Filho de cearenses, nasceu na capital do Pará e foi para o interior de São Paulo onde se formou médico. Mas o destino de Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira era outro: mudar o Brasil dentro e fora dos campos de futebol.
Raimundo Oliveira acertou quando deu o nome de seu primeiro filho com Guiomar: Sócrates por conta do filósofo grego, Brasileiro por uma espécie de vocação. Talvez ele não imaginasse que o nome cairia tão bem ao filho.
Nascido em Belém, capital do Pará, Sócrates se tornou jogador de futebol por escolha. Trocou o que seria uma carreira estável na medicina, onde se formara na USP de Ribeirão Preto em 1977, pela carreira dentro das quatro linhas.
Nascido em Belém, capital do Pará, Sócrates se tornou jogador de futebol por escolha. Trocou o que seria uma carreira estável na medicina, onde se formara na USP de Ribeirão Preto em 1977, pela carreira dentro das quatro linhas.
O calcanhar
Aquiles é um outro herói grego que podemos usar para explicar a história de Sócrates, o Brasileiro. Aquiles era o mais forte, o mais valente e o mais bonito dos combatentes de Atenas contra Tróia e foi o personagem principal do clássico Illíada, de Homero. Apesar de todas as qualidades, o soldado tinha um ponto fraco: o calcanhar.
No futebol os heróis podem ter diversas habilidades. Sócrates, como um Aquiles ao contrário, transferiu as suas deficiências atléticas e corporais para o poderoso e objetivo toque de calcanhar, sua marca dentro dos campos.
“Ele [o calcanhar] surge como uma questão do biotipo físico dele e da falta de fôlego. O problema é que ele era muito alto e tinha um pé muito pequeno e, com isso, tinha dificuldade em girar o corpo. Ele usava esse recurso do calcanhar pra acelerar o jogo. Além disso, ele era um jogador fora de forma, que bebia muito e fumava desde a adolescência. Ele tinha que fazer a bola correr porque ele mesmo não podia e a forma de fazer isso e tocar rapidamente era o passe rápido de calcanhar”, explicou o jornalista a escritor Tom Cardoso, autor da biografia “Sócrates” (Ed. Objetiva).
“Ganhar ou perder, mas sempre com democracia”
Sócrates chega ao Corinthians em 1978, vindo do Botafogo de Ribeirão Preto. Um ano antes, o time se tornava campeão paulista depois de 23 anos de jejum.
É aqui que sua trajetória se encontra com o momento do país. A ditadura militar começava a dar sinais de abertura com o processo de anistia encaminhado para 1979. A mesma ditadura que fez Seu Raimundo queimar seus livros 15 anos antes. O encontro entre um time e um país que buscavam conquistas mais ambiciosas era o cenário propício para o surgimento de uma novidade também no futebol nacional, a Democracia Corinthiana.
Depois de um início sem muito brilho a conjuntura política do Corinthians sorriu para o doutor. Ricardo Gozzi, que escreveu em parceria com Sócrates o livro “Democracia Corinthiana” (Boitempo), explica que a ascenção do presidente Waldemar Pires e uma crise dentro de campo criaram o terreno para grandes mudanças. “Ele [Waldemar] conseguiu se cercar de pessoas competentes e antenadas com o novo momento que aparecia no horizonte, como o Sérgio Scarpelli e o Adílson Monteiro Alves que resolveu dar ouvidos ao que jogadores como Sócrates, Wladimir e Zé Maria tinham a dizer e tentou implementar, na medida do possível, demandas daquele grupo”.
Juntando essa movimentação com uma péssima fase dentro de campo, o clima se tornou muito propício para uma mudança drástica na direção do clube. O futebol, sempre tão conservador, tentava puxar a sociedade pra frente mostrando uma equipe em que tudo era resolvido na base da democracia, desde as contratações até se haveria ou não concentração antes dos jogos.
A seleção de 1982: auge nos campos
A Seleção Brasileira de Futebol, em 1982, já amargava 12 anos da última Copa do Mundo conquistada. O país, que em 1970 era levado pela “corrente pra frente” empurrado por um crescimento de mais de 8% do PIB , passou a viver um cenário econômico desastroso com a “crise da dívida”.
Em campo, a seleção partia para a Espanha esperançosa a procura do tetra. O time era brilhante e contava com craques como Júnior, Toninho Cerezo, Paulo Roberto Falcão, Zico, Sócrates e Éder. Tom Cardoso conta que, para estar em forma para jogar com todos esses jogadores, comandados por Telê Santana, o Doutor treinou como nunca e chegava até mesmo a passar mal nos treinos.
“Foi o único momento que ele, de fato, parou de beber e de fumar porque tinha uma verdadeira adoração pelo Telê e toda aquela geração. Ali ele disse que precisava ganhar aquela Copa e fez um esforço monumental. Eu até conto no livro que ele chegou a vomitar nos treinos. Um jogador sedentário, que sempre fazia uma certo corpo mole nos treinos desde a época do Botafogo, tinha que encarar piques de 50 metros. Foi a única vez que ele se preparou de fato fisicamente e voou na Copa”, disse.
Muitos dizem que aquela seleção “perdeu bonito” em alusão ao estilo de jogo que encantou o mundo. Porém, voltou para o Brasil sem a quarta estrela. Talvez uma pequena mostra do que o esperaria na volta.
A Emenda Dante de Oliveira
Voltando a Aquiles, o herói do calcanhar frágil, uma flechada estava prestes a atingir Sócrates no calcanhar. Em 1983 o Corinthians estava voando em campo e se preparava para o bi-campeonato paulista.
Fora de campo a esperança se chamava Dante de Oliveira. Jovem deputado pelo PMDB do Mato Grosso, era dele a emenda que chamava eleições diretas para o cargo de presidente da República, há 19 anos nas mãos dos militares. A população ocupava as ruas para pedir as Diretas Já! E a democracia corinthiana saia de campo a ia para as ruas.
Em 16 de abril de 1984, as vésperas da emenda ser votada na Câmara, o doutor apostou alto. Com uma proposta milionária do time italiano da Fiorentina na mão, prometeu diante de 1 milhão e 500 mil pessoas no centro de São Paulo: “se a emenda Dante de Oliveira for aprovada, eu não vou embora do meu país”, pra depois se corrigir: “eu não vou embora do nosso país”.
A flechada viria no dia 25 de abril. Faltaram 22 votos para que a emenda, que precisava de dois terços da Câmara, fosse aprovada. Foram 298 deputados a favor, 65 contra; 3 abstenções e 113 ausências.
Gozzi diz que realmente Sócrates não queria deixar o Brasil naquele momento. Já Cardoso tem uma outra teoria, menos romântica, mais imperfeita.
“Foi um pouco por isso, mas foi também um conjunto de fatores. Eu conto no livro que ele tinha um caso com a cantora Rosemerie, e essa saída faria bem pro casamento dele com a Regina. Além disso Corinthians já não tinha mais aquele ambiente da época da democracia. Junto com isso veio a proposta milionária da Fiorentina e o desafio de morar em uma cidade culturalmente muito rica como era Florença”, desmistifica.
A época em Florença foi outra das flechadas que feriram seu calcanhar. Um mistura de frio, clima político contrário, vida noturna agitada e sabotagem de seus companheiros de time, fez com que Magrão durasse apenas um ano no velho continente.
A vida depois das quatro linhas
Após a frustada aventura na Europa, Sócrates perambulou sem sucesso por Flamengo, Santos até encerrar a carreira onde começou, no Botafogo de Ribeirão Preto, em 1989.
Muitos analistas avaliam que ele poderia ter muito mais sucesso no futebol caso se cuidasse melhor.Cardoso questiona essa hipótese, lembrando que não é possível separar a carreira do Doutor da vida que ele levava fora dos campos, com as cervejas e as opiniões fortes. “Se ele fosse um cara que jogasse fora todos esses prazeres, talvez ele não tivesse toda essa vontade de jogar”.
Para Gozzi, a complexidade de Sócrates o atrapalhou no sentido de ter uma carreira sólida também fora de campo dentro de uma área reacionária que é o futebol. “Era difícil imaginar um clube grande qualquer contratando o Sócrates como técnico, pois seria preciso lidar com o pacote completo”.
Em 2011, a flechada final foi dada pelo álcool. Com uma hemorragia digestiva, entre idas e vindas do coma, Sócrates faleceu no dia 4 de dezembro, mesmo dia em que o time que ele mudou e que o mudou foi pentacampeão brasileiro.
Kátia Bagnarelli, víuva de Sócrates, explica que os últimos anos de vida dele foram “serenos”. “Estávamos muito felizes quando a doença apareceu de forma arrebatadora, mas soubemos lidar com ela de forma a amenizar o impacto emocional durante os tratamentos e as voltas do coma. Faleceu querendo muito ficar mais firme no tratamento”.
Nada mais errado do que chamar Sócrates de herói. Ele, como todos os feitos de carne, osso e calcanhares, recebeu as consequências de todas as suas escolhas, certas e erradas. Mas não desistiu do país em que viveu. Nada mais acertada que a decisão de Dona Guiomar e do Senhor Raimundo de Oliveira que colocaram o nome de Brasileiro no filho, como uma espécie de destino a ser cumprido.
Fonte:Brasil de Fato
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