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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Madalena e o papel da mulher na história ocidental

É época de Natal. Mas, também é o momento onde um imbecil sugere impunemente que há mulheres que merecem ser estupradas. Então, talvez fosse interessante relacionar as duas coisas e buscarmos analisar um mito que, ao longo dos séculos, serviu para reforçar o estereótipo do papel da mulher como portadora do pecado. Trata-se do mito de Maria Madalena, a prostituta arrependida. Cristianismo primitivo O cristianismo sempre foi marcado por intensas disputas internas, como as querelas com o nestorianismo, o monofismo, o racha com os ortodoxos, os anabatistas, a reforma protestante, etc. Mas, até o ano de 325 d.c. tais disputas internas eram acentuadas pelo fato de que não havia uma bíblia como conhecemos hoje. Embora já houvesse várias tentativas de definir quais livros deveriam ser aceitos e quais deveriam ser banidos (como o Cânone Muratori, de cerca de 170 d.c.), nenhuma delas fora definitiva. É o Concílio de Nicéia (atual Iznik, famosa pelos lindos azulejos), sob o comando direto do Imperador Constantino, que define o que hoje chamamos de Bíblia. O movimento é a tal ponto radical que o historiador italiano Ambrogio Donini chega a levantar a hipótese de que mais do que uma cristianização do Império Romano, o que se passou foi uma romanização do cristianismo. Dada a inexistência de um cânone definitivo, não é de se estranhar a intensidade e a radicalidade das divergências internas daquele momento. Logo após a morte de Jesus houve uma forte divergência entre Tiago (que, em algumas passagens dos evangelhos, é citado como sendo “irmão de Jesus” e que, ao que tudo indica, assumiu a liderança da comunidade de cristãos em Israel) e Paulo sobre a natureza do cristianismo. Para Tiago, os ensinamentos de Jesus deveriam ficar restritos aos judeus. Já Paulo defendia uma visão “católica” (universal) e a necessidade de evangelizar outros povos.
Como uma religião de homens pobres, com textos simples falando das peregrinações de um profeta pelo deserto, poderia seduzir as massas do Império Romano e, principalmente, as suas elites, que pouca ou nenhuma relação tinham com Israel e os judeus? Durante muito tempo houve uma disputa interna fortíssima sobre o papel que a filosofia (especialmente a neo-platônica) poderia cumprir no nascente cristianismo. O radical Tertuliano dizia que “credo quia absurdum” (ou seja, acredito porque é absurdo) e que a filosofia era não apenas dispensável como nefasta. Mas, a Igreja acabou apostando, como sempre, numa solução de compromisso entre filosofia e fé, expressa na obra de Santo Agostinho (que só viria a ser superada séculos depois por outra solução de compromisso, dessa vez entre a fé e o aristotelismo, na obra de Tomás de Aquino). Outra polêmica crucial no início do cristianismo se deu entre católicos e gnósticos. Estes últimos, fortemente inspirados em ritos iniciáticos neo-platônicos, defendiam uma igreja para poucos, com uma disciplina interna muito forte e graus de iniciação. Já a visão católica era favorável a amplas conversões e uma relação mais frouxa com o crente. Com o crescimento do catolicismo cristão, os gnósticos foram amplamente perseguidos. E poderíamos seguir com a menção a uma série de outros conflitos, como aquele sobre a postura que os cristãos deveriam adotar perante o Império Romano ou a posição do bispo Ário e seus muitos seguidores a cerca da natureza da trindade. Papel da mulher Mas, uma das grandes polêmicas do cristianismo primitivo ocorreu em torno do papel da mulher. Em muitas comunidades cristãs (especialmente gnósticas) as mulheres tinham papel relevante de liderança organizativa e teológica. Não havia impedimentos institucionais à mulher na hierarquia cristã.
Mas, ao longo dos anos este cenário foi mudando e a mulher passou a ser confinada a uma função cada vez mais secundária dentro do universo cristão. Muito contribuiu para isso a imagem que se criou de Maria Madalena. Embora não conste nada a esse respeito na Bíblia, Madalena passou a ser vista como uma prostituta arrependida, imagem arquetípica da mulher pecadora (sempre associada ao sexo) que acaba se arrependendo aos pés do senhor. A este respeito consta na Bíblia apenas que Jesus teria expulsado sete demônios de seu corpo. Não há nada sobre ser prostituta. E na própria Bíblia há passagens que indicam que Madalena pode ter sido algo mais. Afinal de contas, quando Jesus foi preso e todos os discípulos fugiram com medo, foi ela que ficou ao pé da cruz. Foi ela que encontrou o sepulcro aberto. Foi a ela que o anjo veio avisar da ressurreição e coube a ela informar aos discípulos. Por fim, foi uma das primeiras pessoas a ver Jesus ressuscitado. Madalena parece estar em lugares importantes demais para ser apenas uma mulher a quem Jesus teria “curado”. Nag Hammadi Em 1945, dois camponeses encontraram uma ânfora enterrada próxima ao vilarejo egípcio de Nag Hammadi, contendo vários pergaminhos escritos em copta. Eram textos que circulavam nas comunidades cristãs primitivas, mas que foram expulsos do cânone quando do Concílio de Nicéia. Entre os achados constam textos gnósticos importantíssimos, como o Evangelho da Verdade, escrito por aquele que foi provavelmente o nome mais importante do gnosticismo: Valentino.
Mas, um dos textos é central para o que discutimos aqui. Trata-se do Evangelho de Filipe, segundo qual Maria Madalena faria parte do seleto grupo de discípulos de Jesus. Mais ainda, seria a “companheira” (koinonos) de Jesus, o que provocava a irritação de outros apóstolos, notadamente Pedro. Há uma parte onde se lê que Jesus a teria beijo (…). Infelizmente, as formigas comeram o trecho que dizia exatamente onde Jesus beijou Madalena. Historiadores supõe que os pergaminhos devem ter sido enterrados por algum padre do monastério de São Pacômio (que ficava ali perto), assustado com o fato dessas leituras terem se tornado proibidas após o Concílio de Nicéia. Evangelho de Maria Madalena Em 1896, na cidade do Cairo, foi encontrado um conjunto de textos antigos, escritos em copta. Entre esses textos consta O Evangelho de Maria Madalena. De acordo com esse evangelho, Madalena não seria apenas mais um dos discípulos de Jesus. Ela seria a principal discípula de Jesus, a quem foram confiados ensinamentos esotéricos. O texto vai além e menciona uma forte rivalidade entre Madalena e Pedro. Sob certo sentido, podemos interpretar essa rivalidade como expressão daquela que opunha gnósticos à católicos. O que esses textos sugerem teria a capacidade de mudar completamente a forma como o cristianismo veio a ter entre nós. Madalena expressa uma versão iniciática e esotérica do cristianismo, bem diferente da ortodoxia que acabou triunfando com o apoio do Império Romano. Mas, expressa também um papel totalmente diferente da mulher dentro da hierarquia. Com Madalena ocupando essa posição central na comunidade de discípulos, como impedir que mulheres fossem ordenadas sacerdotisas e viessem a ser bispas e, quem sabe, papisas? Aos poucos, então, toda a máquina de propaganda da Igreja começou a construir o mito (especialmente iconográfico) de Madalena, a prostituta arrependida. De fato, não se trata aqui de discutir qual teria sido a verdade histórica. Mas, de contrapor duas versões. Uma delas está baseada em evangelhos apócrifos. A outra, contudo, não tem referências nem mesmo na Bíblia que se tornou oficial. Esta última favoreceu o surgimento de uma Igreja controlada por homens e fortemente apoiada no Império Romano. Para que essa triunfasse a outra teria que desaparecer.
É época de Natal. Mas, também é o momento onde um imbecil sugere impunemente que há mulheres que merecem ser estupradas.
Então, talvez fosse interessante relacionar as duas coisas e buscarmos analisar um mito que, ao longo dos séculos, serviu para reforçar o estereótipo do papel da mulher como portadora do pecado. Trata-se do mito de Maria Madalena, a prostituta arrependida.
Cristianismo primitivo
O cristianismo sempre foi marcado por intensas disputas internas, como as querelas com o nestorianismo, o monofismo, o racha com os ortodoxos, os anabatistas, a reforma protestante, etc. Mas, até o ano de 325 d.c. tais disputas internas eram acentuadas pelo fato de que não havia uma bíblia como conhecemos hoje. Embora já houvesse várias tentativas de definir quais livros deveriam ser aceitos e quais deveriam ser banidos (como o Cânone Muratori, de cerca de 170 d.c.), nenhuma delas fora definitiva. É o Concílio de Nicéia (atual Iznik, famosa pelos lindos azulejos), sob o comando direto do Imperador Constantino, que define o que hoje chamamos de Bíblia. O movimento é a tal ponto radical que o historiador italiano Ambrogio Donini chega a levantar a hipótese de que mais do que uma cristianização do Império Romano, o que se passou foi uma romanização do cristianismo.
Dada a inexistência de um cânone definitivo, não é de se estranhar a intensidade e a radicalidade das divergências internas daquele momento.
Logo após a morte de Jesus houve uma forte divergência entre Tiago (que, em algumas passagens dos evangelhos, é citado como sendo “irmão de Jesus” e que, ao que tudo indica, assumiu a liderança da comunidade de cristãos em Israel) e Paulo sobre a natureza do cristianismo. Para Tiago, os ensinamentos de Jesus deveriam ficar restritos aos judeus. Já Paulo defendia uma visão “católica” (universal) e a necessidade de evangelizar outros povos.
Como uma religião de homens pobres, com textos simples falando das peregrinações de um profeta pelo deserto, poderia seduzir as massas do Império Romano e, principalmente, as suas elites, que pouca ou nenhuma relação tinham com Israel e os judeus? Durante muito tempo houve uma disputa interna fortíssima sobre o papel que a filosofia (especialmente a neo-platônica) poderia cumprir no nascente cristianismo. O radical Tertuliano dizia que “credo quia absurdum” (ou seja, acredito porque é absurdo) e que a filosofia era não apenas dispensável como nefasta. Mas, a Igreja acabou apostando, como sempre, numa solução de compromisso entre filosofia e fé, expressa na obra de Santo Agostinho (que só viria a ser superada séculos depois por outra solução de compromisso, dessa vez entre a fé e o aristotelismo, na obra de Tomás de Aquino).
Outra polêmica crucial no início do cristianismo se deu entre católicos e gnósticos. Estes últimos, fortemente inspirados em ritos iniciáticos neo-platônicos, defendiam uma igreja para poucos, com uma disciplina interna muito forte e graus de iniciação. Já a visão católica era favorável a amplas conversões e uma relação mais frouxa com o crente. Com o crescimento do catolicismo cristão, os gnósticos foram amplamente perseguidos.
E poderíamos seguir com a menção a uma série de outros conflitos, como aquele sobre a postura que os cristãos deveriam adotar perante o Império Romano ou a posição do bispo Ário e seus muitos seguidores a cerca da natureza da trindade.
Papel da mulher
Mas, uma das grandes polêmicas do cristianismo primitivo ocorreu em torno do papel da mulher. Em muitas comunidades cristãs (especialmente gnósticas) as mulheres tinham papel relevante de liderança organizativa e teológica. Não havia impedimentos institucionais à mulher na hierarquia cristã.
Mas, ao longo dos anos este cenário foi mudando e a mulher passou a ser confinada a uma função cada vez mais secundária dentro do universo cristão. Muito contribuiu para isso a imagem que se criou de Maria Madalena. Embora não conste nada a esse respeito na Bíblia, Madalena passou a ser vista como uma prostituta arrependida, imagem arquetípica da mulher pecadora (sempre associada ao sexo) que acaba se arrependendo aos pés do senhor. A este respeito consta na Bíblia apenas que Jesus teria expulsado sete demônios de seu corpo. Não há nada sobre ser prostituta.
E na própria Bíblia há passagens que indicam que Madalena pode ter sido algo mais. Afinal de contas, quando Jesus foi preso e todos os discípulos fugiram com medo, foi ela que ficou ao pé da cruz. Foi ela que encontrou o sepulcro aberto. Foi a ela que o anjo veio avisar da ressurreição e coube a ela informar aos discípulos. Por fim, foi uma das primeiras pessoas a ver Jesus ressuscitado. Madalena parece estar em lugares importantes demais para ser apenas uma mulher a quem Jesus teria “curado”.
Nag Hammadi
Em 1945, dois camponeses encontraram uma ânfora enterrada próxima ao vilarejo egípcio de Nag Hammadi, contendo vários pergaminhos escritos em copta. Eram textos que circulavam nas comunidades cristãs primitivas, mas que foram expulsos do cânone quando do Concílio de Nicéia. Entre os achados constam textos gnósticos importantíssimos, como o Evangelho da Verdade, escrito por aquele que foi provavelmente o nome mais importante do gnosticismo: Valentino.
Mas, um dos textos é central para o que discutimos aqui. Trata-se do Evangelho de Filipe, segundo qual Maria Madalena faria parte do seleto grupo de discípulos de Jesus. Mais ainda, seria a “companheira” (koinonos) de Jesus, o que provocava a irritação de outros apóstolos, notadamente Pedro. Há uma parte onde se lê que Jesus a teria beijo (…). Infelizmente, as formigas comeram o trecho que dizia exatamente onde Jesus beijou Madalena.
Historiadores supõe que os pergaminhos devem ter sido enterrados por algum padre do monastério de São Pacômio (que ficava ali perto), assustado com o fato dessas leituras terem se tornado proibidas após o Concílio de Nicéia.
Evangelho de Maria Madalena
Em 1896, na cidade do Cairo, foi encontrado um conjunto de textos antigos, escritos em copta. Entre esses textos consta O Evangelho de Maria Madalena. De acordo com esse evangelho, Madalena não seria apenas mais um dos discípulos de Jesus. Ela seria a principal discípula de Jesus, a quem foram confiados ensinamentos esotéricos. O texto vai além e menciona uma forte rivalidade entre Madalena e Pedro. Sob certo sentido, podemos interpretar essa rivalidade como expressão daquela que opunha gnósticos à católicos.
O que esses textos sugerem teria a capacidade de mudar completamente a forma como o cristianismo veio a ter entre nós. Madalena expressa uma versão iniciática e esotérica do cristianismo, bem diferente da ortodoxia que acabou triunfando com o apoio do Império Romano. Mas, expressa também um papel totalmente diferente da mulher dentro da hierarquia. Com Madalena ocupando essa posição central na comunidade de discípulos, como impedir que mulheres fossem ordenadas sacerdotisas e viessem a ser bispas e, quem sabe, papisas?
Aos poucos, então, toda a máquina de propaganda da Igreja começou a construir o mito (especialmente iconográfico) de Madalena, a prostituta arrependida. De fato, não se trata aqui de discutir qual teria sido a verdade histórica. Mas, de contrapor duas versões. Uma delas está baseada em evangelhos apócrifos. A outra, contudo, não tem referências nem mesmo na Bíblia que se tornou oficial. Esta última favoreceu o surgimento de uma Igreja controlada por homens e fortemente apoiada no Império Romano. Para que essa triunfasse a outra teria que desaparecer.
Seria forte demais afirmar que o lugar da mulher no mundo de hoje deriva apenas do triunfo de uma versão sobre a outra. Mas, não custa imaginar que papel poderia ter sido reservado às mulheres se elas pudessem ter ocupado os cargos centrais da hierarquia cristã e se, particularmente, uma delas fosse vista como a herdeira direta dos ensinamentos de Jesus.
Fonte: Blog do Gindre

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