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terça-feira, 28 de abril de 2020

Sob Bolsonaro, PF vai voltar a ser “polícia de perseguição de adversários”

Advogado que trabalhou no Ministério da Justiça durante os governos petistas explica que as acusações de Moro indicam que o presidente quer romper com construção institucional

“O presidente me disse mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação”.
“O presidente me disse mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação”. 
A fala de Sergio Moro, ex-juiz e, desde a última sexta-feira, ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública, jogou luz sobre as suspeitas de que o presidente Jair Bolsonaro deseja interferir na Polícia Federal para proteger seus filhos de investigações. Essas e outras acusações agora são alvo de inquérito aberto pelo ministro decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, à pedido da Procuradoria-Geral da República. Mas isso não impediu que, nesta terça-feira, o Diário Oficial da União trouxesse o nome de Alexandre Ramagem, próximo à família Bolsonaro, para ocupar a chefia do órgão de investigação.

O advogado Pedro Abromovay, que conversou por telefone com o EL PAÍS ainda na sexta-feira, acredita que, mais do que proteger os filhos de inquéritos, Bolsonaro pode usar a Polícia Federal “como polícia política, de perseguição de adversários e de proteção dos amigos à mando do presidente”.


Um indício disso está em uma das mensagens de WhatsApp entregues por Moro ao Jornal Nacional de sexta-feira. Nela, o presidente pressionava o então ministro a retirar Maurício Valeixo da direção-geral da Polícia Federal —pedido que vinha se repetindo desde meados do ano passado. Após compartilhar o link de uma notícia que dizia “PF na cola de 10 a 12 deputados bolsonaristas”, Bolsonaro escreveu: “Mais um motivo para a troca [de Valeixo]”. 

A pressão surtiu efeito na sexta-feira—ainda que em forma de uma tempestade não esperada pelo presidente— com a exoneração de Valeixo sem o consentimento do então ministro, que afirmou ter sido surpreendido pela publicação da saída do chefe da PF no Diário Oficial. Uma reportagem publicada pelo Intercept na noite desta segunda-feira indica que os procuradores da força-tarefa Lava Jato acreditavam que Ramadagem, o nome confirmado para a vaga nesta terça-feira, era corrupto, ligado ao PT e tentava “melar” a operação. Para assumir o lugar de Moro, Bolsonaro confirmou André Mendonça, que atuava como advogado-geral da União.


Abromovay, que foi assessor especial e secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, além de ter ocupado a Secretaria Nacional de Justiça do Governo Federal, acredita que a demissão de Moro e o controle que Bolsonaro provavelmente terá sobre a PF muitas dimensões simbólicas. “A que mais me preocupa é que, do ponto de vista histórico, vínhamos num processo dos últimos 20 anos de consolidação da Constituição de 88, que foi uma Carta contra o autoritarismo e os desmandos do Executivo”, explica.


Abramovay argumenta que esse processo de consolidação foi cheio “idas e vindas” e “tensões”. Mesmo sob Moro, havia suspeitas de interferência política na PF. Em junho do ano passado, por exemplo, Bolsonaro confessou em entrevista coletiva no Japão que o então ministro havia dado acesso privilegiado ao inquérito sigiloso sobre as candidaturas laranja do PSL. No mês seguinte, depois de a PF prender quatro suspeitos de roubar o conteúdo dos telefones de autoridades e repassá-lo ao portal The Intercept, que iniciou a série de reportagens da Vaza Jato, Moro —principal afetado pelo vazamento— prometeu destruir as supostas mensagens apreendidas com os detidos —algo que só competia ao juiz do caso, que corria em sigilo, decidir. O episódio acabou mais uma vez evidenciando uma possível ingerência política na PF.


Porém, a vitória de Bolsonaro nessa queda de braço com Moro marca “o fim dessas tensões e a consolidação do lado do autoritarismo, dos desmandos e da corrupção”. Isso significa, prossegue Abramovay, que “Bolsonaro terá um diretor-geral da PF a quem, como disse para Moro, poderá ligar e pedir relatório de inteligência”. Ou seja, “a PF vai voltar a ser o que foi antes da Constituição”, quando era usada para fins políticos. “Acho que até o momento tivemos algum nível de autonomia que foi preservada. Mas agora é uma escala diferente, com a corporação sob influência direta do presidente. Hoje se inaugura um capítulo novo”.


Para o jurista, “sem um pedaço um pouco mais moderado de sua coalizão, a única alternativa de Bolsonaro será radicalizar”, o que pode “concretizar a partir de agora” os temores de um novo período autoritário para o Brasil. Assim, as acusações de Moro, que envolvem tanto crimes comuns como crimes de responsabilidade, tornam “o impeachment um debate real”. Abramovay acredita que apenas duas opções estão sobre a mesa: “Ou Bolsonaro sofre impeachment ou, se ele colocar alguém na PF nessas condições e a sociedade aceitar, a gente enterrou 20 anos de consolidação da Constituição de 88 nesse aspecto de controle do Executivo e de luta contra o autoritarismo e a corrupção”.


Um dos cenários mais preocupantes, explica o advogado, é o de que a base mais fiel e radical do bolsonarismo, composta por policiais militares e oficiais do Exército, tentem fazer uma ruptura institucional. Uma revolta similar à da história recente da Bolívia, que viu o ex-presidente Evo Morales ser retirado à força do poder após suspeitas de fraude nas eleições. “O processo de radicalização que acho que vamos entrar agora é imprevisível como desfecho. Quem está tranquilo com ele não está olhando para o resto do mundo. Não existe lugar onde um processo de radicalização tenha terminado bem”. Caberá aos militares arbitrar o desfecho desse processo, aposta Abramovay. “Eles representam hoje na coalizão o que o PMDB representava na coalizão de Dilma Rousseff. Não acho que vão sair do Governo imediatamente, mas eu não confiaria num aliado que é o principal beneficiário de minha queda”.


Sobre sua experiência no Ministério da Justiça, afirma que as interferências denunciadas por Moro eram algo impensável. "Saber o que estava acontecendo, interferir, demitir superintendente... Essa cultura tinha mudado nos últimos anos”, argumenta Abramovay, que faz referência à independência do Ministério Público e da Polícia Federal como marco da consolidação da Constituição de 88. “Sempre se dizia que era que era algo natural, e estamos vendo que nada é natural e pouco a pouco está sendo desconstruído”, completa.
O próprio ex-juiz afirmou durante seu pronunciamento de sexta-feira que, durante a Lava Jato, os governos petistas respeitaram essa autonomia dos órgãos de controle.

 "O Governo na época tinha inúmeros defeitos, crimes gigantescos, e foi fundamental a manutenção da autonomia da PF, que permitiu que resultados fossem alcançados”, disse. “Imagina se durante a própria Lava Jato o ministro, a então presidente Dilma e o ex-presidente Luiz [Inácio Lula da Silva] ficassem ligando para as autoridades para obter informações?”, indagou. 

Fonte: El Pais

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