Em junho, o site MyHeritage teve uma falha de segurança que expôs dados de 92 milhões de usuários. Segundo a empresa, que faz testes caseiros de DNA que permitem a qualquer pessoa investigar sua ancestralidade, foram vazados os endereços de e-mails e senhas criptografadas, mas as informações genéticas não foram expostas.
Ainda assim, o incidente repercutiu no Brasil: dados de mais de 3,6 milhões de brasileiros (incluindo 106 mil menores de idade na época) foram expostos, segundo o Ministério Público do Distrito Federal, que solicitou os dados à empresa e teve a resposta nesta semana.
Ainda assim, o incidente repercutiu no Brasil: dados de mais de 3,6 milhões de brasileiros (incluindo 106 mil menores de idade na época) foram expostos, segundo o Ministério Público do Distrito Federal, que solicitou os dados à empresa e teve a resposta nesta semana.
Eu sou uma desses clientes.
Deve ter sido em 2010 que eu li pela primeira vez sobre o 23andMe, o primeiro serviço do mundo a oferecer testes de ancestralidade genética super acessíveis – a cerca de US$ 100 – capazes de localizar, geograficamente, as origens étnicas de um indivíduo. Eu sempre tive curiosidade de conhecer o mundo e me entender nele, e um teste de saliva que mapeava a minha ancestralidade parecia a melhor oportunidade de fazer isso. Foi só em 2017, porém, que tive a oportunidade de enviar pelo correio para os EUA uma amostra de saliva em um cotonete e então ter meu código genético interpretado e registrado em um destes serviços, o MyHeritage.
Paguei US$ 85 e recebi em casa um pacote bonito com dois cotonetes compridos, dois recipientes plásticos e instruções para colher apropriadamente as amostras de tecido da bochecha. Segui as instruções, fechei os recipientes dentro do envelope que vinha junto do kit e enviei de volta para os laboratórios da empresa, nos EUA. Um mês depois, chegou à minha caixa de entrada um e-mail informando que meus resultados estavam disponíveis.
O primeiro contato com essas informações é emocionante. Os meus sobrenomes fazem jus ao que meu DNA entrega: sou 52,5% ibérica. Mas a outra metade de mim é formada por 11 etnias diferentes, e a parte italiana da família, tão aclamada, tem apenas 1,6% de participação. Uma herança grega misteriosa é muito mais significativa: corresponde a 15,4%. Para fazer o cálculo, o MyHeritage tem acesso a um grande banco de dados com genomas de indivíduos de várias etnias diferentes. O estudo identifica padrões no código genético de pessoas da mesma etnia, como mutações específicas e características fenotípicas, e então associa os padrões. Hoje a empresa tem um banco de dados com 42 etnias. Um concorrente, o 23andMe, trabalha com 31 etnias.
Mapeada minha ancestralidade, o meu DNA – meu sequenciamento, único, que me distingue do resto da humanidade – entrou para o banco de dados da empresa. E informações muito sensíveis sobre mim também.
Mapeamento para todos
O MyHeritage é um dos mais populares serviços do tipo nos EUA, ao lado do 23andMe, FamilyDNA e do Ancestry.com. Só em 2016, o Ancestry.com gastou US$ 109 milhões em publicidade, enquanto o 23andMe investiu US$ 21 milhões. Estima-se que, de 2013 a 2018, o número de pessoas testadas por serviços de genética só nos EUA tenha crescido de 330 mil para quase 13 milhões, de acordo com a ISOGG, a Sociedade Internacional de Genealogia Genética. No Brasil, a única empresa do tipo é o MyHeritage, que vende kits em reais – o preço começa em R$ 230.
Quando a empresa recebe a amostra e compara as informações do seu genoma com os padrões de seu banco de dados, é possível mapear a porcentagem do DNA individual associado a cada região do mundo e até localizar primos distantes, com até cinco graus de distância de parentesco.
Mas essa não é a única história que um DNA conta. É possível, por exemplo, identificar predisposição para certas doenças e síndromes, sejam elas afetadas por genes recessivos ou dominantes. E, na medida em que o estudo da genética avança, cada vez mais informações sobre um indivíduo – ou sobre sua família – estarão disponíveis a partir a leitura do DNA. São dados valiosos que carregam informações sensíveis sobre indivíduos – e que começaram a ser usadas para fins, digamos, um pouco além do que foram previstos inicialmente. E, usados em escala massiva, podem criar possibilidades de vigilância dignas das piores distopias.
Sociedade de vigilância a partir do DNA
Para começar: um banco com informações tão sensíveis deveria ser seguro. Bem, ele tem falhas, como mostrou o vazamento de dados do MyHeritage.
Mesmo que não existam falhas de segurança, essas empresas não garantem o total sigilo das informações coletadas. O MyHeritage, por exemplo, diz que pode usar o DNA dos usuários para pesquisa e pode ceder as informações para governos (inclusive de outros países). O 23andMe diz que mantém as informações genéticas separadas das outras informações dos usuários, mas o sigilo pode ser quebrado por pedidos governamentais ou judiciais (até maio de 2018, foram cinco casos, todos nos EUA). Além disso, alguns desses serviços vinculam as contas às redes sociais dos usuários. Que tal ter suas informações genéticas para sempre anexadas ao seu perfil no Facebook?
No Canadá, os dados de serviços do FamilyTreeDNA e do Ancestry.comforam usados pela agência de imigração para apoiar um caso de deportação de um ex-residente permanente. O governo canadense quis provar que Franklin Godwin, identificado como cidadão liberiano, é na verdade nigeriano, para então poder deportá-lo – a Libéria nega que Godwin seja cidadão do país. Nos EUA, há casos em que a polícia usa serviços de DNA para buscar “parentes” de suspeitos e chega até a considerar essas conexões relevantes em investigações.
Eugenia e planos mais caros
O impacto desse enorme banco de dados genético não é apenas na esfera criminal. O 23andMe anunciou em julho de 2018 que vai compartilharinformações de seu banco de dados com a farmacêutica inglesa GSK.Segundo as empresas, a colaboração visa usar o banco de dados genético dos 5 milhões de usuários para coletar insights que permitam desenvolvimento de medicamentos mais precisos e eficazes, além da identificação e recrutamento de potenciais pacientes para testes clínicos.
Os usuários podem fazer opt-out, ou seja, optar por não ceder essas informações à multinacional farmacêutica. Mas, em uma sociedade que não costuma ler os termos de uso e também não se preocupa em deixar de fornecer dados pessoais, como o CPF, em troca de descontos, parece lógico presumir que grande parte das pessoas não veria problema em entrar para o banco de dados genético da multinacional em troca de um desconto, por exemplo. Informações sobre a possibilidade de uma pessoa ter câncer ou uma doença degenerativa, por exemplo, poderiam ser bem úteis para a indústria de seguros de saúde – que poderia baratear ou encarecer um plano com base na previsão do código genético das pessoas.
Informações podem ser usadas contra os interesses dos usuários.
O DNA é uma informação que não pode ser alterada – estará, portanto, eternamente vinculada a cada um de nós. Uma vez que ela é cedida a uma empresa e um governo, outras pessoas têm acesso à uma informação sensível, identificável e que permite diferentes tipos de discriminação. A falta de proteção a dados genéticos pode causar graves violações de direitos. No geral, os dilemas giram em torno de uma premissa assustadora: a possibilidade do uso dos dados por organizações públicas ou privadas para apoiar ideologias discriminatórias, perseguir grupos ou negar direitos civis com base em características genéticas, fenotípicas ou genotípicas (ou seja, que aparecem fisicamente no indivíduo ou não).
Os termos de uso do 23andMe dizem, explicitamente, que os usuários devem ser cuidadosos com quem eles compartilham as informações – e que elas podem ser usadas contra seus próprios interesses. O problema é que nem sempre quem pagou poucos dólares para mapear seu DNA tem controle sobre isso – muito menos sobre as empresas e como elas pretendem lucrar com essas informações.
Talvez tenha sido um preço caro demais para saber que eu sou 15% grega.
Fonte: The Intercept
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