Sou surpreendido na manhã de terça-feira pelas cinzas prematuras do carnaval brasileiro. Nas redes sociais, o assunto desses dias entre os brasileiros é uma passista que desfilou grávida de sete meses.
Antes de ler os comentários, só pela foto, achei o máximo. Eu, com minha obesidade indisfarçável, sofro para subir três andares de escada, e essa moça consegue atravessar uma avenida grávida e sambando. Ela se chama Fabiana Vilela, trazia na barriga um menino, que se chamará Lorenzo, e foi um dos destaques da escola de samba Tom Maior, do carnaval de São Paulo. “Talvez tenha sido incômodo, certamente foi exaustivo, mas ela parece feliz, que bom pra ela”, pensou minha mente ingênua.
Mas no Brasil atual, onde não existe espaço para esse tipo de condescendência, Fabiana foi execrada. No Superior Tribunal das Redes Sociais, os juízes rugiam sua sentença como samba de uma nota só, baseado no argumento de que “é um absurdo que mulher grávida tenha privilégio de fila especial porque não pode esperar vinte minutos, mas possa desfilar sambando no carnaval”.
Eu, o inocente diante dessas mulheres grávidas mentirosas e trapaceiras, achei a ideia extremamente violenta. A primeira alusão que me veio à cabeça foi uma declaração do Bolsonaro para defender seu voto contrário ao pós-natal de seis meses, quando ele se definiu como um liberal, e que como tal precisava defender os interesses patronais, e para nenhum patrão vale a pena pagar tantos benefícios para um empregado, e que a nova lei faria das mulheres um estorvo no mercado de trabalho.
A defesa de Bolsonaro evidencia que ainda existe, em parte do empresariado brasileiro, essa ideia de que direito trabalhista é um estorvo, e uma funcionária mulher é um acúmulo de estorvos, porque se ela engravida não pode produzir e ele terá que continuar pagando. O desfile de Fabiana no Anhembi concretizou um pesadelo coletivo que atormenta a essa parte dos patrões brasileiros, e que já foi inclusive reproduzido em nossa literatura: a mulher grávida se divertindo às custas dele – aposto que alguns pensaram exatamente isso, apesar da sambista grávida não ser sua funcionária.
Podemos discutir se esse é um pensamento somente dos patrões ou dos homens em geral, o que eu acho desnecessário, já que os conceitos se igualam no fato de que a grandiosíssima maioria dos altos cargos hierárquicos, mesmo no mundo privado, são exercidos por homens. As exceções, que sim existem, ainda que não sejam poucas, confirmam a regra, mas além delas existem os milhares de comentaristas de carnaval desta semana e sua apoteose de questionamento sobre a passista da Tom Maior.
Comentaristas dizendo que mulher engravida para poder furar a fila do banco, ou para roubar seu assento no transporte público, engordam o coro dos temores empresariais, levando a mesma indignação para o lado dos trabalhadores, porque provavelmente a maioria empregados, alguns devem até ser pessoas de baixa renda, e até mesmo algumas mulheres apareceram defendendo esse pensamento.
Essas pessoas provavelmente não costumam ver mulheres grávidas, para saber que são poucas as grávidas de sete meses que exibem a mesma disposição de Fabiana. Eu lembro das dificuldades do sétimo mês de gestação da mãe do meu filho e de algumas amigas minhas, o suficiente para saber que Fabiana é uma exceção, que seria maravilhoso que fosse a regra, e quisera eu que as mulheres tivessem ainda mais benefícios trabalhistas para que pudessem ter seus filhos dessa maneira saudável – o mesmo vale para idosos e deficientes que desafiam suas dificuldades para desfrutar as coisas boas da vida.
Mas nossa sociedade parece ter desenvolvido esse individualismo escoltado pela Lei de Gérson, com uma mescla perigosa de mesquinharia e egoísmo, que vem dando fruto a expressões microfascistas que são toleradas, quando não justificadas.
Estimuladas por esse individualismo tipicamente brasileiro, algumas pessoas parecem dedicadas a viver na busca por privilégios, por vantagens exclusivas, incapazes de ver no outro um sujeito digno de direitos, menos ainda o direito a ser feliz. É tudo uma competição, na qual os direitos dos outros podem e devem ser questionados até passar dos limites da avareza humana, que é questionar o fato do outro de desfrutar dessa vida com direitos, porque a mulher grávida passou na frente da fila, então ela tem que sofrer a gravidez para ser digna desse direito, e se ela desfila no sambódromo está zombando com a cara dos outros – a família que vivia na miséria, passou anos sem ter o que comer, ganhou bolsa-família e sua obrigação é viver de arroz com feijão e mais nada, se comprar iogurte ou uma geladeira, está extrapolando seus direitos.
Isso vai além dessa educação brasileira recheada de machismo, racismo e homofobia, recebida por todos nós e difundida nas escolas, nos lares e nas ruas, ou mesmo dos rompantes de misoginia que pegaram carona nos comentários. Esse preconceito arraigado se torna apenas uma válvula de escape para o individualismo de Gérson, que vê no outro um competidor na busca por privilégios e inimigo das suas conquistas, e nos impede de desenvolver um mínimo pensamento coletivo, visando uma sociedade de bem estar para todos.
Em outros países, onde esse pensamento não se manifesta, é possível ver uma sociedade justa para patrões e empregados, homens e mulheres, e visando que a diferença entre os mais ricos e os mais pobres seja cada vez menor, mas sobretudo onde todos entendem a necessidade de defender esse princípio de equidade para que as coisas possam funcionar bem. Nós admiramos isso, chamamos esses países de exemplos de civilização, mas não reproduzimos isso, com a desculpa de que “o Brasil não tem jeito”, apesar de que muitos, principalmente os que mais possuem, não estão dispostos a mudar sua conduta para que isso seja possível.
Ainda há quem defenda a cordialidade brasileira, e provavelmente ela não desapareceu, assim como o nosso espírito comunitário ainda deve sobreviver em muitos lugares afastados das grandes metrópoles. Sentimentos que precisam ser reivindicados e redistribuídos, antes que seja tarde demais.
Fonte: Pragmatismo Político
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