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terça-feira, 29 de setembro de 2020

‘Sou negro, adotei um menino branco e fui acusado de sequestro

Johnny*, de sete anos, estava agitado. Ele havia acordado de mau humor e isso só aumentava com o passar do dia. Agora, em um restaurante em Charlotte, no Estado americano da Carolina do Norte, Peter podia ver Johnny discutindo com outra criança na área de recreação.

Histórias de acolhimento e adoção inter-racial são quase sempre contadas por pais brancos que se dedicam a cuidar de crianças não-brancas.

Mas o que acontece quando pais não-brancos resolvem adotar crianças brancas?

Um cotidiano de suspeita e interrogatório, dizem eles.

Peter, que nasceu na Uganda, já viveu isso na pele. Ele é pai adotivo de crianças brancas nos EUA.

‘Há um homem negro sequestrando uma criança branca’

Johnny*, de sete anos, estava agitado. Ele havia acordado de mau humor e isso só aumentava com o passar do dia. Agora, em um restaurante em Charlotte, no Estado americano da Carolina do Norte, Peter podia ver Johnny discutindo com outra criança na área de recreação.

Ele teve que agir rápido para tirar seu filho adotivo do restaurante. Pegando o menino nos braços, Peter pagou rapidamente a conta.

Enquanto carregava Johnny para o carro, a criança se contorcia em seus braços e não parou até Peter a colocar no chão para abrir a porta do carro.

Uma mulher se aproximou deles e confrontou Peter.

“Onde está a mãe desse menino?”, perguntou ela.

“Eu sou o pai dele”, respondeu Peter.

A mulher deu um passo para trás e parou na frente do carro de Peter. Ela olhou para a placa dele e pegou o telefone.

“Olá, polícia, por favor”, disse ela calmamente ao telefone. “Ei, é um homem negro. Acho que ele está sequestrando um garotinho branco.”

Johnny parou de fazer birra de repente e olhou para Peter. Peter colocou o braço em volta do filho adotivo.

“Está tudo bem”, disse ele ao menino.


Infância pobre

No site de viagens Lonely Planet, Kabale é descrita como “o tipo de lugar por onde a maioria das pessoas passa o mais rápido possível”.

Em Uganda, perto da fronteira com Ruanda e a República Democrática do Congo, serve como via de transporte para vários parques nacionais famosos nas proximidades.

Para Peter, sua cidade natal ainda guarda memórias dolorosas.

Ele teve uma educação precária. Quando criança, oito membros de sua família dormiam no chão duro de uma cabana de dois quartos.

“Não havia muito o que esperar. Se tivéssemos uma refeição, seria batata e sopa”, diz ele, “e se tivéssemos sorte, comeríamos feijão.”

A violência e o alcoolismo eram uma realidade diária na vida de Peter. Ele corria para a casa de suas tias, que moravam a metros de distância, para escapar.

“Por um lado, tinha o apoio das minhas tias e aprendi que, às vezes, é necessário um vilarejo inteiro para criar um filho”, diz ele. “Mas foi caótico.”

Aos dez anos, Peter decidiu que preferia ficar sem teto do que continuar morando com sua família. Juntou o máximo de moedas que pôde e correu para o ponto de ônibus local.

“Qual deles vai mais longe?”, perguntou ele a uma mulher que estava ali. Ela apontou para um ônibus e, embora Peter não conseguisse ler a placa, embarcou nele. Seu destino estava a 400 km de distância: a capital de Uganda, Kampala.

Quando Peter desembarcou depois de quase um dia de viagem, ele se dirigiu às barracas do mercado que margeiam as ruas e perguntou aos vendedores se ele poderia trabalhar – qualquer trabalho – por comida.

Nos anos seguintes, Peter viveu nas ruas. Fez amizade com outros meninos sem-teto e eles dividiam seus ganhos e refeições. Peter diz que aprendeu uma habilidade inestimável para toda sua vida: ser capaz de reconhecer a bondade nas outras pessoas.

Ali, ele também conheceu um homem gentil: Jacques Masiko. Ele visitava o mercado semanalmente e sempre comprava uma refeição quente para Peter antes de partir.

Depois de cerca de um ano, Masiko perguntou a Peter se ele gostaria de estudar. Peter disse que sim, então Masiko conseguiu uma vaga para ele em uma escola local.

Ao vê-lo progredir nos estudos, Masiko e sua família ofereceram a Peter que fosse morar com eles.

Em Jacques Masiko, Peter encontrou um homem que o tratava como um membro da família. Peter retribuiu, destacando-se na escola e, finalmente, conseguindo uma bolsa de estudos para uma universidade dos Estados Unidos.

Algumas décadas depois, Peter estava com quarenta e poucos anos e felizmente já bem estabelecido nos Estados Unidos. Ele trabalhava para uma ONG que levava doadores a Uganda para ajudar comunidades carentes. Foi em uma dessas viagens que ele viu uma família branca trazer sua filha adotiva com eles.

Peter percebeu que crianças dos EUA precisavam de um novo lar tanto quanto as crianças em Uganda. Em seu retorno à Carolina do Norte, Peter foi a uma agência de adoção local e disse que gostaria de fazer trabalho voluntário para eles.

“Você já pensou em se tornar um pai adotivo?”, perguntou a funcionária do orfanato, enquanto anotava seus dados.

“Sou solteiro”, respondeu Peter.

“E daí?”, rebateu a mulher: “Há muitos meninos buscando um modelo a seguir, pessoas que desejam ser uma figura paterna em suas vidas”.

Havia apenas um outro homem solteiro que se inscreveu para ser pai adotivo no Estado da Carolina do Norte na época.

Quando preencheu seus formulários, Peter presumiu que seria automaticamente associado a crianças afro-americanas. Mas ele ficou chocado ao saber que a primeira criança que ficou sob seus cuidados foi um menino branco de cinco anos.

“Foi quando percebi que todas as crianças precisavam de um lar, e a cor não deveria ser um fator para mim”, diz Peter.

“Tinha dois quartos extras e deveria abrigar quem precisasse.”

“Assim como o sr. Masiko me deu uma chance, eu queria fazer isso por outras crianças.”

‘Posso te chamar de pai?’

Ao longo de três anos, Peter foi guardião de nove crianças por vários meses, usando sua casa como uma espécie de porto seguro antes que elas fossem devolvidas às suas famílias biológicas. Eram negras, hispânicas e brancas.

“Uma coisa para a qual eu não estava preparado era dizer adeus”, diz ele, “Você nunca está preparado”, acrescenta.

Peter cuidava de crianças em intervalos de tempo diferentes para que isso não afetasse sua saúde emocional.

Então, quando recebeu uma ligação na noite de uma sexta-feira da agência de adoção sobre um menino de 11 anos chamado Anthony, que precisava de um lugar urgente para ficar, Peter recusou a oferta.

“A última criança partira havia três dias, então eu disse, ‘Não, preciso de pelo menos dois meses’. Mas eles me disseram que este era um caso excepcional, um caso trágico, e eles só precisavam hospedá-lo no fim de semana até que encontrassem uma solução.”

Relutantemente, Peter concordou e Anthony – um garoto alto, pálido e atlético de cabelos encaracolados castanhos – foi deixado em sua casa às 3 da manhã. Na manhã seguinte, Anthony e Peter sentaram-se para o café da manhã.

“Você pode me chamar de Peter”, disse ele ao menino.

“Posso te chamar de pai?”, respondeu Anthony.

Peter ficou chocado. Os dois só se conheciam havia 20 minutos. Embora ele ainda não conhecesse a história de Anthony, Peter se sentiu instantaneamente conectado a ele. Os dois passaram o fim de semana cozinhando e conversando.

Foram ao shopping para que Peter pudesse comprar algumas roupas para ele. Também falaram sobre quais comidas e filmes mais gostavam.

“Estávamos os dois tentando ver como nos adequaríamos um ao outro.”

Na segunda-feira, quando a assistente social veio, Peter soube da história do menino.

Anthony foi colocado à adoção aos dois anos de idade e adotado por uma família quando tinha quatro.

Mas agora, sete anos depois, os pais adotivos de Anthony o abandonaram do lado de fora de um hospital. Assim que foram localizados, disseram à polícia que não podiam mais cuidar dele.

“Não pude acreditar”, diz Peter, “Eles nunca se despediram, nunca deram um motivo e nunca voltaram. Isso me matou. Como as pessoas podem fazer isso?”

“A vida de Anthony me levou de volta à minha infância”.

“Esse garoto era como eu aos 10 anos nas ruas de Kampala, sem ter para onde ir. Então, me virei para a assistente social e disse: ‘Quer saber? Só preciso da papelada para ele ir à escola e vamos ficar bem.'”

Peter olhou para Anthony e percebeu que o menino talvez tivesse uma visão que ele não teve.

“Ele me chamou de ‘pai’ imediatamente. Esse garoto sabia que eu seria seu pai.”


Abraçando a cultura africana

“Acho que nós dois percebemos imediatamente que ele ficaria comigo permanentemente”, diz Peter. Dentro de um ano, Peter adotou formalmente Anthony.

O vínculo entre Peter e Anthony passou a crescer. Anthony queria ouvir tudo sobre a vida de seu pai em Uganda, porque agora, diz Peter, isso também fazia parte de sua história. Anthony ajudava Peter a preparar pratos de Uganda como o katogo, um café da manhã com mandioca picada misturada com feijão.

Na escola, Anthony gostava de apresentar Peter aos amigos.

“Este é meu pai”, ele dizia, gostando dos olhares às vezes confusos que vinham de seus colegas.

Chamando a polícia

Mas nem tudo foi um mar de rosas. Em um feriado, a segurança do aeroporto parou Anthony para perguntar onde seus pais estavam.

“Este é meu pai,” Anthony apontou para Peter. Enquanto o segurança fazia a verificação de antecedentes criminais de Peter, Anthony ficava cada vez mais frustrado com o que considerava um ato de racismo aberto, mas Peter o acalmou.

“Sou seu pai e amo você”, disse Peter a Anthony, que agora tinha 13 anos, “mas as pessoas que se parecem comigo nem sempre são bem tratadas. Seu trabalho é não ficar com raiva das pessoas que tratam assim, seu trabalho é garantir que você trate as pessoas que se parecem comigo com honra”.

Na primavera deste ano, a agência de adoção ligou para Peter para ver se ele poderia cuidar temporariamente de um menino de sete anos chamado Johnny *, cuja família estava com problemas financeiros devido à pandemia de coronavírus. Johnny se adaptou tão bem quanto Anthony e, vendo como seu irmão adotivo se dirigia a Peter, ele também passou a chamá-lo de pai.

Johnny, com seu cabelo loiro liso e estrutura pequena e pálida, atraía ainda mais olhares das pessoas quando estava com Peter.

Motivo pelo qual Peter não ficou surpreso quando a mulher que os viu saindo do restaurante chamou a polícia. Os policiais levaram apenas alguns minutos para verificar se Peter era o guardião de Johnny, mas o fato deixou o menino abalado. Foi uma discussão que Peter já tivera com seu filho mais velho.

Após o assassinato de George Floyd, um homem negro de 40 anos imobilizado e sufocado por um policial branco, em maio, Peter conversou com Anthony sobre o movimento Black Lives Matter. Foi uma conversa emotiva em que Peter pediu ao menino que se certificasse de que estava com seu celular pronto caso a polícia os parasse.

“Como um homem negro, tenho 10 segundos para explicar quem sou à polícia antes que tudo termine em tragédia”, diz Peter.

“Eu sempre digo a Anthony: ‘Se a polícia me parar, por favor, pegue o telefone e grave imediatamente.’ Porque eu sei que ele é minha única testemunha, sabe? E eu tenho 10 segundos para salvar minha vida. ”

“Acho que ele entendeu. Ele sabe que, porque estamos nos Estados Unidos e eu pareço diferente dele, vou ser tratado de maneira diferente”.

“Esse tipo de tensão e suspeita não é algo que um pai branco enfrenta quando adota uma criança negra.”

Adoção inter-racial

Os procedimentos de adoção variam de país para país e não há estatísticas oficiais sobre adoção inter-racial global – embora, segundo a plataforma online de adoção Rainbow Kids, 73% das crianças não-brancas adotadas por meio de adoção internacional são acolhidas por famílias caucasianas.

De acordo com Nicholas Zill, psicólogo e pesquisador sênior do Instituto para Estudos da Família, as famílias brancas nos Estados Unidos têm muito mais probabilidade do que as famílias negras de adotar pessoas de outras raças.

“Os últimos dados que temos são de 2016. Naquele ano, apenas 1% das famílias negras adotaram crianças brancas e 92% adotaram crianças negras. As famílias brancas adotaram 5% crianças negras e 11% crianças multirraciais”, diz ele à BBC, “Mesmo hoje, ainda é muito raro ver famílias negras adotando crianças brancas, muito mais do que o contrário, e isso pode ter a ver com preconceitos culturais que ainda existem dentro do sistema de adoção dos EUA.”

No ano passado, no entanto, um casal britânico, Sandeep e Reena Mander, ganhou cerca de £120 mil (cerca de R$ 840 mil) de indenização depois que um juiz decidiu que eles foram discriminados por não terem permissão para adotar uma criança de origem não asiática.

O casal disse que foi informado pelo serviço de adoção local para pesquisar a adoção de uma criança da Índia ou do Paquistão, e processou o Estado por discriminação, em um caso apoiado pela Comissão de Igualdade e Direitos Humanos.

“A lei no Reino Unido é muito clara: a raça não deve ser um fator decisivo na adoção de crianças”, diz Nick Hodson, sócio do escritório de advocacia de família McAlister no Reino Unido, que cuida de casos relacionados a direito das crianças há mais de 20 anos.

Ele acrescenta que, embora não possa comentar sobre casos individuais, a lei britânica atual, após sua última revisão, impede que a raça seja considerada um fator principal no processo de adoção. Agora, acrescenta, o que mais importa são as necessidades individuais da criança.

Fonte: Geledes

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