Quando lançou “Pedra de Sal” em novembro de 2014, entrevistamos Alessandra Leão. Ela explicou os motivos estéticos e pragmáticos de repartir seu esperado novo álbum em uma série de três EPs e afirmou a importância de estar em São Paulo, naquele momento, rodeada por aquelas pessoas.
Ela citou Rimbaud ao se recusar a explicar os preâmbulos de uma composição e se mostrou absolutamente segura e feliz com o lançamento e com o que viria depois. Ela se indispôs com coisas que muito frequentemente são ditas a respeito do seu trabalho, recebido como uma mistura entre regional e universal, campo e cidade, tradição e modernidade. Em dado momento ela disse coisas que deixaram uma marca: “tudo é mais simples do que parece ser” e “quem quiser teorizar que teorize”.
Ela citou Rimbaud ao se recusar a explicar os preâmbulos de uma composição e se mostrou absolutamente segura e feliz com o lançamento e com o que viria depois. Ela se indispôs com coisas que muito frequentemente são ditas a respeito do seu trabalho, recebido como uma mistura entre regional e universal, campo e cidade, tradição e modernidade. Em dado momento ela disse coisas que deixaram uma marca: “tudo é mais simples do que parece ser” e “quem quiser teorizar que teorize”.
Mas “Pedra de Sal” era só a primeira etapa de um processo aparentemente árduo de salto no vazio, aquele pequeno passo à beira do precipício. Apresentava as linhas gerais da proposta, uma carta de intenções, um apanhado inicial de temas e terminava na hora em que a queda livre começava a ganhar profundidade. Ficavam evidentes as linhas de continuidade, mas havia elementos novos: a voz por vezes mais áspera, o discurso mais duro, as camadas de melodia sobrepostas mais densas.
Então veio “Aço” e Alessandra conseguiu fazer aquele apanhado de boas ideias ganhar corpo e se organizar de forma coerente como se fossem capítulos. O mergulho deixa de ser marcado pelo estranhamento de não ter nada debaixo dos pés e se torna um ritual que evoca as forças da natureza, da religião e do homem. O segundo passo dado em um subsolo escuro reforça as angútias e os ruídos, enquanto as pegadas apontam para o horizonte. A repetição dos versos valoriza as imagens e a música vira uma espécie de mantra onde as palavras se separam dos seus significados mais imediatos. Não há sentido na superfície, ainda que os efeitos ao ouvir o disco sejam sentidos na pele. (Talvez eu tenha ouvido do jeito certo dessa vez, sob a luz de Belchior: “não estou interessado em nenhuma teoria”.)
Agora vem “Língua”, o último ato, que também intitula o conjunto dos três EPs. Revigorante, esperançoso, sensual, tátil, dançante, enfim, o retorno à superfície se dá em um outro contexto. A Alessandra que foi lá no fundo e voltou não existe mais. As imagens do “rio”, do “mar” e da “palavra jogada na água” são a chave para se compreender o fluxo – “é impossível entrar no mesmo rio duas vezes”. A amarração conceitual das três partes se mantém de pé, mas fica evidente que o resultado final é tão importante quanto o intervalo entre cada um deles, o tempo que passa, as mudanças que se dão na intimidade do contato com o corpo, com a língua, com a consciência, com os parceiros e com a cidade. Alessandra que nos desculpe, mas fazer isso não é tão simples quanto parece.
Ficamos aqui tentados a esmiúçar as faixas, a procurar algum tipo de explicação, estabelecer relação entre as partes e dessas partes com o resto do mundo, mas vamos ficar só na carta de intenções. O tempo nos trouxe até aqui, mas talvez seja preciso mais para esboçarmos alguma coisa sobre a maneira como ela faz uso das palavras, uma linguagem que não se vale de metáforas surradas, que guarda um espaço meio enigmático para os significados e assim recupera um sentido original metafórico que toca em verdades mais profundas. Não poderíamos ainda ensaiar nada muito elaborado sobre a camada de realidade que Alessandra sobrepõe à realidade ela mesma, a partir de uma experiência e de um contexto muito particulares, mas que se conectam com sentimentos que ecoam em muita gente. Podíamos até fazer referência à música tradicional do nordeste e pensar se há algo que se choca com a cosmopolita (e nordestina) São Paulo, estabelecer linhas de influência, mas talvez estivéssemos muito mais marcando o lugar de onde falamos do que acrescentando alguma coisa relevante ao que são os discos. Tem muitos outros elementos: o aspecto político, as influências literárias, a voz, a religião, as melodias, os arranjos, as participações e os parceiros. Mais do que qualquer outra coisa, tem o tempo e tem a língua. Tempo é língua. Música é língua. Teoria é língua. Carne é língua. (Mas fica repetindo na minha cabeça: “quem quiser teorizar que teorize”.)
Ouçamos então Alessandra Leão. Não porque não reste nada a dizer, mas, sobretudo, porque ela nos emociona, é honesta nas suas intenções, tem um profundo respeito pelas suas origens e faz uma música muito contemporânea, canta o que sente e nos tira um pouco do lugar. Ela nos lembra outro pernambucano que falava sobre a sua gente e sobre viver na cidade grande, tocado por “uma luz que incendeia seu ofício”. A Alessandra, como Alceu, tem também um “Espelho cristalino” para ver as coisas que a gente não vê.
EP completo:
Fonte: Fita Bruta
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