Advogado
que trabalhou no Ministério da Justiça durante os governos petistas explica que
as acusações de Moro indicam que o presidente quer romper com construção
institucional
“O presidente me disse mais
de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia
Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente
não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação”.
A fala de Sergio Moro, ex-juiz e, desde
a última sexta-feira, ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública, jogou
luz sobre as suspeitas de que o
presidente Jair
Bolsonaro deseja interferir na Polícia Federal para proteger seus
filhos de investigações. Essas e outras acusações agora
são alvo de inquérito aberto pelo ministro
decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, à pedido da
Procuradoria-Geral da República. Mas isso não impediu que, nesta terça-feira, o Diário Oficial da União trouxesse o nome de
Alexandre Ramagem, próximo à família
Bolsonaro, para ocupar a chefia do órgão de investigação.
O advogado Pedro
Abromovay, que conversou por telefone com o EL PAÍS ainda na sexta-feira,
acredita que, mais do que proteger os filhos de inquéritos, Bolsonaro pode usar
a Polícia Federal “como polícia política, de perseguição de adversários e de
proteção dos amigos à mando do presidente”.
Um indício disso
está em uma das mensagens de WhatsApp entregues por Moro ao Jornal Nacional de
sexta-feira. Nela, o presidente pressionava o então ministro a retirar Maurício
Valeixo da direção-geral da Polícia Federal —pedido que vinha se repetindo
desde meados do ano passado. Após compartilhar o link de uma notícia que dizia
“PF na cola de 10 a 12 deputados bolsonaristas”, Bolsonaro escreveu: “Mais um
motivo para a troca [de Valeixo]”.
A pressão surtiu efeito na sexta-feira—ainda
que em forma de uma tempestade não esperada pelo presidente— com a exoneração
de Valeixo sem o consentimento do então ministro, que afirmou ter sido
surpreendido pela publicação da saída do chefe da PF no Diário Oficial. Uma reportagem publicada pelo Intercept na
noite desta segunda-feira indica que os procuradores da
força-tarefa Lava Jato acreditavam que Ramadagem, o nome confirmado para a vaga
nesta terça-feira, era corrupto, ligado ao PT e tentava “melar” a operação.
Para assumir o lugar de Moro, Bolsonaro confirmou André
Mendonça, que atuava como advogado-geral da União.
Abromovay, que foi
assessor especial e secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da
Justiça, além de ter ocupado a Secretaria Nacional de Justiça do Governo
Federal, acredita que a demissão de Moro e o controle que Bolsonaro
provavelmente terá sobre a PF muitas dimensões simbólicas. “A que mais me
preocupa é que, do ponto de vista histórico, vínhamos num processo dos últimos
20 anos de consolidação da Constituição de 88, que foi uma Carta contra o autoritarismo e os
desmandos do Executivo”, explica.
Abramovay argumenta
que esse processo de consolidação foi cheio “idas e vindas” e “tensões”. Mesmo
sob Moro, havia suspeitas de interferência política na PF. Em junho do ano
passado, por exemplo, Bolsonaro confessou em entrevista
coletiva no Japão que o então ministro havia dado acesso
privilegiado ao inquérito sigiloso sobre as candidaturas laranja do PSL. No mês
seguinte, depois de a PF prender quatro suspeitos de roubar o conteúdo dos
telefones de autoridades e repassá-lo ao portal The Intercept, que
iniciou a série de reportagens da Vaza Jato,
Moro —principal afetado pelo vazamento— prometeu destruir as supostas mensagens
apreendidas com os detidos —algo que só competia ao juiz do caso, que corria em
sigilo, decidir. O episódio acabou mais uma vez evidenciando uma possível ingerência política na
PF.
Porém, a vitória de
Bolsonaro nessa queda de braço com Moro marca
“o fim dessas tensões e a consolidação do lado do autoritarismo, dos desmandos
e da corrupção”. Isso significa, prossegue Abramovay, que “Bolsonaro terá um
diretor-geral da PF a quem, como disse para Moro, poderá ligar e pedir
relatório de inteligência”. Ou seja, “a PF vai voltar a ser o que foi antes da
Constituição”, quando era usada para fins políticos. “Acho que até o momento
tivemos algum nível de autonomia que foi preservada. Mas agora é uma escala
diferente, com a corporação sob influência direta do presidente. Hoje se
inaugura um capítulo novo”.
Para o jurista,
“sem um pedaço um pouco mais moderado de sua coalizão, a única alternativa de Bolsonaro
será radicalizar”, o que pode “concretizar a partir de agora” os
temores de um novo período autoritário para o Brasil. Assim, as acusações de
Moro, que envolvem tanto crimes comuns como crimes de responsabilidade, tornam “o impeachment um debate
real”. Abramovay acredita que apenas duas opções estão sobre a mesa:
“Ou Bolsonaro sofre impeachment ou, se ele colocar alguém na PF nessas
condições e a sociedade aceitar, a gente enterrou 20 anos de consolidação da
Constituição de 88 nesse aspecto de controle do Executivo e de luta contra o
autoritarismo e a corrupção”.
Um dos cenários mais preocupantes,
explica o advogado, é o de que a base mais fiel e radical do bolsonarismo,
composta por policiais militares e oficiais do Exército, tentem fazer uma
ruptura institucional. Uma revolta similar à da história recente da Bolívia,
que viu o ex-presidente Evo Morales ser retirado à força do
poder após suspeitas de fraude nas eleições. “O processo de radicalização que
acho que vamos entrar agora é imprevisível como desfecho. Quem está tranquilo
com ele não está olhando para o resto do mundo. Não existe lugar onde um
processo de radicalização tenha terminado bem”. Caberá aos militares arbitrar o
desfecho desse processo, aposta Abramovay. “Eles representam hoje na coalizão o
que o PMDB representava na coalizão de Dilma Rousseff. Não acho que vão sair do
Governo imediatamente, mas eu não confiaria num aliado que é o principal
beneficiário de minha queda”.
Sobre sua
experiência no Ministério da Justiça, afirma que as interferências denunciadas por Moro
eram algo impensável. "Saber o que estava acontecendo,
interferir, demitir superintendente... Essa cultura tinha mudado nos últimos
anos”, argumenta Abramovay, que faz referência à independência do Ministério Público
e da Polícia Federal como marco da consolidação da Constituição de 88. “Sempre
se dizia que era que era algo natural, e estamos vendo que nada é natural e
pouco a pouco está sendo desconstruído”, completa.
O próprio
ex-juiz afirmou durante seu pronunciamento
de sexta-feira que, durante a Lava Jato, os governos petistas
respeitaram essa autonomia dos órgãos de controle."O Governo na época tinha inúmeros defeitos, crimes gigantescos, e foi fundamental a manutenção da autonomia da PF, que permitiu que resultados fossem alcançados”, disse. “Imagina se durante a própria Lava Jato o ministro, a então presidente Dilma e o ex-presidente Luiz [Inácio Lula da Silva] ficassem ligando para as autoridades para obter informações?”, indagou.
Fonte: El Pais
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