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sexta-feira, 12 de abril de 2019

Teatro além dos muros

Espetáculo “Banho de Sol” nasceu após oficinas em um complexo peniténciário feminino e revela o cotidiano de mulheres que cumprem pena.
Era para ser apenas uma participação no projeto “A Arte como Possibilidade de Liberdade”, composto, dentre outras atividades, por aulas de teatro em um complexo penitenciário feminino em Belo Horizonte. Mas a experiência ao longo de um ano foi tão forte que se transformou no espetáculo “Banho de Sol”, da Zula Cia de Teatro.
Era para ser apenas uma participação no projeto “A Arte como Possibilidade de Liberdade”, composto, dentre outras atividades, por aulas de teatro em um complexo penitenciário feminino em Belo Horizonte.
Mas a experiência ao longo de um ano foi tão forte que se transformou no espetáculo “Banho de Sol”, da Zula Cia de Teatro.
“A princípio a ideia era somente fazer com que essas mulheres tivessem a oportunidade de vivenciar uma experiência artística, momentos de troca, de afeto, de integração entre elas e ver como essas atividades reverberavam no cotidiano delas. Mas a realidade vivenciada por nós foi tão intensa que nos provocou a criar uma obra que pudesse dar voz às mulheres em situação de cárcere”, conta Talita Braga, que assina a dramaturgia e direção, ao lado de Mariana Maioline.
O Beltrano publica com exclusividade trechos do diário feito pelas integrantes da companhia e as cartas escritas por mulheres que participaram do projeto. “Banho de Sol” está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) até o dia 22 de abril, de sexta à segunda-feira, às 19 horas.

DIÁRIO DAS ALUNAS

“Para entender como é uma aula de teatro na cadeia, primeiro é necessário entender como é cadeia. Cadeia é um lugar em que a pessoa não vale pelo que é, ela vale aquilo que tem. Se ela tem visita, ela tem um certo valor. Se ela tem visita e pertence, ela vale muito. Se ela tem visita, pertence, cigarro e sabe negociar, ela se torna muito valiosa. A presa que não tem isso, não vale nada.  Na teoria e na prática é essa a realidade de cadeia. Quando chega gente de fora, como por exemplo, essas duas atrizes Talita e Priscila, que não conhecem esse comportamento típico de presa, as coisas mudam, mesmo por um período curto, mas mudam. Passamos a valer pelo que somos, pelo que conseguimos aprender e pela capacidade e disponibilidade de absorver seus ensinamentos.”
Rafaele Cristina*
“Percebi que todos esses exercícios e brincadeiras que vem ocorrendo durante os encontros, não só servem para o ramo artístico mas também para direções e aplicativos de vida rotineira. Os de percepção e caminhada nos ajudam a ocupar menos espaços que são reservados às outras pessoas; os corporais e respiratórios ajudam a aliviar as dores, tensões, corrigir posturas e relaxar. Os de apresentação ajudam a desinibir, melhoram a dicção, afloram a sensibilidade e a prática de aprender a ouvir e promovem a interação que consequentemente estimula a aproximação, pois abre os olhos que não tinham enxergado as demais companheiras ainda.”
Roberta Oliveira*
“Com tudo isso eu tenho aprendido muito e uma coisa ficou bem clara pra mim: quando eu sair daqui quero me especializar para poder fazer esse tipo de trabalho, não o teatro especificamente, mas algo que possa estimular essas mulheres que aqui estão e são abandonadas por parentes, por amigos…Esta sim, passou a ser uma vontade do meu coração. Obrigada professoras, por nos ajudar a enxergar que podemos ser pessoas melhores sim, como qualquer outro ser humano.”
Janaína Ferreira*
“Exercitamos também nossa respiração, nosso corpo e nossa mente. Na respiração nós aprendemos a controlar os nervos, as tensões e as ansiedades do dia a dia; no corpo desaparecem as dores, passamos a ter mais equilíbrio, domínio próprio e confiança. Nos sentimos mais seguras na mente que está há algum tempo sem ser exercitada ou colocada em prática. As atividades também colocam nossa mente pra trabalhar, raciocinamos mais rápido, pensamos com mais frequência, além de ter ajuda da nossa imaginação, o que ajuda bastante.”
Luzia Fonseca*

DIÁRIO DAS PROFESSORAS

Na terça-feira, dia 23 de maio de 2017, quando entrei no pavilhão, minha cabeça estava a mil: naquela mesma semana, vi que a República ruiu. Sentimentos paradoxais tomaram conta de mim, pois o momento político é dúbio e nossa democracia é frágil: é correto entristecer vendo os de lá fazendo fortuna às custas do nosso povo sofrido, ou é mais justo alegrar-se diante das mazelas dos podres poderes que estão sendo reveladas?
Confusão de sentimentos. Liquidificador.
Dor de ouvido, dor no peito, corpo pele sujo pela impotência, e lá fomos nós quatro. Entrei no pavilhão em busca de troca de afeto. Ao ouvi o poder humanizador do teatro, a janela do eu escancarada para aquelas mulheres, voltei com esperança. Ano passado pensava – O que seria daquelas mulheres quando começassem a olhar para si mesmas? Começo a ver a possibilidade de revolução. Estamos vivenciando uma revolução. Provocando, impulsionando outras pequenas revoluções. É preciso mudar o eu para mudar o coletivo. O senso comum de justiça está se transformando nesse país e isso me inquieta muito. Mas cada vez estou mais certa de que a transformação começa em cada uma de nós para reverber no todo. E estar falando isso, a partir dessa experiência num banho de sol de mulheres que cometeram crimes hediondos, me deixa muito feliz. Sim, estou ecoando fora da bolha. Isso me impulsiona. Me sopra. Nos “redomoinha”, nos “tempesteia”.
Kelly Crifer
20 mulheres
A arte como possibilidade de liberdade.
Medo do que eu ia encontrar
Medo de ficar pequena diante delas
Surpresa ao encontrar mulheres tão abertas e disponíveis para o trabalho.
Surpresa ainda maior ao encontrar mulheres comuns, como eu, como você. Mesmo! Diferença nenhuma.
Olhares doces, curiosos e vivos, muito diferentes do que eu esperava.
Eu não sei nada delas, elas não sabem nada de mim.
O que nos liga neste momento é o teatro. O jogo como um fio invisível que aos poucos vai abrindo janelas.
Um riso nervoso, um riso de medo, uma gargalhada espontânea.
O fato de não saber nada delas me protege dos meus preconceitos, dos meus julgamentos. Mas em algum momento e aos poucos estas histórias vão chegar. Normal de qualquer processo criativo. Neste dia Conceição travou na hora de fazer um exercício. Teve medo. Precisou de um abraço apertado. Precisou respirar. Marta a acolheu. Ela era a sua dupla de trabalho e me disse baixinho: pode deixar que eu cuido dela. Não vou largar minha companheira.
Uma outra, ao respirar , teve medo que eu encostasse em sua barriga. Carregava uma vida ali dentro e precisava zelar por ela. O último professor que passou por ali prometeu coxinhas que nunca levou.
Talita Braga
Engraçado, não tenho muita certeza do que aconteceu nesse primeiro encontro. O que propusemos, o que foi dito! Tenho a memória das sensações…a insônia na noite anterior, palpitações e calor, muito calor…é, era primavera! Lembro também do imenso portão, a entrada! E dos sons…metálicos, parecendo portas emperradas, pesadas, das grades…só pode ser! Armas, muitas armas…nas mãos, nas cinturas, máscaras…lembrei dos black… Lembro das cores: cinza, ocre, rosa…as paredes rosa. E os uniformes vermelhos!
As proibições, ah as proibições: nunca (palavra forte, não é?), nunca usar vermelho, usar somente roupas largas…nenhuma sensualidade. Brincos? Aneis? Batom? Pode?? Garrafa d’água pode? Caderno, caneta? Autorização para o pen drive, o som…

A revista, frente/ costas- braços em cruz!
Bolsas e material pra aula na esteira – detector de metal. Celular nem pensar!
Acompanhadas descemos ladeando o maior pavilhão, enormes janelas gradeadas, algumas mulheres nos olhando através…
As pedagogas – apresentação e regras, regras – ditos PROCEDIMENTOS, sinônimo de sim e não, não, não…
As meninas, mulheres como você e eu…jovens, nem tão jovens, maduras e até uma bem idosa…minha garganta seca, mãos trêmulas…as minhas rsrs, um enorme tremor interno e pensando tomara que elas não percebam! Engraçado, nunca foi medo, medo do que fariam, falariam…não! E sim medo de que não me aceitassem ali, de que a minha branquelice, loirice e vida burguesa fosse uma afronta e ofensa pra elas.
Lembro que iniciamos na roda, silêncio…muitos olhares, curiosos, abertos e ao final a minha gratidão por elas me permitirem entrar e estar nesse mundinho, porque o espaço é minúsculo e elas concordaram e dividi-lo com a gente.
lembro também de me chamarem de Sra. e depois de Sra. Vandelveld… rsrsrs até se transformar na intimidade e cumplicidade ao longo do tempo em Glau.



Fonte: O Beltrano

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