Cité Soleil, uma região empobrecida da capital haitiana, Porto Príncipe, é geralmente associada ao desespero urbano, pobreza, ilegalidade e caos.
Conhecida como Site Solèy em crioulo haitiano, a vasta área concentra as dificuldades que se assolaram o Haiti como um todo nas últimas três décadas: analfabetismo, desemprego, infraestrutura decadente, falta de saneamento, políticas públicas ineficientes e violência de gangues.
Depois do terremoto devastador de 2010, uma geração de jovens ativistas, a maioria nascida em Cité Soleil, deu início a um movimento social para desafiar estas narrativas ultrapassadas de derrotismo e caos.
O grupo, Konbit Soley Leve (Trabalhando Juntos, Soleil se Levantará), tinha o objetivo de aproveitar o momento pós-terremoto e o discurso nacional de reconstrução para reconstruir e transformar Cité Soleil.
O movimento levou à criação da Konbit Bibliyotek Site Soley (KBSS), um projeto de biblioteca comunitária iniciado em novembro de 2016. A biblioteca está reescrevendo e renovando antigas narrativas sobre Cité Soleil, de marginal e instável para comunitária e enérgica – como um bom exemplo de como o Haiti pode se reconstruir.
O Konbit Soley Leve uniu-se ao Flanm'Art Club Haiti, um grupo cultural de jovens em Cité Soleil que procurou o Konbit com a esperança de realizar o sonho de uma biblioteca. Eles “queriam um espaço para reunir estudantes, pesquisar, ler, escrever e discutir sobre livros”, segundo o site da biblioteca.
Em 2017 – depois de apenas sete semanas – um comitê organizador da biblioteca com 12 pessoas coletou 500.000 gourdes haitianos (cerca de US$ 5.000) junto à comunidade.
O forte apoio da comunidade levou os membros da KBSS a elaborar um projeto ainda mais ambicioso.
Eles escolheram Place Fierte, um parque público em Cité Soleil, como local ideal para o projeto, e o comitê contatou o prefeito, vários parlamentares e o Ministério de Segurança Nacional, que autorizaram legalmente a construção da biblioteca no local escolhido.
A arquiteta nascida em Cité Soleil, Jennifer Andou, projetou o prédio em 2017, enquanto a Miyamoto Relief, uma instituição sem fins lucrativos de engenharia de desastres, está fornecendo os conhecimentos necessários para tornar a construção resistente a terremotos, e também instalando painéis solares e sistemas de aproveitamento de água.
A Geotechsol, uma empresa especializada em avaliação de solo, avalizou a segurança do solo para o início da construção em 2017 e as fundações da biblioteca foram lançadas em 30 de janeiro de 2018. A construtora ADCOSA está atualmente executando o projeto.
Mudando a narrativa
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Originalmente construída nos anos 1950, a Cité Soleil foi chamada Cité Simone em homenagem à esposa do presidente François Duvalier. Quando um êxodo em massa de haitianos abandonou a zona rural e se mudou para a região em busca de melhores empregos, as habitações de baixo custo da Cité Simone não foram capazes de absorver a demanda. Nos anos 1990, houve uma redução nos postos de trabalho nas fábricas e barracos começaram a surgir por toda a parte.
O governo não mostrou interesse em construir infraestrutura ou fornecer serviços sociais em Cité Soleil. Com aproximadamente 500.000 pessoas vivendo em total desespero socioeconômico, em uma área de oito milhas quadradas (21 quilômetros quadrados), Cité Soleil degenerou-se em terreno fértil para violência política e guerra de gangues.
Em 2004, depois do afastamento do presidente Jean-Bertrand Aristide, o governo, com apoio das forças de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas, tentou enfrentar as gangues, o que resultou na morte de muitos civis. O número de mortes nunca foi confirmado, mas foi relatado que durante uma operação de sete horas na Cité Soleil, em julho de 2005, as forças da ONU utilizaram 22.000 balas.
Cerca de duas décadas depois, Cité Soleil ainda é sinônimo de crime e violência no imaginário coletivo haitiano, uma impressão que foi solidificada pelos efeitos devastadores do terremoto de 2010 que atingiu o país.
Mas os projetos da Konbit Soley Leve, como a biblioteca comunitária, contribuem para um discurso mais amplo de construção nacional para transformar as percepções mais comuns sobre a região.
Em entrevista pelo telefone, Louino Robillard, membro fundador da Konbit Soley Leve e coordenador-chefe do projeto da biblioteca, contou à Global Voices que a ajuda pós-terremoto na região não era sensível aos conflitos ou desafios de desenvolvimento.
Iniciativas de trabalho remunerado e outros projetos lucrativos eram controlados por líderes de gangues. Ativistas e outros agentes de desenvolvimento da comunidade eram excluídos. No fim, estes projetos geraram ainda mais violência e desespero.
Em 2014, cansados desse círculo vicioso, Robillard e outros ativistas lançaram o Site Solèy Peace Prize, “uma iniciativa anual para homenagear jovens comuns que estão fazendo coisas extraordinárias para tornar a vida melhor para seus vizinhos em Cité Soleil”, segundo Robillard.
O projeto da biblioteca foi uma surpresa para Robillard, principalmente por conta das necessidades imediatas básicas, como comida e abrigo, que têm sido um desafio enorme em Citè Soleil.
Mas a biblioteca KBSS prospera por ser a antítese da maioria dos projetos de desenvolvimento no Haiti, que são comumente contaminados pela corrupção e falta de transparência. A biblioteca tem um modelo de financiamento diferente, com 80% dos recursos e dinheiro arrecadados diretamente junto à comunidade.
Toda doação é divulgada em relatórios semanais publicados tanto na página do Facebook da KBSS como na conta do Twitter.
Rapò 153 semèn @kbsshaiti pic.twitter.com/eX3AIJ8dmD— Konbit Bibliyotèk Site Solèy (@kbsshaiti) January 5, 2020
Robillard disse que o objetivo é ter 10.000 doadores para o projeto, com a mensagem subjacente de que se 10.000 pessoas podem juntar as mãos para construir uma biblioteca sustentável, inovadora e à prova de desastres em Cité Soleil, 11 milhões de pessoas podem se unir para reconstruir uma nação.
Em junho de 2019, a KBSS convidou o famoso escritor haitiano Dany Laferrière para visitar e colocar um tijolo na construção. Laferriere é autor do livro “Tout bouge autour de moi”, ou “Tudo se move ao meu redor”, escrito logo após o terremoto. Sua visita demonstrou o compromisso da biblioteca em tornar o Haiti e o resto do mundo um lugar de esperança, criatividade e desenvolvimento:
Apesar do apoio da Miyamoto Relief e de empresas privadas como CEMEX, E-Power ou SOGENER, a KBSS tem intenção de continuar como um projeto comunitário.
Haitianos por todo o Haiti e no exterior – assim como não haitianos – estão abraçando o projeto e querem ajudar as pessoas de Cité Soleil a alcançar seu sonho de construir a maior biblioteca moderna do Haiti.
Mais do que isso, uma década depois do terremoto, a KBSS quer ser vista como um modelo alternativo de reconstrução, desenvolvimento e sustentabilidade no Haiti, fazendo sua parte para refazer um importante discurso que nunca realmente se afirmou.
Fonte: Global Voices
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