Dado que integra relatório da Fundação João Pinheiro (FJP) indica crescimento de 15,8% no índice, em Minas Gerais, em um intervalo de quatro anos: Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) conseguiu aprovar projeto voltado à redução do deficit na capital
Com a fala entrecortada pelo barulho dos ônibus e automóveis que percorrem a rua dos Caetés, à região Central de Belo Horizonte, Maria Eliseth, 60, relembra os pormenores da noite de 14 de abril de 2015, quando ela e cerca de 150 famílias sem moradia irromperam os portões do antigo prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no número 530 da via, vazio há mais de duas décadas, para habitá-lo. A ocupação à rua dos Caetés, facilmente reconhecida pela faixa com os dizeres "este imóvel cumprirá sua função social", foi a primeira no hipercentro da capital, mas, com o crescimento do número de pessoas sem-casa em Minas Gerais e na região metropolitana de Belo Horizonte, não será a última.
Um relatório recém-divulgado pela Fundação João Pinheiro (FJP) a partir de metodologia que parte dos dados coletados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc) indica que o Estado de Minas Gerais é o segundo do Brasil com maior déficit habitacional – amostragem mais recente, de 2019, revela que 496 mil núcleos familiares não têm onde morar na região. O índice é 15,8% maior que em 2016, quando a PNADc foi lançada. À época, o déficit mineiro era de 428 mil domicílios.
O déficit habitacional é calculado a partir de três circunstâncias: famílias que arcam com ônus excessivo do aluguel – são aquelas que recebem até três salários mínimos, e empregam 30% da renda com o aluguel –, pessoas que moram "de favor" e aquelas que residem em habitações precárias. À região metropolitana de Belo Horizonte o cenário mantém parâmetros semelhantes aos do Estado de Minas Gerais. Com 11,1% de crescimento entre 2016 e 2019, o déficit saltou de 96 mil para 107 mil. Especificamente na capital mineira, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) reconhece a existência de 56 mil famílias e pessoas sem moradia. Em contrapartida, de acordo com levantamento da Câmara Municipal de BH, são 64 mil os imóveis vazios na cidade – ou seja, há mais imóveis vazios que famílias sem-casa, como pondera a vereadora Bella Gonçalves (PSOL) sobre a situação habitacional.
"A ausência de moradia gera uma série de problemas sociais, aumenta a miséria das famílias, provoca a desestruturação desses núcleos que, após mudanças, remoções e despejos, se desencontram. O Brasil nunca efetuou uma política de habitação séria". A percepção da vereadora, integrante do movimento Brigadas Populares, é de que o cenário caótico da habitação foi principalmente acentuado com o coronavírus. "A pandemia escancarou as desigualdades habitacionais na nossa cidade. Percebemos um aumento contínuo de famílias sem-casa, e especialmente de famílias inteiras que estão indo morar na rua em função de despejos, por não poder pagar seus alugueis. Vemos crescer, e muito, a pressão por novas ocupações em Belo Horizonte", reforça.
Hoje, de acordo com a PBH, 108 mil pessoas residem em ocupações urbanas na capital mineira – como as ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, que compõem a Izidora, a maior de BH, nos limites do município com Santa Luzia. O crescimento do déficit habitacional em Belo Horizonte tornou-se assunto em audiência da Câmara Municipal que, no início do mês, deu parecer favorável a um projeto de lei do prefeito Alexandre Kalil (PSD), que pretende aliviar o gargalo de moradias na cidade. O PL 826/2019 foi aprovado, e seguirá para ser submetido à redação final. O projeto autoriza o Executivo de BH a doar áreas públicas e próprias para programas públicos de habitação, como também permite que a PBH faça aportes financeiros no Fundo de Arrendamento Residencial. Com ele também é criado o Programa de Compra Compartilhada de Imóvel, que oferecerá auxílio financeiro para aquisição de moradias por famílias selecionadas.
"Nós acreditamos que é um instrumento interessante, mas, BH terá que construir uma política de subsídios mais robusta. É necessário que a prefeitura dê uma entrada alta na compra dos imóveis para diminuir o valor das parcelas que as famílias têm que pagar", esclarece Bella Gonçalves.
Ocupações. Um corredor à esquerda de quem adentra o antigo prédio do INSS na rua dos Caetés desemboca no primeiro lance de escadas para a entrada na ocupação. Atualmente, 49 núcleos familiares estão instalados no espaço. As salas do edifício comercial foram separadas em três espaços, um para cada família, banheiro coletivo e, em algumas delas, há também uma cozinha. A sensação de que há um número maior de pessoas e famílias ocupando as ruas de Belo Horizonte após o início da catástrofe sanitária da Covid-19 é compartilhada também por Maria Eliseth, que integra a coordenação do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM).
"O número de pessoas nas ruas cresceu muito. Eu estou impressionada. A gente que mora aqui no centro de BH, percebe melhor essa movimentação. Tenho escutado de muita gente: 'ah, estou morando agora na praça da Estação'. A situação está muito difícil. São famílias e mais famílias morando ali nas entradas dos casarões na avenida Amazonas", pontua. "As pessoas estão desesperadas, principalmente nessa época de frio. O que ela pode fazer? Tem casas vazias, e só resta entrar nesses imóveis para sobreviver. São pessoas com crianças, com idosos, com pessoas deficientes...", conclui.
A realidade de sobreviver em uma ocupação tornou-se mais áspera para ela nos últimos três anos, quando perdeu o pai, que vivia com ela na ocupação, acamado, aos 101 anos, e quando descobriu um câncer. Recuperada, Maria Eliseth afaga os cabelos que recém-cresceram e cita as dificuldades do dia-a-dia em ocupações. "Tudo em ocupação é complicado. Em alguns imóveis, como aqui, você tem água, luz, mas, em outros, não. E são coisas essenciais para o ser humano. Morar em ocupação não é fácil".
Frederico Poley, cientista da Fundação João Pinheiro (FJP) que liderou a construção do relatório, igualmente partilha da percepção de que o déficit habitacional sofrerá um aumento estatístico após a pandemia de Covid-19, e em função dela. "A tendência é de aumento em função do aumento do desemprego. Temos observado um crescimento da população em situação de rua. Muitos não conseguem pagar aluguel, e a tendência é de que o déficit cresça em decorrência da pandemia", detalha. Despejos estão suspensos até dezembro de 2021, mas, a determinação aprovada no Senado Federal não se aplica à realidade do mercado imobiliário informal.
Habitações precárias
À região Norte de Belo Horizonte, a Vila Biquinhas concentra construções de palafitas, como as tão conhecidas nas regiões Amazônica e Pantanal. Entretanto, longe de aproximar-se das belezas naturais e dos rios de tais localidades, a ocupação é mergulhada em um esgoto a céu aberto nas imediações do bairro Heliópolis, e as palafitas erguidas para minimizar impactos de enchentes no córrego. A construção não foi suficiente para evitar que Sérgio Marques, 62, perdesse parte de seu imóvel no último período de chuvas na capital mineira.
Coordenador da Pastoral Metropolitana dos Sem-Terra, ele foi uma entre as três pessoas que primeiro chegaram à região para ocupá-la. Foram poucas as mudanças que ele percebeu no período de quarenta anos para cá. "Nós somos a única ocupação de Belo Horizonte que ainda tem casas de palafita. A área da Vila Biquinhas é uma ocupação, somos em 1.400 famílias. Agora é que começamos a perceber alguns indícios de mudança, com o prefeito Kalil estamos percebendo um tratamento mais humanizado sobre a questão do esgoto, ele (Alexandre Kalil) quer construir a rede de esgoto", pontua. Imóveis em palafita na Vila Biquinhos são contemplados no déficit habitacional como habitações precárias. Em Minas Gerais, 113 mil são consideradas precárias, e na região metropolitana de Belo Horizonte, são 5.061 imóveis inabitáveis, de acordo com o relatório da FJP.
A lembrança de ter vivido em um acampamento na Igreja São José, no centro de Belo Horizonte, é a primeira recordação que aparece à mente de Carlos da Silva, 53, quando ele relembra o início de seu engajamento em organizações sociais que defendem políticas habitacionais. "Meu pai me levou para o acampamento. Eu era rapazinho na época, mas já queria saber e entender o porquê de nós estarmos morando na igreja, debaixo de uma lona, enquanto pessoas viviam nos prédios do centro. Tinha essa consciência, mas não sabia explicar".
Um modelo semelhante de manifestação por moradia foi o escolhido por ele no início do mês, em 13 de julho, quando Carlos e colegas de movimentos sociais armaram um acampamento às portas da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), no bairro Santo Agostinho, na região Centro-Sul de BH, para pedir que o Estado de Minas Gerais destine parte dos R$ 37 bilhões acordados com a Vale, pela tragédia em Brumadinho, para a construção de moradias de interesse social.
"Quando eu comecei a lutar, já desacreditado e com muito sofrimento, jurei para Deus: 'Deus, o dia que você me der uma casa, eu prometo lutar o resto da minha vida por quem não tem'. E assim aconteceu, consegui minha casa aqui na ocupação Vila Mariquinhas". Coordenador-geral da Pastoral Metropolitana dos Sem-Casa, Carlos é morador da antiga ocupação, que tornou-se o bairro Juliana, à região Norte de BH. "Hoje nós precisamos de cerca de 40.000 moradias em BH. Foi o que a gente reivindicou na Assembleia com o dinheiro da Vale".
O número indicado por ele corresponde ao número de famílias cadastradas nos movimentos sociais. Para ele, a solução para o déficit habitacional em Belo Horizonte seria repetir a política adotada pela ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina, entre 1989 e 1992. "Acreditamos no modelo de autoconstrução, como a Erundina apostou em São Paulo, e o padre Pigi (da luta por moradia ligada à Arquidiocese de Belo Horizonte) no Conjunto Felicidade. A autogestão significa que o governo fornece materiais de construção e o terreno, e nós mesmos construímos os imóveis".
O modelo é também citado pela vereadora Bella Gonçalves (PSOL) como um dos caminhos para sanar o deficit habitacional na capital mineira. "A primeira solução é definir uma política para utilização de imóveis vazios. A segunda receita é investir em provisões habitacionais para famílias de baixa renda, ou seja, mexer na política de alugueis para tentar garantir preços mais baixos. A terceira repete o que Luiza Erundina executou em São Paulo. O município oferece o terreno, a assessoria técnica e os materiais de construção, e as famílias, de forma auto-organizada, conseguem construir suas moradias", afirma.
Fonte: O Tempo
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