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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Ameaçadas de morte por quem se diz pró-vida

Uma pastora, uma jornalista, uma estudante e uma professora: quatro mulheres que sofrem ataques e perseguições por defenderem a descriminalização do aborto falam à Pública. As histórias são estarrecedoras.


No começo de agosto, a Pública entrevistou a pesquisadora Debora Diniz, que precisou deixar sua cidade por um tempo por causa de ameaças de morte que vinha sofrendo por defender publicamente a descriminalização do aborto. Alguns dias depois, Debora e outras dezenas de especialistas, pesquisadores, instituições jurídicas e religiosas e representantes da sociedade civil se reuniram em torno do tema em audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, apesar de a conversa dentro da corte ter transcorrido, com algumas exceções, com certo respeito e o debate ter sido feito a partir de reflexões que vão além das paixões e convicções religiosas
Perseguição à professora levou à criação de lei que atribui à PF a investigação de crimes contra as mulheres na internet 
Estudante que pediu autorização no STF para interromper gravidez chegou a ter sua casa invadida 
“Eram tantas mensagens que eu nem sabia quais denunciar à polícia. Foi uma coisa enlouquecedora”, conta jornalista 
“Essas pessoas que defendem a vida do feto acham que a vida das mulheres é descartável”, diz pastora

No começo de agosto, a Pública entrevistou a pesquisadora Debora Diniz, que precisou deixar sua cidade por um tempo por causa de ameaças de morte que vinha sofrendo por defender publicamente a descriminalização do aborto. Alguns dias depois, Debora e outras dezenas de especialistas, pesquisadores, instituições jurídicas e religiosas e representantes da sociedade civil se reuniram em torno do tema em audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, apesar de a conversa dentro da corte ter transcorrido, com algumas exceções, com certo respeito e o debate ter sido feito a partir de reflexões que vão além das paixões e convicções religiosas – novamente com algumas exceções –, fora dela quem se posiciona publicamente a favor da descriminalização do aborto tem sofrido cada vez mais ataques de ódio e ameaças de morte de grupos e pessoas que incoerentemente se dizem pró-vida. A Pública conversou com quatro mulheres que sofreram ou ainda estão sofrendo esse tipo de ameaça: uma pastora, uma professora, uma jornalista e uma estudante de direito mãe solo de dois filhos, bolsista do ProUni e trabalhadora em tempo integral, que teve o seu pedido judicial de aborto negado pelo STF, sem análise de mérito. Esta última chegou a ter sua casa invadida por uma fundamentalista religiosa.

Quando se fala em “pró-vida”, é importante não confundir com a instituição religiosa que leva esse nome. Há grupos e pessoas que se autodenominam pró-vida, geralmente ligados às religiões que professam a fé cristã, que dizem lutar “pela proteção da vida humana, desde a concepção até a morte natural” e por isso são contra o aborto mesmo em caso de estupro, anencefalia e risco de vida para as mulheres. Esse ativismo está presente no mundo todo e é bastante agressivo em sua atuação.

Vale lembrar ainda que uma em cada cinco mulheres até 40 anos já fez ao menos um aborto no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional do Aborto. Estima-se também que 1 milhão de procedimentos, muitas vezes inseguros, são realizados por ano no Brasil, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).


Lola Aronovich

Professora na Universidade Federal do Ceará, feminista, autora do blog Escreva Lola Escreva

Lola Aronovich, professora na Universidade Federal do Ceará, é ameaçada desde 2011
Eu sou ameaçada, atacada e perseguida desde 2011. Meu blog já tem dez anos; pouco tempo depois de sua criação eu comecei a ser perseguida por um grupo de misóginos que se autointitulam “masculinistas”, que se dizem defensores dos direitos dos homens, mas que na verdade são só pessoas cheias de ódio, antimulheres, antifeministas, muitos neonazistas também. Esse grupo tem um longo histórico de violência não só online. Nesse período eu fiz 11 BOs porque eu tinha que tentar fazer alguma coisa contra todas as ameaças não só a mim, mas a minha mãe e ao meu marido. Dois deles acabaram sendo presos pela Operação Intolerância, da Polícia Federal em 2012. Ficaram presos um ano e três meses e, assim que saíram, em 2013, começaram a fazer tudo que faziam antes. O Marcelo Melo [preso em maio deste ano na Operação Bravata, da Polícia Federal] principalmente. Ele ficou me atacando durante cinco anos ininterruptos e infernais, e eu demorei muito para conseguir abrir um inquérito, mesmo com 11 BOs. Era muito difícil saber onde denunciar, porque a Polícia Civil tem mais o que fazer, e a Delegacia das Mulheres, ao menos aqui em Fortaleza, fica muito restrita a caso de violência doméstica. Aqui no Ceará não tem delegacia de crimes cibernéticos, e a Polícia Federal disse que não iria investigar porque só investiga crimes em que o Brasil é signatário internacional, racismo e pedofilia. O primeiro BO foi em 2012 e o último foi no ano passado. Finalmente, com a ajuda de um programa de proteção aos defensores dos direitos humanos, a gente conseguiu alguma influência no Ministério Público, que chamou a delegada da Delegacia da Mulher, e a gente abriu um inquérito em abril do ano passado. Foram mais de cinco horas de depoimento. E ainda assim as ameaças não pararam. Mas, agora em maio deste ano, o Marcelo, que era o líder dessa quadrilha misógina, foi preso e minha vida melhorou um pouco nesses meses. A gente espera que ele fique preso porque a PF diz que os crimes dele já somam 39 anos. Em junho teve um membro da quadrilha dele, que era, inclusive, moderador de um fórum que eles tinham – ao qual eu tinha acesso porque o Marcelo me passou o link várias vezes para eu acompanhar o que eles tramavam contra mim. Anunciou que iria se matar, e sempre tem muita mensagem assim nesses fóruns. Ele já tinha dito isso muitas vezes e recebeu a resposta que sempre dão para esses rapazes: “Não se mate, leve a escória junto”, ou seja, se mate depois que causar um atentado numa palestra feminista, numa marcha das vadias, parada LGBT. E foi isso que ele fez. Ele saiu na rua na cidade onde ele morava, em Penápolis, interior de São Paulo. Viu duas mulheres que não conhecia, assediou essas mulheres – ele devia estar muito alterado porque elas saíram correndo – e ele atirou na nuca de uma delas pelas costas. Vinte dias depois ela morreu. Ele se matou no mesmo dia. A gente fica pensando: se a polícia tivesse prendido esse outro membro da quadrilha, isso não teria acontecido.


As ameaças que eu sofro não são algo pessoal – ficam pessoais porque eles buscam dados para me atacar pessoalmente, atacar meu marido –, mas surgem porque eu sou feminista. Eles se consideram homens de família, se dizem pró-vida, mas como você vai ser pró-vida ameaçando de morte e matando pessoas? Comemorando a morte de mulheres? Eles defendem abortos forçados, compulsórios para mulheres negras, por exemplo, para que não se reproduzam. Eles me odeiam por defender a descriminalização do aborto, mas também por ter um marido, por ser gorda e ser casada. O Marcelo dizia que gastava não sei quantas horas por dia construindo um site na deep web com nome e fotos do meu marido, alimentando esse site com pornografia infantil, esperando que algum dia a polícia chegasse até esse site e prendesse meu marido. E eles já usaram algumas vezes o fato de o aborto ser crime no Brasil para tentar me criminalizar e manchar minha imagem. Em 2014 tinha um masculinista de outra quadrilha lá de Mato Grosso que passou o ano inteiro fazendo um site contra mim. Ele fez 500 posts me xingando, xingando meu marido, fazendo montagens. Então de repente descobri que ele próprio tinha me denunciado para o Ministério Público! O MP acatou a denúncia sem nenhuma investigação de quem estava denunciando e eu cheguei na delegacia e tinha um caso Lola Aronovich. Ele me denunciou por um guest post em que uma convidada anônima dizia que tinha passado por um aborto. Eu já publiquei mais de 900 posts de convidados sobre assuntos que fogem do meu alcance, do meu conhecimento, da minha vivência. Já publiquei sobre violência obstétrica, sobre poliamor, sobre qualquer coisa que queiram escrever e que eu ache interessante. E já publiquei vários guest posts anônimos de mulheres que abortaram. Um deles era bem suave, o título era “O verdadeiro sentido da palavra comunhão”, e foi esse que ele denunciou. Era de uma moça que abortou falando sobre como ela recebeu apoio de outras mulheres, de como ela não se arrepende porque era a decisão certa para ela naquele momento. Aí eu chego na delegacia – felizmente o delegado não estava lá naquele dia, um ambiente extremamente opressor – e na época eu fui sem advogado –, e tinha esse caso Lola Aronovich, em que eu estava sendo acusada de apologia ao crime. A escrivã foi gentil, mas a conversa foi tensa. Ela disse que se eles quisessem eu teria que falar o nome dessa mulher, que ela cometeu um crime e que eu poderia ser incriminada. Eu disse que de jeito nenhum, que eu nem tinha mais contato com ela e que eu tinha todo o direito à liberdade de expressão, mas que, se eles quisessem entrar nessa guerra, tudo bem. Esse caso rolou durante anos. Só no ano passado, quando eu fui na delegacia pedir para marcar uma data para pegar meu depoimento e na reunião tinha representantes do MP, é que eles disseram que o caso tinha sido arquivado. Mas é preciso refletir que, se a gente estiver em um governo de extrema direita, isso vai para a frente.

O outro caso parecido aconteceu em 2015 com o Marcelo. Ele sempre fez blogs de ódio, pregando assassinato de mulheres, negros, gays, que foi o que causou a prisão dele em 2012 por intolerância. E ele unia o útil ao agradável porque, além de promover essa ideologia, pregar a legalização da pedofilia, do estupro, estupro corretivo para lésbicas – e ele de fato acredita nisso –, ele colocava o nome de inimigos dele nesses sites. Ele fazia guia de como estuprar vadias nas universidades, recompensa para quem me matasse e matasse o Jean Willys. Em 2015 ele decidiu inovar e criou um site de ódio no meu nome. Como se fosse de uma feminista, eu no caso, espalhando um monte de coisas em que eu não acredito. Com meu nome completo, meu telefone residencial e meu endereço em cada post, fotos minhas, links para meu Lattes. Ele não hackeou meu blog. O que fez foi criar outro blog com meu nome. Nesse site de ódio, ele colocava coisas horríveis, como se fosse eu escrevendo em primeira pessoa. Defendendo o aborto de fetos masculinos, infanticídio de meninos, “vendia” remédios abortivos – espero que nunca ninguém tenha caído nessa –, dizia que eu queimava bíblia em sala de aula, incluía racismo e chegou ao cúmulo de fazer um post como se fosse eu falando com grande orgulho que tinha realizado um aborto em sala de aula de uma aluna na UFC [Universidade Federal do Ceará]. Eu dei risada, imaginei que qualquer pessoa que lesse aquilo iria perceber que realmente não era verdade, que não era eu. Mas as pessoas acreditaram, teve várias denúncias à ouvidoria da UFC. Eles criaram o blog em agosto de 2015 e, durante um mês, não tinha muita audiência. Então o Olavo de Carvalho e o Roger, do Ultraje a Rigor, divulgaram esse site falso. Eles sabiam que não era meu, mas espalharam. Isso viralizou e foi um escândalo. Eu digo no meu blog que acredito em homem feminista, digo que todos os homens devem ser feministas, e por aí vai. Foi fácil desmentir. Teve bastante cobertura da mídia sobre o ataque, fizeram até um Profissão Repórter comigo. Eu recebi bastante apoio da minha universidade, fui chamada para uma audiência no Congresso para falar de crimes cibernéticos. Então teve seu lado bom. E a deputada federal Luizianne Lins (PT) criou, no começo de 2016, o projeto de lei que viria a ser a Lei Lola 13.642/2018, que foi aprovada agora em abril, que atribui à Policia Federal a investigação de crimes contra as mulheres na internet. Mas antes disso um dos caras, o Emerson, que tinha sido preso em 2012 na Operação Intolerância, denunciou esse site de ódio à polícia e ao MP, e eles abriram um outro caso Lola Aronovich. E eu fui chamada de novo para depor em 2015 para me explicar sobre esse blog que defendia o aborto. Dessa vez eu fui com advogado, porque eu já estava nesse programa de proteção aos defensores de direitos humanos. Felizmente eu já tinha um BO dizendo que aquilo não era meu, mas ainda assim fizeram um monte de perguntas. Eu saí naquele dia convicta de uma coisa muito triste: que as polícias no nosso país levam muito mais a sério, veem muito mais como crime você defender a descriminalização do aborto do que você defender estupro de mulheres. Porque foi muito rápido que me chamaram para depor sobre um site obviamente falso sobre aborto. E o tempo que eles demoraram para fazer qualquer tipo de investigação sobre as centenas de sites que o Marcelo fazia que defendiam estupro etc. foi enorme. A própria delegada me mostrou que quem denunciou foi o Emerson. Eu fiquei perplexa porque você tem um cara que foi presidiário, acusado, julgado e condenado por crimes de ódio, e aí ele denuncia uma feminista e tudo bem? Isso é acatado. Mas agora o Marcelo está sendo também acusado por esse site. E também por vender remédios abortivos, porque afinal ele fez isso.

Eu estou numa universidade pública com certa estabilidade, tenho o apoio do meu marido e da minha família. Comecei o blog já tinha 40 anos e uma certa maturidade. Se eu parasse com o blog, eles não iriam parar de me atacar. Se eu parasse, significaria que eles ganharam. E eles não podem ganhar. Eu me baseio muito no que a Audre Lorde disse: que o seu silêncio não te protegerá. Não adianta a gente ficar quieta, que não vamos parar de ser atacadas por sermos mulheres. Não precisa nem ser feminista para ser atacada por ser mulher. Claro que um dia eu vou parar com o blog porque cansa, porque vou querer me aposentar, mas não vai ser porque eles ganharam. Eu sei que sou um exemplo de luta e não quero que ninguém passe pelo que passei, mas quero que as mulheres tenham mais coragem para, unidas, irmos em frente e mostrar que não temos medo.


Rebecca Mendes

Estudante de direito, mãe solo de dois meninos, trabalhadora; é a primeira mulher brasileira a pedir no STF o direito a fazer um aborto legal e seguro por não ter condições financeiras e psicológicas para seguir com a gestação


Rebecca Mendes é a primeira mulher brasileira a pedir no STF o direito a fazer um aborto legal e seguro
No começo do ano passado, eu decidi trocar de método contraceptivo e queria colocar o DIU. Porque, desde que meu segundo filho nasceu, eu usava hormônio sem parar e me sentia muito mal. Parei de tomar a injeção e comecei a tentar marcar consulta no posto de saúde com a ginecologista. No começo do ano. Eu consegui marcar a consulta para setembro. A médica me deu um papel e me encaminhou para o planejamento familiar, mas me pediu um ultrassom para iniciar o processo burocrático para colocar o DIU. Eu consegui marcar o exame em outubro. No dia do exame, minha menstruação veio e precisei remarcar o exame para dezembro. Nesse meio-tempo eu tive um encontro amoroso e acabei engravidando. Descobri no começo de novembro. Eu entrei em desespero. Surtei. Chorava dentro de casa e meus filhos ficavam perguntando o que estava acontecendo. Aí eu liguei para o pai daquela gestação, que também é o pai dos outros filhos que eu tenho. A gente se encontrou e eu disse o que tinha acontecido. Eu já tinha entendido que não podia e não queria. E contei para ele e ele disse “eu não quero”. A gente concluiu que ninguém queria, mas eu também não queria fazer o aborto de qualquer forma. Passamos o dia seguinte procurando um método para interromper a gestação de forma segura. Eu disse que não queria colocar minha saúde em risco, tinha pavor de tomar uma coisa e ficar em casa sangrando com os meninos, morrer em casa. E também não queria nada que botasse minha segurança em risco. No semestre anterior da faculdade, eu tinha visto as penalidades para mulheres que praticavam o aborto. E a gente escuta histórias na vida. Uma amiga que fez isso, aquilo. Eu morria de medo. Eu coloquei esses dois quesitos, essas duas condições. E no dia seguinte a gente começou a procurar opções, a gente viu clínicas caríssimas que não teríamos condições de pagar; a gente viu lugares que vendem os comprimidos na rua; a gente viu grupos nas redes sociais; a gente viu um site que parece um e-commerce, e eu dizia “não confio, não sei de onde vem”. Acabei conhecendo a Debora Diniz através de um amigo do pai dos meus filhos. Eu disse que estava no comecinho de uma gravidez indesejada e que precisava de ajuda. Eu não a conhecia, ela me contou sobre o trabalho dela e me disse que a forma que poderia me ajudar era entrarmos com um pedido na Justiça. Ela me explicou o que seria, disse dos problemas que poderia ter a exposição, disse que provavelmente teria exposição e disse para eu pensar. Fui pesquisar quem era ela e achei que era a única alternativa. E aí disse que topava. Nós passamos semanas providenciando documentos, fazendo exames. O caso começou a repercutir muito e passei a receber muitas mensagens de grupos pró-vida, que descobriram meu telefone e me ligavam, me mandavam mensagens. Recebi ameaças de morte de todo tipo nos comentários das reportagens. Foi horrível. Eu estava em um momento conturbado, passando por muitos problemas, com os hormônios da gestação, me sentindo sozinha com meus filhos. O pai já tinha largado mão. Eu não tinha ninguém. Meus amigos mais próximos vinham me questionar, todo mundo tinha uma solução perfeita para o meu problema. Começaram a aparecer pessoas na minha casa! Um domingo à noite apareceu uma mulher de um grupo pró-vida que tinha descoberto meu endereço e foi entrando. Eu disse que ela não podia fazer isso, que era uma propriedade particular, e ela disse que, já que meu caso era público, ela tinha o direito de fazer aquilo. Nesse dia fiquei com muito medo porque estava sozinha em casa com meus filhos, e não dá para argumentar com essas pessoas. Fora todas as barbaridades que eu lia e ouvia. Eu me afastei das mídias sociais, dava entrevista, mas não via. Sei que saiu na TV, mas nunca vi. Muita gente me acusou, que eu era uma assassina, que eu merecia morrer, que meus filhos mereciam morrer, que uma hora ou outra eu ia matar os filhos que já tenho. Eu fiquei com medo e até hoje, mesmo depois que consegui fazer o procedimento de forma legal na Colômbia, eu tenho medo. A gente ficou meio visado aqui no bairro. Eu estou sempre de olho. Eu vi o que aconteceu com a Debora e com outras pessoas que apoiam a descriminalização do aborto. Umas duas semanas depois que eu voltei da Colômbia, ainda lia comentários maldosos. São pessoas contraditórias e pró-vida até a página dois, enquanto aquele feto está ali. Depois que essa criança nasce ou se ela acaba tendo uma criação difícil, com pais desestruturados ou vai parar num orfanato, eles já não são tão pró-vida. Já entram no modo “bandido bom é bandido morto”. Pessoas cheias de ódio, discriminação. Eu dizia na época, eu não tinha condições de criar três filhos sozinha, não tinha dinheiro, iria ter que largar a faculdade. Aí, se eu não consigo criar meus filhos direito, eles crescem e entram para o crime, esse mesmo pessoal iria querer a morte deles. São pessoas perigosas, que disseminam ódio e preconceito a quem pensa diferente deles.


Rita Lisauskas

Jornalista, escritora, colunista do Estadão e da Rádio Eldorado


Rita Lisauskas é jornalista e autora da coluna Ser mãe é padecer na internet
Eu escrevi três matérias sobre aborto para a coluna do Estadão. Uma que chamava “Sou mãe e a favor do aborto”, depois eu fiz uma reportagem sobre uma menina que foi denunciar o agressor e ouviu “tem certeza que ele não é seu namorado?” e outra que é “Precisamos falar de novo sobre aborto”. Todas tiveram aquele chorume nos comentários das redes sociais. Quando começaram as audiências no STF, eu pensei em escrever a respeito, mas desisti. Porque é uma coisa tão cansativa, aqueles comentários, aquela coisa infernal. Eu tenho a impressão que as pessoas que leem e concordam com você guardam suas opiniões, compartilham os textos sem falar muito, mas, quando são contra, elas comentam, agridem, escrevem palavras de ódio e só chega em nós esse feedback. Isso é muito cansativo.

A perseguição e as ameaças à Debora Diniz, que é uma estudiosa que se debruça sobre o assunto, também colaboraram um pouco para o meu cansaço. Acho que de alguma forma você acaba se autocensurando porque é uma coisa tão séria e tão grave que você fala “poxa não vou mexer mais nisso porque já foi tão cansativo da outra vez” e você acaba se silenciando. Eu acho que parte desse ódio é uma coisa orquestrada. “Vamos pra cima dessa mulher que tá falando sobre esse assunto com toda a agressividade possível porque ela vai pensar duas vezes antes de falar sobre isso de novo.” E acaba tendo um efeito, né? O episódio mais grave pra mim e para minha família foi o do Queer Museum: eu escrevi falando que levaria meu filho para aquela exposição. Aquilo já me deixou com medo de escrever sobre esses assuntos porque a pauta do pessoal de extrema direita é sempre a mesma, sempre inclui o aborto, chamam uma exposição de arte de pedofilia. Na época eu tinha no meu Twitter escrito que eu era mãe do Samuel. Eles pegavam meu nome e falavam “a gente vai ver onde o Samuel estuda”, a ponto de o meu marido entrar em pânico e pedir para eu tirar o nome dele do meu perfil. Recebi muitas ameaças, uma avalanche. Notifiquei o jornal, mudamos nossa rotina por um tempo. Eu fechei meu Instagram porque eles entravam me chamando de aborteira e pedófila. Eram tantas mensagens que eu nem sabia quais denunciar à polícia. Foi uma coisa enlouquecedora. Meu pai geralmente busca meu filho na escola e naquela semana eu fui buscar meu filho todos os dias, olhando para os lados, esperando ser atacada. Fiquei meio paranoica. Fiquei conhecida como aborteira e pedófila. As pessoas são as mesmas e as pautas são as mesmas. Juntou o medo com um cansaço de alma. E isso é terrível, né? Sermos silenciadas dessa forma.


Lusmarina Campos Garcia

Teóloga e pastora da Igreja Luterana, bacharel, mestra e doutoranda na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ

Lusmarina Campos Garcia começou a sofrer ameaças de morte desde que o Conselho de Igrejas Cristãs do Rio De Janeiro fez uma campanha de arrecadação para ajudar na reconstrução do terreiro da Mãe Conceição de Lissá
Eu comecei a sofrer ameaças de morte na verdade desde que o Conselho de Igrejas Cristãs do Rio De Janeiro, do qual eu era presidente, fez uma campanha de arrecadação para ajudar na reconstrução do terreiro da Mãe Conceição de Lissá, que havia sido queimado em Duque de Caxias. Foi uma ação afirmativa diante da intolerância perpetrada por grupos que se dizem evangélicos. Essa ação teve bastante repercussão na mídia e uma avalanche de perseguições começou a acontecer. Um dos vídeos me atacando era, inclusive, de um youtuber evangélico que me chamava de “pastora vagabunda, vadia” e dizia que eu tinha que tomar tapa na cara. Uma fala muito agressiva e muitas mensagens de degradação, desrespeito e injúria. Mas eu acho importante dizer que essas mensagens e ameaças aparecem em número muito menor do que as que chegam em apoio, carinho e agradecimento. Com minha participação nas audiências públicas sobre a questão do aborto no STF, eu voltei a receber mensagens nas redes sociais, e duas especialmente foram consideradas como ameaças de morte reais. Uma delas veio de um pastor, se não me engano – a polícia está investigando – que diz “essa vadia, essa vagabunda que se diz pastora luterana, seria uma honra para mim matá-la. Você é um alvo bom para eu descarregar o meu fuzil”. E uma outra pessoa que diz “morre sua maldita”, que na verdade a polícia achou a princípio que não era uma ameaça de morte direta, mas, quando eu fui na página da pessoa, vi que é alguém que tem arma, que tem autorização para isso – e aparece em fotos atirando em um alvo, fazendo treinamento de tiro. Essas foram as duas mais pesadas de que eu tenho conhecimento até o momento, porque eu confesso que não fico olhando. Não quero gastar meu tempo nisso.

Essas duas eu levei para a polícia, fiz boletim de ocorrência e estão sendo investigadas. Eu acho que há uma teologia misógina que perpassa as igrejas de modo geral. É uma teologia baseada numa perspectiva patriarcal na qual o homem é o centro das relações e do universo, da criação. Então há um tratamento com respeito às mulheres, em termos teológicos e em termos eclesiológicos, de considerar a mulher como um ser de segunda categoria. É como é interpretado o texto do Gênesis [primeiro livro da Bíblia]. Essa é a condição da mulher, de subalternidade, de não sujeito. Então, embora o discurso de muitas igrejas seja “nós valorizamos as mulheres, as mulheres são muito importantes”, na verdade elas só são importantes na medida da sua subserviência e na medida do seu serviço – porque na verdade são as mulheres que mantêm as igrejas funcionando. É um discurso muito controverso e muito hipócrita. Então, tem uma teologia carregada de misoginia, que perpassa nossas igrejas, e por causa disso, inclusive, você vai ter esse tipo de comportamento que se coloca tão veemente em defesa da vida do feto e não da vida da mulher. Porque na verdade, quando você tem grupos pró-vida ameaçando mulheres de morte, isso significa que essas pessoas que defendem a vida do feto acham que a vida das mulheres é descartável. Não é toda vida.

O que eu tenho observado, também, é que há uma crescente onda conservadora dentro das igrejas, inclusive dentro da minha própria igreja, e a instituição não se preocupa em responder a esses conservadores. A gente percebe uma violência, atitudes hostis tanto de lideranças como de colegas e de membros comuns da igreja. A hostilidade acompanha essa onda conservadora não só no Brasil, mas no mundo. O Brasil tem características específicas porque houve um crescimento muito grande das igrejas neopentecostais, que tem um discurso mais violento também. E, como elas cresceram muito, eu acho que as igrejas protestantes históricas e a católica acabaram tendo que concorrer, entrar na disputa pelos membros e acabaram com algumas características importantes da sua história. O que a gente está vivendo hoje é resultado dessas últimas décadas, e por outro lado eu acho que é resultado desta onda global de crescimento dos protofascismos. Há essa onda antigênero, antidireitos humanos, antidistribuição de renda.

Eu acho que é importante dizer que essas ameaças e atitudes de ódio têm a intenção de desarticular nossa ação e nosso desejo de permanecer lutando por esta causa e por outras que são causas justas e são causas da afirmação da autonomia das mulheres, da dignidade das mulheres, dos direitos das mulheres de decidir seu presente e seu futuro e de ser tratadas como seres livres e autônomos. Essas ameaças têm a intenção de nos parar, de nos interromper, amedrontar. No entanto, eu gostaria de deixar muito claro que nenhuma dessas atitudes vai me fazer parar e nem vai fazer parar as mulheres que eu conheço, que estão nessa luta. Não vão fazer parar as pessoas que defendem os direitos humanos. Esse pessoal vai ter que arrumar outra estratégia para lidar comigo, por exemplo. Porque a mim não amedronta. E tudo isso é muito menor do que o tanto de mensagens de solidariedade que eu recebo e que me fortalecem.

Assista aqui ao vídeo da fala da pastora Lusmarina no STF.

Fonte: Agência Pública

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