Se ele não tivesse topado alugar suas terras para os "hippies" que o procuraram, o festival nunca teria acontecido
Vocês conseguem
imaginar Ronaldo Caiado ou outro líder ruralista alugando suas terras para que,
durante três dias, milhares de jovens acampem nelas para ouvir os melhores
roqueiros do mundo, além de viajar muuuuito, fumando maconha e tomando LSD?
Nestes tempos em que os
agropecuaristas brasileiros (os grandes, não os agricultores familiares) se
unem à extrema direita em um movimento suicida, porque
será um tiro no pé, recordemos Max Yasgur, o fazendeiro que cedeu
600 acres de terra para que o festival de Woodstock se realizasse, em agosto de
1969.
Faltava apenas duas semanas
para Woodstock acontecer e todos os fazendeiros do condado de Sullivan já
haviam se recusado a hospedar o festival, mesmo que os jovens organizadores
oferecessem dinheiro –algo em torno de 75 mil dólares à época. A própria
cidade de Woodstock se negou.
Yasgur, então com 49 anos, era um dos maiores proprietários
de terra e o maior produtor de laticínios da região, com 650 vacas cujo leite
era pasteurizado na própria fazenda. Quando pôs os olhos nos campos verdes
do fazendeiro, em Bethel, o lendário produtor Michael Lang percebeu ter
encontrado o local ideal, porque o terreno, apesar de plano, terminava em uma
depressão, formando um anfiteatro natural. O nome foi mantido, mas o festival
ocorreu em Bethel, não em Woodstock, a 72 quilômetros dali.
Lang e Artie Kornfeld, com 25 e 27 anos, respectivamente,
eram as duas principais cabeças por trás de Woodstock, ao lado dos amigos John
P. Robert, 24, e Joel Rosenman, 27. Quatro garotos realizaram o maior festival
de música de todos os tempos. No documentário Woodstock, de 1970, é
possível ver Lang para lá e para cá de colete em sua moto, supervisionando tudo.
A decisão do fazendeiro de alugar as terras para o festival
só se reforçou ao ver um movimento de boicote a seus produtos se formando entre
os habitantes de Bethel. “Não compre o leite de Yasgur, ele é amigo dos
hippies”, diziam cartazes espalhados pela cidade. “Quando Max viu aquilo, eu
sabia que ele ia deixá-los fazer seu festival. Você não fazia esse tipo de
coisa com Max”, contou a mulher dele, Miriam, ao New York Times em seu obituário, em 1973. Durante o festival, o jornal havia publicado um
perfil de Yasgur intitulado, bem apropriadamente, Um
fazendeiro com alma..
Ao contrário do
que se possa imaginar, Max Yasgur era um
conservador, politicamente falando. Tanto é que foi favorável à
guerra do Vietnã, que dividia os EUA naquele momento de forma muito mais feroz
do que acontece com Donald Trump hoje. A questão é que, para Yasgur, a
liberdade de expressão era irrenunciável, “ainda que esta liberdade viesse de
pessoas cujos estilos de vida e crenças fossem muito diferentes das suas”. Um
libertário stricto sensu.
Quando alguns vizinhos
começaram a vender água para os jovens no festival, ele ficou tão bravo que
colocou um aviso diante da cancela da fazenda: “Água grátis”. “Como é que
alguém pode pedir dinheiro por água?”, disse. Ah, se o bom fazendeiro tivesse
sobrevivido para ver que, 50 anos depois, a água potável se
tornou um negócio bilionário…
Os problemas de
Yasgur com os vizinhos não acabaram depois do festival. Ele se tornou uma
espécie de persona non grata na cidade de Bethel. Alguns comerciantes
continuavam a se recusar a atendê-lo. Os danos às propriedades não foram
pequenos, com o pisoteio, a lama e a insuficiência de banheiros para atender à
multidão; os
produtores foram processados pelos fazendeiros pelos danos e
até pela recusa das vacas de um dos proprietários em produzir leite durante o
festival. O próprio Yasgur foi acionado por um casal de fazendeiros vizinhos
porque um grupo de jovens acampou em sua propriedade sem autorização.
O fazendeiro acabou vendendo
a propriedade e se mudando com a mulher e os dois filhos para a Florida em
1971; morreria de ataque cardíaco apenas dois anos depois, em 1973, aos 54
anos. Talvez fazendeiros com alma morram cedo… No fim de semana, quando o
festival completou 50 anos, nostálgicos
acamparam no lugar onde ficava a fazenda em Bethel.
Mas a grande
recompensa que Max Yasgur recebeu foi ainda em vida: diante da multidão de meio
milhão de jovens cabeludos, aquele fazendeiro careta e que gostava de fumar
cachimbo, entrando na meia idade, foi tão ovacionado quanto Jimi Hendrix, Janis
Joplin, Joe Cocker ou Joan Baez.
“Sou um fazendeiro… Não sei
como falar para 20 pessoas ao mesmo tempo, imagina para uma multidão como esta.
Mas eu acho que vocês provaram algo ao mundo. Não somente à cidade de Bethel,
ou ao condado de Sullivan, ou ao Estado de Nova York, vocês provaram algo ao
mundo. Este é o maior grupo de pessoas reunidos em um só lugar que já
aconteceu. Não tínhamos nenhuma ideia de que viria um grupo desse tamanho, e
por causa disso vocês tiveram alguns inconvenientes, como água, comida e outras
coisas. Seus produtores fizeram um esforço enorme para que vocês fossem bem
cuidados, então eles merecem um voto de agradecimento. Mas acima de tudo, a
coisa mais importante que vocês provaram ao mundo é que meio milhão de
garotos –eu os chamo de garotos porque tenho filhos que são mais velhos do
que vocês–, meio milhão de garotos podem estar juntos e ter três dias de
diversão e música e nada além de diversão e música. Que Deus os abençoe por
isto!”
Se foi rejeitado
pelos próprios vizinhos, Max Yasgur recebeu um carinho imenso de quem esteve no
festival. Milhares
de jovens escreveram cartaspara o fazendeiro agradecendo por ter
tido a grandeza de hospedar Woodstock. Ao explicar por que topara a empreitada,
Max respondeu: “Se nós queremos superar a distância entre as gerações, nós,
mais velhos, precisamos fazer mais”.
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