Movimento foi marcado pelo conflito entre gerações no país: jovens não encontravam um lugar na sociedade
“Um clichê que se tornou nostálgico e mesmo conservador”. A frase, do antropólogo, sociólogo e especialista em sexualidade na França, Michel Bozon, desmistifica a “revolução sexual”, que supostamente teria eclodido junto com Maio de 68. Para ele, assim como para a historiadora Michelle Zancarini-Fournel, a liberação sexual nunca foi uma das pautas principais do movimento que completa 50 anos.
Apesar de slogans eficazes, como “Gozem sem impedimentos” (“Jouissez sans entraves”, no original em francês), a sociedade francesa da época era conservadora e tinha o casamento heterossexual formal como referência. A mudança veio, poderosa, mas nos anos pós-68, com os combates levados a cabo pelas feministas e pelos homossexuais na França.
"Ambos os especialistas concordam que Maio de 68 foi, acima de tudo, um momento marcado pelo conflito entre gerações no país."
Os jovens não encontravam seu lugar na sociedade onde chegavam e seu modo de vida havia se tornado muito diferente do de seus pais ou avós. “Isto encontrava eco especialmente no meio estudantil, num contexto em que a situação era difícil, haviam muito poucas universidades e poucas vagas disponíveis dentro delas. Foi depois de Maio de 68 que criamos faculdades para acolher toda essa geração do baby boom pós-Segunda Guerra mundial que era muito numerosa”, relata o sociólogo Michel Bozon, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos Demográficos da França (Ined).
“A liberação sexual não foi nem uma reivindicação, nem uma expressão de Maio de 68”, afirma a historiadora Michelle Zancarini-Fournel, co-fundadora da revista online CLIO Genre Histoire. “Houve efetivamente um certo número de publicações, cursos e conferências sobre a questão da sexualidade, e, em particular, de tentativas de mudar o funcionamento dentro das residências universitárias, que os rapazes pudessem ter acesso ao dormitório das moças. Para que as meninas pudessem obter uma liberdade de movimento”, lembra a historiadora, recordando que as mulheres eram obrigadas a voltar para seus quartos antes das 23h.
A transformação da sexualidade na França foi um fenômeno ao longo termo, “não foi da noite para o dia”, diz. “Houve discussões sobre o tema antes de 1968, mas não teve nada a ver com as reivindicações de Maio-Junho de 68”, pontua Zancarini-Fournel. “Primeiro, a sexualidade não era uma preocupação central do movimento de Maio de 68”, concorda Bozon. “Foi um movimento estudantil e operário”, afirma. “Dentro das fábricas, o imperativo dos sindicatos era instaurar uma democracia, sair do monarquismo instalado na hierarquia, reivindicar melhores salários”, lembra.
O especialista destaca as reivindicações surgidas a partir do forte conflito entre gerações e comenta o slogan “Jouissez sans entraves” (“Gozem sem impedimentos”), dos “anarquistassituacionistas [referência ao movimento de esquerda, herdeiro do marxismo e do surrealismo]” da faculdade de Nanterre. “A frase descrevia bem o desejo por um estilo de vida mais intenso. ‘Não queremos repetir os passos da geração passada’. O erro, essencialmente anacrônico, é de ter interpretado este momento, 20, 30 anos depois, como parte de uma revolução sexual. Não era nada disso”, diz o pesquisador.
“Reduzimos essa época a alguns estudantes de Nanterre, mas não é verdade, foi um movimento social profundo, que mexeu com o conjunto do país, não somente Paris, houve a maior greve geral do século 20, sete mil trabalhadores, havia muitas outras preocupações além da sexual”, diz a historiadora Michelle Zancarini-Fournel. “Não se deve falar de revolução sexual, isso não aconteceu”, afirma.
Mudança começa antes de 1968, mas casamento continua “indispensável”
O comportamento sexual dos franceses já havia começado a mudar um pouco antes de Maio de 68. As mulheres já começavam a ter relações sexuais mais cedo, antes do casamento, mesmo sem ter livre acesso a métodos de contracepção. “Mas o casamento formal continuava a ser algo essencial, na Igreja e na prefeitura”, detalha Michel Bozon. “As feministas se preocupavam então com o acesso à contracepção. Ao contrário do Brasil, elas não se debruçaram sobre este tema na época, na França houve uma mobilização antes de 1968 que resultou na legalização dos métodos contraceptivos, que eram proibidos desde 1920”, aponta o especialista em sociologia da sexualidade.
"Depois de 1968, foi necessário algum tempo para que a lei entrasse em prática e as mulheres começassem a utilizar a contracepção, considerada um marco na vida sexual dos franceses."
As feministas continuaram a lutar contra dois pontos: a lei que proibia o aborto, com grandes manifestações na França nos anos 1970. A lei foi finalmente mudada, autorizando o aborto, em 1975. Outro ponto foi, no fim da década de 1960, uma lei que muda a criminalização do estupro, a Lei contra o estupro, em 1980”, indica Bozon.
Se as feministas ousaram falar sobre o direito sobre seus corpos, na época poucos homens pareciam interessados na legalização do aborto ou nas questões relativas ao estupro. “No caso do combate pela contracepção era mais complexo, havia médicos envolvidos, essencialmente o movimento francês pelo planejamento familiar, havia homens comprometidos com essa causa. As mulheres lutavam por uma verdadeira autonomia feminina, não era a busca de uma liberação sexual, era bem diferente. Elas buscavam uma autonomia sobre seus corpos, queriam usufruir do direito de decidir se querem abortar ou se desejam consentir ou não com uma relação sexual”, explica o sociólogo.
Apesar de desmistificarem a ideia de uma “revolução sexual” em Maio de 68, os especialistas concordam sobre os efeitos de algumas questões levantadas durante o movimento social. “Os ecos dessas questões levantadas no pós-1968 são visíveis hoje, em grandes fenômenos de sociedade, como o nascimento de crianças fora do contexto do casamento tradicional, a explosão do número de separações, de divórcios”, contextualiza Michelle Zancarini-Fournel.
Fonte: Carta Capital
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