrerem muito quando eu estava longe", diz.
Eraldo Virgínio é um dos responsáveis por organizar os patinetes e as bicicletas na avenida Faria Lima
O resgate de bicicletas e patinetes na Faria Lima surgiu como uma das poucas chances de retomar uma vida normal. "Um trabalhador a mais é um bandido a menos", diz. De manhã, ele sai da favela São Remo, zona oeste, com destino à avenida. Então percorre a via e reagrupa os equipamentos abandonados pelos usuários. Mas há outras tarefas mais complicadas.
Por causa dessa grande oferta, dezenas de crianças e adolescentes de bairros mais pobres vão diariamente à Faria Lima em busca de patinetes e bicicletas que os clientes esquecem destravados — já foram registrados casos em que menores de idade usaram as ferramentas para furtar pedestres.
Não é incomum ver uma espécie de perseguição em plena a avenida: um grupo de guardiões correndo atrás de adolescentes em cima de patinetes, a 20 quilômetros por hora — velocidade máxima do equipamento.
"Nós respeitamos os menores. Pedimos o patinete numa boa. Falo assim: 'moleque, não tenho nada contra você, mas é o meu trabalho'. Eu falo como eles, e eles me respeitam. Mas sempre há alguns mais marrentos", diz.
'A gente vive como pode'
Nos 4,6 km de extensão da Faria Lima, você pode ver edifícios com fachadas envidraçadas em azul marinho, chafarizes na entrada e gramadinhos sintéticos com pufes para funcionários descansarem nos intervalos. Os nomes dos edifícios podem ser simples e autorreferentes, como Faria Lima Square e FL 4300, ou mais pomposos como Helbor Lead Offices ou Zabo/FL Corporate.
Também dá para se sentar em um café chique e comer uma fatia de panetone quente com sorvete (por R$ 15) enquanto executivos discutem o mercado de ações e a alta do dólar. Na calçada, seguranças levantam o braço para frear a passagem de pedestres e deixar o caminho livre para carros de luxo com vidros escuros, como Mercedes e BMWs.
Por outro lado, há casas noturnas mais modestas, como o Recanto e o Love Dance (R$ 10 a entrada, ganha uma cerveja); barracas de frutas da estação e água de coco; um rapaz que vende brigadeiros e beijinhos em uma bicicleta; uma "disputa" de rimas de rap com jovens da periferia chamado "Largo da Batalha" (nas noites de quarta-feira, no Largo da Batata); marmitas por R$ 10 (aceita cartão) para quem é menos afortunado que os faria limers.
O Largo da Batalha, 'briga' de rimas com rappers da cidade, ocorre todas as noites de quarta-feira no Largo da Batata, na Faria Lima
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Uma das marmiteiras é Socorro Bezerra, 48, que fica em frente a um enorme prédio chamado Miss Silvia Morizono. Segundo ela, porém, o foco da quentinha (omelete, carne moída, filé de frango ou bisteca...) não são executivos nem investidores, mas sim funcionários da limpeza, seguranças e motoboys que não podem desperdiçar parte do salário comendo nos restaurantes caros da rua.
"Pagar R$ 60 no almoço não é para qualquer um...", diz.
Ela monta um mesinha com uma caixa de isopor onde guarda a marmita por volta das 10h, e espera os clientes ou pedidos pelo WhatsApp. O ponto de venda mesmo não é dela, mas de um restaurante popular que espalhou 10 marmiteiras pela Faria Lima. Socorro tem a meta de vender 17 unidades por dia — na maioria, consegue mais que isso.
Ela nasceu no Ceará e migrou para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Sem qualificação, porém, ficou anos desempregada ou sobrevivendo de bicos. Como a Faria Lima é muito longe de Guarulhos, onde mora, ela passa a semana na casa de uma irmã, no Jardim Ângela. "Não dá para eu ficar duas horas para ir e mais duas para voltar", conta.
Uma de suas duas filhas, a mais velha, cursava pedagogia em uma universidade no interior. Era a primeira da família a fazer faculdade, uma esperança de melhoria na vida. Mas a jovem precisou parar os estudos por falta de dinheiro. "Na semana passada, ela fez uma entrevista de emprego aqui perto, no shopping Vila Olímpia. Mas até agora não recebeu resposta", diz.
'É só bike de alto nível'
Por outro lado, há quem enxergue no asfalto da Faria Lima uma oportunidade para um pequeno negócio. Felipe Falcão, 39, por exemplo, sabia arrumar bicicletas desde que trabalhou com isso na juventude. Há um ano e meio, ele passou pela avenida e viu a enorme quantidade de ciclistas por ali.
Ele fica de domingo a domingo no meio da ciclovia da Faria Lima com um kit com ferramentas e pneus novos.
"Arrumo bike, bike elétrica, patinete, moto, scooter. Vou te falar a verdade, meu público são os bacanas, os patrões, a alta sociedade. Na Faria Lima nada é de graça: não empresto a chave, cobro R$ 2,50 para encher o pneu, R$ 80 por um novo, e o parafuso também é cobrado. Não dou nada pra ninguém, não. E os patrões pagam tudo", diz Falcão.
Ele explica que seus clientes — a maioria trabalha em escritórios da região — utilizam bicicletas de marcas mais caras. "É só bike de alto nível... Sense, Track, Scott, Schwinn, Specialized..."
O mecânico, que vive sozinho, conta que tem guardado dinheiro para conseguir viver melhor — já até comprou uma moto elétrica para sair de sua casa no Limão (zona norte) até a Faria Lima. "É o que sempre digo: dinheiro não aceita desaforo. É só saber usar que você vai ter por um bom tempo."
O mecânico Felipe Falcão montou um posto de manutenção de bicicletas e patinetes na ciclovia da Faria Lima
Alguns metros à frente, a vida está mais difícil para o engraxate Henrique Magalhães, 51. Ele aprendeu o ofício ainda adolescente e, por décadas, trabalhou na praça da Sé, no centro. "Mas lá está uma bagunça. As pessoas têm medo de sentar para engraxar o sapato e ser roubada por um trombadinha", explica.
Foi para a Faria Lima há ano, mas o negócio não anda nada bem — ele tem engraxado apenas dois sapatos por dia, o que rende só R$ 30. "Continuo por necessidade e porque não sei fazer outra coisa", afirma Magalhães, que mora na região da Luz — ou, como ele diz, "cracolândia mesmo". "Mas pelo menos dá para o arroz e o feijão."
O problema na Faria Lima é mesmo a falta de clientes interessados em dar um brilho no sapato, e não tanto a concorrência. "Que eu saiba, aqui nessa parte da rua só tem mais um engraxate. Ele é loirinho assim igual você... Mas me falaram que ele é racista, e eu não falo com racistas", diz.
'Hoje não vendi nenhum pano'
O engraxate Henrique Magalhães deixaou a praça da Sé e foi para a Faria Lima em busca de novos clientes
Na Faria Lima você também pode se deparar com algumas crianças de chinelo tentando vender balas a clientes de um shopping center de luxo enquanto, na frente de uma estação do metrô, funcionários do Greenpeace pedem doações para a causa ambiental.
Nos semáforos, você pode encontrar com Rafael Kinaia, 24, que sai de Santo André (Grande São Paulo) para vender panos de prato no coração do PIB paulistano — custa R$ 2,50 a unidade. "Costumo vender uns 80 por dia, mas hoje está chovendo e não consegui nenhum ainda", conta.
Ele se ajoelha na calçada, coloca um bolo de panos de prato na frente e começa a rezar em voz alta, quase chorando. "Meu Deus, me ajuda, me ajuda... Hoje não vendi nenhum pano e eu preciso do dinheiro..." Rafael se levanta, explica que costuma parar o trabalho para orar. Então ele diz: "Boa sorte aí com a reportagem". E vai embora para outro semáforo.
'Essa área é nossa'
Até algumas semanas atrás, uma pequena favela sobrevivia a poucos metros da Faria Lima — a comunidade Funchal. Ela surgiu há cerca de 60 anos, quando ninguém sonhava que ali cresceria um polo do mercado financeiro. Ao longo dos anos, foi sendo reduzida até praticamente sumir em meio aos prédios.
Ela foi desapropriada pela prefeitura para a construção de habitações sociais, que devem contemplar parte dos antigos habitantes da favela. No dia da reintegração de posse, alguns moradores se postaram em frente à comunidade enquanto a Polícia Militar e tratores da prefeitura derrubavam os barracos onde viviam 272 famílias.
"Nasci e cresci nessa comunidade. É muito triste ver minha casa sendo destruída, mas espero que seja para algo melhor. Espero voltar para viver aqui", diz Maria Isabel da Silva, 48, desempregada.
Morar em uma região rica com uma renda baixa é tarefa difícil. Os moradores contam que precisam se deslocar para bairros mais pobres, como Paraisópolis e Jardim Miriam, para fazer compras no supermercado.
"O custo de vida na Faria Lima e na Vila Olímpia é caríssimo", diz Ana Cecília Gomes, 35, entregadora do Ifood. "Nós ficamos porque somos batalhadores, e essa área é nossa, mesmo que muita gente não queira."
Um minuto antes das escavadeiras entrarem para pôr fim à favela, muitos dos moradores choravam com a despedida do local onde nasceram. Desesperada, uma mulher passou pelo bloqueio policial para procurar um gato que havia se perdido no meio dos barracos. Mas ele não foi encontrado — e tudo veio abaixo logo depois.
A favela Funchal, a poucos metros da Faria Lima, deixou de existir para dar lugar a prédios de habitação social
Fonte: BBC Brasil
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