O Festival seguiu por três dias com seus 17 filmes, que passavam por tabus e violência doméstica, sendo 10 deles produzidos no Afeganistão. Uma das organizadoras do evento Guissou Jahangiri fala aCartaCapital do objetivo de dar a oportunidade das mulheres falarem por elas próprias. “Sentíamos a necessidade de ver as mulheres falando sobre os problemas delas aqui no Afeganistão”, diz Guissou.
Dentre os documentários, histórias de lutas cotidianas com as quais outras jovens de diferentes partes do mundo poderiam se identificar, como a tentativa de se engajar politicamente ou se tornar uma atriz profissional, mas que trazem como peculiaridade um plano de fundo de extrema violência: recorrentes abusos sexuais, maridos e pais viciados em drogas, o julgamento moral da sociedade machista e o descaso da lei, que não interfere em favor das mulheres.
Guissou é diretora executiva da Armanshahr Foundation, uma organização não governamental fundada há cerca de 15 anos que milita pelos direitos humanos na Ásia. A fundação organizou este primeiro festival de modo que ele não fosse uma competição, mas uma celebração da produção de arte que envolve a mulher.
Os filmes não são 100% produzidos por mulheres, mas todos englobam a temática da repressão do gênero. Icy Sun, dirigido pelo afegão Ramin Mohammadi, traz o dilema de uma jovem que sonha em ser atriz, mas tem de cuidar do marido envolvido com drogas. “Nesse filme nós vemos como é difícil para uma mulher afegã ser atriz, quando tudo que ela quer é atuar”. A protagonista é abusada e agredida em seu caminho, que em outros lugares não seria tão penoso. O diretor, que estudou arte no Afeganistão e na Coréia do Sul diz que o cinema é a linguagem que ele encontrou para se identificar com o mundo que o cerceia. “É uma porta para o desconhecido, para os homens perdidos. Uma maneira de encontrar belezas”.
Guissou explica que a oportunidade é única, com o mercado de filmes e documentários no Afeganistão em ascensão. Filmes iraquianos e indianos, gravados na mesma língua falada pelos afegãos, fazem sucesso no país.
A luta das mulheres não é só no Afeganistão, mas a preocupação do evento – que está previsto para acontecer anualmente – é que as afegãs saibam que não estão sozinhas. “Do Brasil até Cabul, passando pela China, a opressão às mulheres é um problema mundial. É bom que tenhamos uma experiência internacional aqui, que se permita a troca de experiência entre diferentes documentaristas e o mais importante: que se saiba que a comunidade internacional se importa.”
Sobre os tabus abordados, ela diz que os filmes não têm como fugir de temas delicado, se considerado a própria violência é vista como um tabu. O processo é velado e acobertado por uma sociedade machista que constantemente questiona a honra de suas mulheres. Com uma população relativamente jovem – 67% estão abaixo dos 30 anos, segundo relatórios da própria Armanshahr Foundation -, o país passa por um processo gradativo de fortalecimento da democracia e dos direitos humanos.
A sombra do TalibãAté o final de 2014, as forças internacionais deixarão o Afeganistão por completo. Isso tem gerado um clima de incerteza quanto ao futuro do país, já que há mais de dez anos a ONU mantém a Força Internacional de Assistência para Segurança, da qual participaram mais de 40 países, anunciada em dezembro de 2001.
O medo de que o Talibã retome suas forças é real, ainda maior com o início de retirada das tropas. Barack Obama anunciou em 2011 a retirada de 34 mil soldados norte-americanos, que deve ser concluída nos próximos doze meses. França e Inglaterra seguiram o exemplo e também anunciaram que retirarão seus contingentes.
O terror imposto pelo Talibã gerou milhares de refugiados, que agora retornam gradativamente para a terra natal. Segundo dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), nos últimos dez anos cerca de 5,7 milhões de afegãos retornaram ao Afeganistão. Ainda assim, cerca de 2,7 milhões se mantém como refugiados.
O festival propõe a abordagem da questão, feita com cuidado no filme Light Breez, Memories of an Immigrant Girl. A produção é inspirada na biografia da própria diretora e roteirista Sahraa Karimi, que quando jovem se refugiou com a família. O filme mostra as experiências de seu primeiro ano como refugiada em um novo país. “Um terço de nossos refugiados estão desabrigados ao redor do mundo. É algo sobre o qual queremos refletir também”, diz Guissou.
Na era pós-talibã, apesar da criação de novos órgãos para a proteção dos direitos das mulheres, elas continuam a suportar violações graves e a violência contra mulheres e meninas permaneceu generalizada. “A Armanshahr Fundação reitera suas chamadas à comunidade internacional para reforçar o apoio para o futuro do Afeganistão”, explicita a organização, destacando que os mecanismos para assegurar os direitos das mulheres não podem ser usados como moeda de barganha nas negociações de paz, mas devem ser priorizados de acordo com as obrigações internacionais.
RecepçãoGuissou conta que a recepção tem sido positiva até o momento. “A sociedade ficou apreensiva no começo, era possível notar isso no clima. Há um certo perigo, claro, nós tivemos que ter cuidado com os filmes que escolhemos, porque não podem ter linhas não lidas”, diz ela, que afirma estar surpresa com a cobertura da mídia, que reportou bastante sobre o festival e suas implicações. “ Falei com pessoas no Irã que também ficaram muito surpresas com o entusiasmo que geramos aqui”.
Ela espera que o festival se consolide e ganhe cada vez mais espaço. “Isso é só o começo. Ainda temos muitas linhas que as mulheres não podem cruzar, mas esse é um começo da expressão das mulheres em olhar para dentro de si mesmas”. Até agora não há previsão para estreia dos filmes no Brasil.
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Fonte texto: A Carta Capital
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