“Fui ao lançamento de três livros sobre a morte do meu irmão. E todo mundo me dizia que a história ia ficar só nisso, nos livros”, diz Norma. “Mas eu não queria isso. Quero justiça.”
Aos quase 40 anos, algumas rugas começam a se desenhar no rosto da camponesa. Ela sorri muito, mas o semblante muda quando fala de justiça. Para essa mulher capaz de viajar quilômetros para votar nulo em cada eleição, casada com o filho de um torturado pela ditadura, a justiça pode ser algo tão simples como dizerem, oficialmente, que ela tem razão.
O Comitê de Direitos Humanos da ONU lhe deu razão no dia 14 de agosto de 2019, oito anos depois da morte de seu irmão Rubén. Naquele dia, ela estava olhando o Facebook pelo celular quando leu que na Suíça, a 10 mil quilômetros de sua casa, o Comitê havia responsabilizado de maneira inédita o Estado paraguaio por violar o direito à vida em um caso relacionado a agrotóxicos.
O parecer chegou quase seis anos depois do caso ter sido apresentado por advogados da Coordenação de Direitos Humanos do Paraguai e da organização Base-IS, em nome de Norma, sua mãe, Hermenegilda Cáceres, da ex-cunhada Isabel Bordón, do seu pai, Ruperto Bordón, de seus irmãos Ceferino, Ignacio e José Bordón, de Diego Portillo – filho de Rubén, agora com 11 anos. E também de outras pessoas que tiveram a saúde afetada.
Os experts da ONU não puderam dizer se Rubén Portillo morreu por intoxicação causada por agrotóxicos. Mas puderam determinar que o Estado paraguaio não cumpriu a responsabilidade de investigar se foi isso o que aconteceu, apesar de diversos indícios.
“O Estado-parte não forneceu nenhuma evidência e não forneceu uma explicação alternativa para o que aconteceu. Além disso, o Sr. Portillo Cáceres morreu sem que o Estado-parte desse uma explicação, já que a autópsia nunca foi realizada”, afirmou o Comitê em seu parecer.
O Comitê concluiu também que “o direito à vida não pode ser entendido corretamente se for interpretado restritivamente” e que “a proteção desse direito exige que os Estados adotem medidas positivas”.
Ou seja, para um Estado violar o direito à vida, não é necessário que tenha contaminado as águas ou acionado os aviões que pulverizaram pesticidas sobre as famílias de Yerutí. Basta não ter feito nada contra essas violações, apesar das persistentes reclamações que vinham desde anos antes da morte de Portillo.
Norma, Isabel e seu pai, Ruperto, suspeitam que atualmente a Cóndor/KLM S.A. e a Hermanos Galhera S.A. continuam produzindo soja e fumigando agrotóxicos nas áreas próximas a Yerutí.
Isabel Bordón, viúva de Rubén, abandonou a casa onde moravam com seu filho, Diego.
O que acontece quando o Estado não faz nada
– Os brasileiros mataram o meu papai?
– Ninguém sabe, filho.
Após a morte do pai, Norma e Isabel escondiam de Diego até os pintinhos que apareciam mortos, para que o menino não chorasse. Ele tinha dois anos e meio. “Um dia ele veio me perguntar se o pai havia sido morto pelos brasileiros. Alguém lhe disse isso e ele repetiu na escola”, diz Norma. Seca as lágrimas. Ela negou: “Nós não sabemos, querido”.
A mãe, Isabel, teve que responder à mesma pergunta: “Ninguém sabe”, disse.
“O que acontece em Yerutí é um exemplo do que acontece quando o Estado não faz absolutamente nada”, diz Hugo Valiente, um dos advogados que levaram o caso ao Comitê de Direitos Humanos da ONU.
A decisão obriga o Estado paraguaio a realmente investigar a morte de Rubén, indenizar as vítimas e estabelecer medidas de não repetição.
O que podem ser essas medidas de não repetição é o que Valiente, Abel Areco, da organização Base-IS, e a advogada Milena Pereira discutiam com Norma, Isabel e o resto dos signatários do processo enquanto tomavam tereré, uma espécie de chimarrrão gelado, na sua casa no final de outubro deste ano.
“O que o Estado faz mais facilmente é pagar”, explica Valiente. Em todas as condenações que sofreu na Corte Interamericana, o governo paraguaio geralmente cumpre e paga a indenização. A condenação a respeito de Yerutí impõe um prazo, dezembro deste ano, para que o governo negocie os termos com as famílias.
“Ninguém diz nada na minha cara, mas as pessoas falam por aí que receberemos dinheiro e que, para nós, só importam os benefícios. E não é assim”, reclama Norma Portillo. “Sou muito problemática, é o que dizem os brasileiros, é por isso que tenho certeza de que eles não oferecem para arrendar a minha terra.”
Norma reclama que os brasileiros não querem nem vender milho para suas galinhas. “Eu tenho que esperar meu marido vir e comprar em Curuguaty, que é longe.” Mario Recalde, seu parceiro, não consegue emprego na vizinhança porque não fala português. Então, ele trabalha em uma fazenda da família a 70 quilômetros dali. E vê Norma, sua filha e o seu neto quatro dias por mês.
Fonte: Agência Pública
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