Josiene Costa, médica brasileira formada em Cuba, relata experiência no Programa Mais Médicos, na cidade de Araripina, no interior de Pernambuco.
Ainda é cedo quando a jovem Josiene Costa inicia a caminhada semanal pela casas da periferia da cidade de Araripina, no sertão pernambucano.
O jaleco branco não esconde a função dela, sobretudo, depois dos gritos da meninada: “A doutora chegou”.
O jaleco branco não esconde a função dela, sobretudo, depois dos gritos da meninada: “A doutora chegou”.
Josiene nasceu no Piauí, de família camponesa organizada pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), e abraçou a possibilidade de ir estudar medicina em Cuba em meados de 2008. Formada e de volta ao Brasil, ela atua no Programa Mais Médicos, do governo federal, e conta, nesta entrevista à equipe de comunicação do MPA, um pouco dessa experiência. Além de todos os desafios que já enfrenta – como jovem, nordestina e camponesa –, Josiene agora é médica popular.
– Conte-nos por que escolheu a carreira de medicina. Como surgiu essa oportunidade de estudar em Cuba?
Confesso que nunca tive a perspectiva de seguir essa profissão. Venho de uma família camponesa e sempre estudei em escolas públicas. Entrar em uma universidade não era um sonho fácil de ser realizado, imagine então conseguir um curso de medicina em uma universidade brasileira, onde só os filhos e as filhas da burguesia teriam condições financeiras de fazer o curso e se formar.
Desde 1959, com o triunfo da Revolução, Cuba tem tido alta sensibilidade para a saúde pública. Eles já formaram, ao longo dos anos, mais de 49 mil médicos, dos quais 24.486 são pelo Projeto Elam [Escola Latino-americana de Medicina] que atende 84 nações. Hoje, médicos e médicas cubanos contribuem ativamente em 12 faculdades de medicina, principalmente em países africanos, onde se formam centenas de médicos todos os anos. Fidel Castro Ruz concebeu a criação da Faculdade de Medicina da América Latina (Elam) para formar jovens médicos e a maioria desses estudantes vem de famílias pobres, de baixa renda, em áreas remotas e de organizações sociais de todos os continentes.
– Nesse período em que você morou na ilha, o que mais a impressionou?
Se eu fosse citar tudo o que existe de marcante e forte na ilha de Cuba, eu teria que parar de exercer a medicina para me dedicar a escrever um livro [risos], mas uma das coisas que mais me tocou é o humanismo do povo cubano. Um povo que lutou pela liberdade de seu país e que até hoje luta todos os dias para manter a Revolução de pé. Mas existem alguns detalhes que passam despercebidos pelos olhares de muitas pessoas que viajam para lá que, muitas vezes, vão com uma visão preconceituosa, elitista e não percebem coisas simples, como as crianças brincando pelas ruas de Havana e demais províncias, correndo para cima e para baixo, sem que seus pais se preocupem, não importa a idade, pois nada irá acontecer com eles lá fora, nenhuma criança irá pedir o que comer nas esquinas, pois estão todas nas escolas e, quando chegarem em casa, terão comida na mesa garantida. Toca-me muito saber que lá não existem famílias querendo um pedaço de terra para plantar, pois a reforma agrária foi o primeiro ponto discutido após a Revolução. Não existem jovens sem acesso à escola, pois em Cuba todos os jovens tem direito à universidade.
– Cuba é reconhecida pela universalização e pela qualidade da medicina. Conte-nos sobre essa experiência, o que mais chamou sua atenção?
Primeiro, temos que entender a diferença da medicina preventiva exercida em Cuba e a curativa exercida no Brasil, sendo que a preventiva é bem mais barata e eficaz do que a curativa que vem de uma visão mercantilista implantada pelo capitalismo e sustentada até hoje pela classe médica brasileira.
O sistema de saúde cubano é admirado por grande parte do mundo por garantir atendimento médico gratuito a toda população, baseado em uma essência humanista, sem essa visão mercantilista que vemos aqui e em outras partes do mundo. Mais de 99,1% da população está coberta com um médico e enfermeira da família, índice que coloca a saúde cubana entre os de países do primeiro mundo. Cuba conta com 381 áreas com cobertura completa do Programa Médico da Família, superando a cifra de 28 mil médicos distribuídos em todo o país.
– E sobre o Programa Mais Médicos, como está sendo a experiência? Como você avalia os ataques da direita ao programa?
A experiência é única. A cada dia que passa, vejo que um dos principais problemas de saúde da população brasileira é a falta de atenção. Poder contar seu problema sem que seja interrompido por alguém, que se quer olhou na sua cara. Todos os dias na minha consulta escuto: “Doutora, você é diferente, tem paciência de escutar, nos toca, entende nossa linguagem”. Eles se espantam quando, uma vez na semana, percorro toda a minha área a pé, entrando nas casas das pessoas que não tem como ir até a unidade de saúde. Já chegaram a me perguntar se eu seria candidata a prefeita [risos].
É por essas e outras que a burguesia brasileira tenta, das formas mais baixas possíveis, acabar com o Programa Mais Médicos, porque o povo já não deixa de comer para pagar uma consulta em uma clínica particular, porque diminuiu o número de mortalidade materna e infantil, porque os médicos do programa formados em Cuba são, acima de tudo, educadores. Foi isso que Cuba nos ensinou: um povo desinformado, é um povo doente. Todos os dias, além de receitas e exames físicos, também os informo e incentivo a lutarem por seus direitos.
– Pode nos contar um pouco do trabalho que vem desenvolvendo, o que percebe nas pessoas que atende? E como a sociedade avalia o programa?
O povo agradece todos os dias e reconhece que o Mais Médicos realmente dá resultado, apesar que na cidade que estou sou a primeira médica do programa, mas a fama dos médicos que atuam nas cidades vizinhas chega até aqui.
Atendo uma população de quase 4 mil pessoas em uma das comunidades mais carentes do município de Araripina, onde começo meus atendimentos logo pela manhã. Em média, atendo cerca de 30 pacientes. Em conjunto com a equipe de saúde, realizamos atividades educativas, voltadas para os princípios da promoção de saúde e prevenção de doenças, princípio este que Cuba provou e prova todos os dias sua eficácia.
A população em geral reconhece que o Mais Médicos, efetivamente, está garantindo mais acesso, qualidade e mais humanização no atendimento. Em Araripina, eu sou a única médica do programa então ainda é novidade para a população. Um dia uma senhora me agradeceu pela consulta e falou: “Pensei que esses médicos do Mais Médicos só tinha na televisão”. E eu perguntei por que e ela respondeu: “Porque foi a melhor consulta que tive em meus 67 anos de vida”. Ouvir
isso é muito gratificante e só prova que o programa tem profissionais de qualidade.
– E as origens camponesas, como elas influenciam sua vivência como profissional da saúde?
Falo, sinceramente, que não sei se conseguiria fazer esse trabalho com minha população se eu não tivesse essa origem camponesa, de saber realmente o que cada um e cada uma que entra na minha consulta de fato sente e precisa. Fica bem mais fácil trabalhar quando você tem conhecimento e vivência dos problemas da população. O MPA faz parte do meu processo de formação política e acadêmica também, pois foi através do movimento que aprendi a importância de falar para meus pacientes sobre o uso da medicina natural e tradicional, o porquê de não usar agrotóxicos, de não comerem alimentos transgênicos e o que tudo isso causa. Hoje, uso todos esses conhecimentos diariamente graças a minha origem camponesa.
– Quais são os maiores desafios que enfrentamos em nosso país relacionado a saúde? Como os saberes camponeses podem contribuir para a superação desses desafios?
O maior desafio da saúde no Brasil é tornar o Sistema Único de Saúde [SUS] um sistema no qual o povo seja protagonista da sua construção. Só assim podemos ter uma saúde popular voltada as comunidades, cada uma com suas particularidades. Atualmente, o Estado brasileiro praticamente financia a privatização da nossa saúde. O povo precisa começar a lutar por uma saúde popular de qualidade, que atenda a todos os povos e suas realidades: quilombola, ribeirinha, camponesa, indígena, urbana. Não podemos permitir que a saúde no Brasil seja privatizada e fique nas mãos dos ricos. Temos que resgatar saberes e práticas dos camponeses para ter uma saúde de qualidade com seus recursos, através de uma medicina natural com ervas, benzedeiras, parteiras. Uma saúde construída por eles e para eles tudo isso junto com o Sistema Único de Saúde. Nosso povo tem muito a contribuir nessa construção.
Fonte:Brasil de Fato
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