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sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O Judiciário brasileiro resistiria a um julgamento público?

Com uma proposta de Reforma Administrativa que promete livrar o Judiciário, férias de 60 dias liberadas para serem vendidas e diversas faltas disciplinares que aparecem a olhos vistos, não é difícil achar explicações para o desgaste na imagem da Justiça brasileira

No Brasil, é impossível acompanhar os últimos fatos da semana sem se deparar com o Judiciário no centro da pauta. O último debate nos dá conta de uma espécie de Cavalo de Tróia travestida de uma Reforma Administrativa que, adivinhem, exclui militares, parlamentares e magistrados. Há poucos dias, o assunto da vez era a autorização por parte do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, para a possibilidade da venda das incríveis férias de 60 dias da qual a magistratura (Ministério Públicos e afins) tem direito.

No Brasil, é impossível acompanhar os últimos fatos da semana sem se deparar com o Judiciário no centro da pauta. O último debate nos dá conta de uma espécie de Cavalo de Tróia travestida de uma Reforma Administrativa que, adivinhem, exclui militares, parlamentares e magistrados. Há poucos dias, o assunto da vez era a autorização por parte do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, para a possibilidade da venda das incríveis férias de 60 dias da qual a magistratura (Ministério Públicos e afins) tem direito.

Voltando um pouco no tempo, nos deparávamos com o debate público em torno da carteirada do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Eduardo Siqueira. Isso para focar apenas nas questões restritas à atuação funcional, excluindo o caso da “rachadinha” do clã Bolsonaro, que aportou no Superior Tribunal de Justiça (STJ), e outras da seara política.

Mas o fato é que, do questionamento sobre decisões judiciais à conduta de magistrados no, digamos, trato republicano da vida comum, talvez o que o Judiciário não tenha ainda percebido é que, sim, ele está sendo julgado. Como agravante, isso ocorre em um momento em que o debate público “tradicional” se vê interditado pelo fim da mediação. Ou seja, vai ser difícil conter aquela notinha indesejada, que antes estava visível apenas no jornal do dia seguinte.

De forma direta, não é possível ao Judiciário ter tanto protagonismo político e não se ater às consequências disso, mas essas consequências são, em boa parte, imponderáveis quando não há controle da própria conduta e se está diante de um agendamento que vai rompendo a mediação tradicional da imprensa.
 
Não em praça pública

Nesse imenso nariz de cera de tantos episódios que poderiam ser utilizados para ilustrar o argumento, fiquemos com o corriqueiro caso da carteirada do desembargador Eduardo Siqueira, dada em um agente municipal de Santos, para evitar uma multa por estar caminhando na orla sem máscara. No dia 25 de agosto, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, por unanimidade, abrir procedimento administrativo disciplinar para apurar a conduta do desembargador. Afastado das funções até o fim desse processo, Siqueira se viu exposto nas redes e na imprensa.

De forma “curiosa”, foi justamente o caso em questão, com toda a repercussão envolvida, que implicou uma, a única que se sabe, sanção objetiva ao desembargador cujo histórico disciplinar apresentava 40 autos processuais, que chegaram a ser instaurados há mais de 15 anos e foram arquivados.

Nesse caso, chamo a atenção para duas declarações. A primeira presente no voto do corregedor do CNJ, Humberto Martins: “É necessário o afastamento cautelar para que se investigue o exercício das funções administrativas e jurisdicionais do desembargador porque, durante seu período no Tribunal, ele pode influenciar outras condutas agressoras e que possam violentar a cidadania e possam ferir a imagem da digna e honrosa magistratura do Brasil”. Vale a pausa para reler a última oração.

Agora, em um corte, recordo um trecho da nota divulgada pelo próprio TJSP quando a carteirada veio à tona e foi duramente criticada: “As discussões voltadas às correções das decisões devem ocorrer nos autos, não em praça pública”. O texto é uma tentativa desconjuntada de rebater um tal ‘autor da matéria’. Sem nomear o interlocutor, faz clara referência ao professor Conrado Hubner, da Universidade de São Paulo (USP), também colunista da Folha de S.Paulo, que não poupou o desembargador e o TJSP das devidas críticas. O caso foi documentado à farta, a magistratura foi questionada (como ser diferente?) e o encaminhamento do CNJ dá provas disso.

Juntando as pontas sobre o “cuidado” do CNJ com a imagem do Judiciário e o temor do TJSP de que as condutas dos magistrados sejam discutidas publicamente, desenha-se o dilema: o Judiciário brasileiro resistiria a um julgamento público? A pergunta é retórica por dois aspectos. Primeiro, porque, sim, esse julgamento já acontece e vem sendo montado há anos, como naquelas histórias de Tribunal do Júri repletas de momentos de tensão e adiamentos. Segundo, porque é muito irônico que a própria magistratura use as armas que quer evitar. Em outras palavras, diga publicamente que não é, vejam vocês, publicamente, que as coisas se resolvem. Vou dispensar considerações mais sofisticadas sobre essa última questão. É um sofisma insolúvel e uma estratégia pífia. Nesse luto, cabe ao Judiciário passar adiante na fase da aceitação.

Contudo, ao contrário de um veredicto final, imagem é algo que se constrói e se molda dinamicamente. Não é estanque e, no acumulado do distópico Brasil atual, às questões da política se somam as questões intestinas Mas, por ora, vou me ater às últimas, porque elas são um elemento importante do que, mais adiante, pode aparecer como fratura estruturalmente exposta.
 
Bangue-bangue!

Há muito questões como auxílio-moradia, férias de 60 dias e diversos outros penduricalhos da magistratura vêm e voltam no debate público. Por exemplo, no apagar das luzes da gestão Toffoli, foi aprovada uma “gratificação por acervo”, mecanismo que na prática recompensa quem tem mais processos para julgar (por que mesmo alguém se esforçaria para ter menos?).

Contudo, essas questões são constantemente camufladas pela nova fase da Operação Lava Jato, pela mais recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e seja lá por qual for o episódio onde a prestação jurisdicional tire de foco seu custo. Nesse sentido, vale lembrar os dados relevados no relatório “Justiça em Números”: nas informações referentes a 2019, o custo de um juiz é de R$ 50,9 mil por mês; no ano anterior, a média era de R$ 46,8 mil.

Claro que se deve ponderar aspectos relativos às garantias funcionais, às demandas e à eficiência do Judiciário. Porém, a pergunta sobre o alto valor do investimento cresce na mesma proporção em que a crise econômica afeta o país, a magistratura se insula como elite descolada da realidade e sua imagem explode num julgamento público a cada dia mais amplo e segmentado (repito: o que acontece no grupo do tio do zap tem diversos matizes distintos, vai dos leões patriotas contra as hienas do Supremo a frases como “o Supremo é o povo”).

É aí que as pautas políticas se cruzam com as funcionais, e isso é um tópico específico de discussão, que aqui pode ser resumido na seguinte pergunta: por que pagar tão caro por um poder que não cumpre seu papel? Se restringirmos o ponto às questões funcionais, vamos lembrar as pautas que rondaram a Reforma do Judiciário, há 16 anos. Lá se discutia a “caixa-preta” da magistratura, seu poder de correição, elementos como nepotismo etc. Um pacote de temas que, em primeiro plano, estava muito mais ligado à atuação funcional do que a questões de interferência política em outros poderes. Contudo, foi exatamente o agendamento sobre a necessidade de se “prestar contas à sociedade” que fez a Reforma ganhar fôlego no debate público.

Hoje parece que o bolsonarismo engolfou essas questões institucionais “miúdas”. O grande tema presente na mesa de debates é a democracia brasileira – na verdade, seu risco de sobrevivência. Ocorre que, com um Judiciário insulado, de bolsos cheios e arroubos prepotentes, a Justiça será vista muito mais como parte do problema do que como uma solução. Mesmo que as benesses levem a bom grado de imediato, tal qual ocorre com o orçamento do Exército, um pouco de senso de autopreservação a médio e longo prazos mostraria o contrário.

Certa vez, em sala de aula, em um curso para a magistratura, escutei a seguinte frase: “A sociedade não quer entender a gente”. Guardo-a comigo com um petardo e recorro a ela sempre que preciso de uma explicação freudiana para o deslocamento da magistratura da realidade. Novamente, é o caso de reiterar a pergunta: o Judiciário brasileiro resistiria a um julgamento público? Com ironia, podemos dizer que, decerto, a culpa é do outro. Inconsciente: decifra-me ou devoro-te.

Aí se fecha o ciclo, porque, se na ponta, o bolsonarismo encapsulou as pautas institucionais da magistratura, por outro lado, ele as deixou aparente nesse mundo da falta de mediação. Se estivéssemos na década de 1990 e 2000, seria fato inconteste que pensar na imagem institucional futura da instituição era luxo para “amanhã”, com o orçamento de hoje já garantido. Mas, atualmente, essa disputa pela imagem em muitos aspectos se perdeu no fantástico mundo de Alice. Notas de repúdio, clamores para que julgamentos sejam restritos aos autos e toda uma série de estratégias old school nem resolvem o cerne do problema e nem chegam àquele que defende a Lava Toga.

Repito alguns elementos da conjuntura: privilégios da magistratura, crise econômica e insulamento institucional. Mesmo ciente da capacidade das instituições de se preservarem, diante da distopia, não seria um exercício de imaginação muito improvável que, tal qual em filmes como Pulp Fiction, o cenário montado para um tiroteio previsível abrisse espaço para o inesperado. Acho que, de fato, em algum momento talvez seja possível a magistratura dizer com propriedade que, sim, “a sociedade não quer entendê-la”. Bangue-bangue!

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