Com 23 policiais condenados a 156 anos de prisão pela morte de 13 presos no inegável massacre do Carandiru, após 20 anos de um complexo e arrastado processo, termina uma das principais etapas de apuração e punição do ocorrido. Não li o processo e, portanto, não posso me manifestar quanto a seu conteúdo probatório. Apenas sei que não há margem de dúvidas da materialidade de um delito estarrecedor e inaceitável numa sociedade minimamente civilizada.
Se verdadeiras as notícias da imprensa quanto à falta de individualização das condutas, as condenações podem ser questionadas por evidente fragilidade probatória da autoria. Por mais terrível que seja o crime, presunção de inocência e a consequente necessidade de se condenar de forma individualizada as condutas são valores essenciais do processo num Estado Democrático de Direito. Mas entrar nesse debate sem ler os autos é inadequado e pouco consistente.
No plano político, a decisão aponta para o fim da impunidade neste tipo inaceitável de abuso de poder estatal.
Estado Democrático de Direito é um conceito abstrato que nunca, em país algum, se realizou de forma completa e em todos os momentos da vida social. Seu antônimo, o Estado de Policia, predominante nas ditaduras como o fascismo, nazismo ou stanilismo, sempre aparece como uma sombra mesmo no interior de nossas democracias contemporâneas.
No Brasil, o Estado autoritário repressor da população pobre e suspensivo dos direitos fundamentais da pessoa se apresenta como tal na relação com esta população pobre. Todo Estado autoritário e toda medida de exceção sempre apresentam como fundamento e razão a figura do inimigo e é movido pelo medo.
No campo dos direitos, o inimigo se diferencia da pessoa humana pelo fato de não lhe serem garantidos direitos mínimos da condição humana. Sua própria vida encontra-se à disposição do soberano.
Embora formalmente nos apresentemos como um Estado Democrático de Direito, cuja Constituição garante os mais relevantes direitos protetivos da condição humana a todos os cidadãos, a maioria de nossa população, sua parte pobre, só conhece o Estado pela face das obrigações que este lhes impõe, tendo seus direitos fundamentais, de fato, em contínua e ininterrupta suspensão.
O inimigo no Brasil contemporâneo, que substituiu o “comunista” das décadas de 1960 e 1970, é o “bandido” oriundo da pobreza, que causa medo a nossas elites euro-descendentes pela violência em que vivem e atuam.
O “bandido”é acusado e preso sem direito de qualquer defesa. Quase 50% de nossa população carcerária não esta presa em razão de processo findo, mas sim por mera “prisão preventiva”. De fato, em nossa vida social o agente policial funciona como investigador, juiz e, às vezes, carrasco.
Há cerca de alguns dias, mais uma vez, nosso país foi advertido pela ONU quanto a este fato e às injustiças que tal política de encarceramento da população pobre certamente gera. Em verdade, encarcerar a pessoa em nosso pais é suspender ao menos parcialmente seu direito à vida. As possibilidades de morte dentro de nossos presídios são extremamente maiores que fora deles.
O pobre suspeito de cometimento de crime é tratado como inimigo, com seus direitos fundamentais, de fato, suspensos pelo Poder Soberano. O incluído integrante de nossas elites, em geral, ao ser suspeito do cometimento de delito é tratado como o cidadão suspeito de ter errado, com advogados regiamente pagos, devido processo, não uso de algemas etc.
Como o inimigo não é fisicamente identificável em nossa população pobre, toda esta camada social sofre efeitos da suspensão de direitos. Nossas periferias mais parecem territórios ocupados, uma zona de guerra, do que um espaço livre da cidadania.
O caso do massacre do Carandiru é emblemático deste trato da pobreza como não pessoa humana por nosso sistema. Encarcerados, todos pobres, sujeitos aos cuidados do Estado, tiveram suprimido seu direito inalienável à vida, foram chacinados de forma cruel por agentes policiais a mando das mais altas autoridades públicas, numa forma e com tal quantidade de vítimas que surpreendeu e indignou os brasileiros de bem, civilizados e toda a comunidade internacional.
Neste sentido, a condenação aponta para dias melhores em termos de universalidade da aplicação da lei, funcionando como um freio simbólico ao cometimento de atos de igual natureza. A lamentar o tempo para a condenação e, mais que tudo, a falta de apuração adequada da conduta dos principais autores da barbárie, aquelas autoridades que ordenaram a invasão e as mortes.
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