No início do mês de fevereiro, faleceu o famoso crítico literário, filósofo, ensaísta, novelista e educador franco-americano George Steiner (1929-2020).
Vez ou outra, Steiner privilegiava também a nós, musicófilos, expressando a sua paixão pela música. Em 2010, à ocasião das NEXUS Conferences, no Concertgebouw de Amsterdã (sede da famosa orquestra holandesa), Steiner palestrava sobre o tema: “What’s Next for the West?” (“O Que Vem a Seguir para o Ocidente?”), e encerrou a sua apresentação com um belo discurso sobre o mistério da música. Que um dos maiores críticos literários da atualidade tenha dito que a música lhe parece superior à literatura como “força de uma possibilidade transcendente” não é coisa que Euterpe poderia ignorar e, há algum tempo, postamos uma bela montagem deste vídeo (infelizmente não mais disponível) em nossa página no Facebook.
Compartilhamos agora o vídeo original, portanto, como homenagem ao mestre, com uma tradução logo abaixo por nossa cortesia.
Música, o mistério da música. O que Nietzsche chamou tão corretamente de o mysterium tremendum. O mysterium tremendum do último ato de Tristão [e Isolda], e tantos outros casos: pode ser uma Étude de Chopin, uma frase ou mais em Mozart, que nos fala que há algo além, que paradoxalmente pertence a nós profundamente, mas que de algum modo toca em um significado universal de impossibilidade. Que não somos apenas um conjunto fisiológico eletro-químico e neural, que há mais na consciência do que fiação eletrônica. A música para mim parece, mais do que a literatura, a grande força, a esperança de uma possibilidade transcendente.
Essa é a razão pela qual é vitalmente importante que nossas crianças tenham acesso, desde a mais tenra idade, a boa música. Eu soo como um velho chato reacionário, e não me desculpo por isso, mas nada me aterroriza mais do que a exclusão de música séria das vidas de milhões de crianças pequenas: a substituição de muitas formas de música pelo horror de barulho ordenado, pelo barbarismo de barulho ordenado, a derrocada ensurdecedora de não deixar uma criança encontrar boa música, de não lhe ensinar um instrumento, se possível, de não lhe ensinar a cantar, se possível.
Houve um tempo na vida diária, no século XIX e começo do século XX na Europa, em que apresentações amadoras eram uma realização natural de pessoas educadas. Não precisava ser muito bom, não precisava ser muito grande, mas era parte de se reunir e estar em contato com aquele mysterium tremendum do transcendental. Se levarem isso embora de nós, estaremos realmente em apuros. Não acho que conseguirão. Durante os piores períodos de despotismo e tirania, pessoas podiam aprender partituras de cor. Mesmo quando a música era proibida, ela ainda podia ser confiada à memória. A música é algo muito difícil de se censurar – sim, ela pode ser interrompida, ela pode ser suprimida, músicos podem ser caçados, e perseguidos, e torturados. Mas, ainda, ela está lá, e sempre o seu estranho mistério permanece.
O Concertgebouw é um lugar para se lembrar dos últimos concertos daquele gênio muito ambíguo, [Wilhelm] Furtwängler. A luz caía regularmente e temos gravações em que você ouve o tiroteio da artilharia russa se aproximando de Berlim. Em uma gravação de Beethoven e uma de Haydn daquele tempo, tocados no escuro, as pessoas na plateia, sabendo que estavam condenadas a um destino horrível…, e não há gravações ou interpretações, que eu conheça, maiores daquela música. Há algo na música que é muito mais forte mesmo nas nossas maiores apresentações, a música em certo sentido nos toca, somos tocados por ela. Isso não significa que haverá consenso sobre os seus significados, não significa que não continuaremos debatendo ferozmente sobre a escolha de um andamento lento de uma sinfonia de Bruckner para marcar a morte do Führer. Temos uma gravação e ela também é fantástica, assim como outras gravações excelentes.
Por muitos e muitos anos, eu tentava entender por que a música não diz “não” em certas ocasiões. Dachau, como vocês sabem, fica nos arredores de Munique, muito próxima, e os trens com as pessoas morrendo dentro deles de sede e de fome a caminho para Dachau costumavam passar não muito longe da sua grande sala de concerto. Nessa sala, [Walter] Gieseking apresentava o seu ciclo de Debussy, e bons críticos dizem que nunca houve uma interpretação superior de Debussy. E a minha pergunta era, para estudantes alemães – e comecei a perguntá-la imediatamente após a Guerra –, para crianças de escolas alemãs, por que a música não disse “não”? – o que é uma pergunta sem sentido. Mas é uma pergunta sem sentido? Ainda não sei a resposta. Poderia a música ter se recusado a ser tocada? É claro que poderia. Poderia ser tocada de modo errado pelo menos? Poderia Gieseking tocar notas erradas pelo menos? Não tocou.
Então o mistério permanece, mas também permanece a forte e urgente esperança de que não deixaremos que nos levem embora essa experiência sobrepujante, esse privilégio de existir, que é a grande música.
Obrigado.
Fonte: Blog Euterpe
Nenhum comentário:
Postar um comentário