Os excessos do Judiciário e da Polícia Civil indignam menos que os cassetetes e as balas da Polícia Militar, mas asfixiam os militantes que buscam mudanças
Durante uma assembleia do comitê popular da Copa em Belo Horizonte, militantes pediam que ninguém falasse nada “comprometedor” em público.
“Pessoal, vamos manter uma paranoia saudável e segura. Não falem muito, não digam nada que possa incriminar ninguém. E não confiem em quem está sentado ao seu lado”, dizia um deles no início daquela reunião em junho no centro da cidade.
“Pessoal, vamos manter uma paranoia saudável e segura. Não falem muito, não digam nada que possa incriminar ninguém. E não confiem em quem está sentado ao seu lado”, dizia um deles no início daquela reunião em junho no centro da cidade.
Cenas como esta, onde militantes estão apreensivos e preocupados ao discutir política, têm se tornado cada vez mais frequentes. E este medo de quem se organiza é consequência do que aconteceu no último ano: a caneta dos burocratas tomou cada vez mais o lugar da borracha das balas e dos cassetetes na repressão a manifestações.
Em junho do ano passado, as imagens de jornalistas feridos e manifestantes presos sem motivo levaram muitos a se indignar com as ações da Polícia Militar. A imprensa e parte da população percebiam o óbvio: as forças policiais agem de maneira arbitrária e excessiva. Apesar da indignação inicial, a repressão continuou ao longo dos últimos meses com cada vez menos repercussão, o que foi escancarado mais uma vez no cerco da polícia aos manifestantes no Rio de Janeiro no dia da final da Copa do Mundo.
A mudança de foco da repressão, da caneta para a borracha, aconteceu aos poucos. No ano passado, moradores em situação de rua foram os únicos a continuar presos depois das manifestações de junho. Em São Paulo, Josenilda da Silva Santos ficou quatro meses detida por pegar uma televisão no meio da rua após uma loja ser depredada. No Rio de Janeiro, o catador Rafael Braga foi condenado a cinco anos de prisão por carregar uma garrafa de Pinho Sol.
Em outubro do ano passado, o “inquérito dos black blocs” em São Paulo trouxe outra novidade: a tentativa de enquadrar militantes no crime de associação criminosa. Investigações como essa se espalharam pelo país desde então. Em Curitiba, por exemplo, manifestantes foram enquadrados na lei de segurança nacional, um resquício da ditadura.
As prisões de militantes se intensificaram no último mês. O técnico de laboratório Fábio Hideki, um militante de histórico pacifista, já amarga quase um mês na prisão sem nenhum julgamento.
O pedido de prisão de 26 militantes no Rio de Janeiro escancarou esta situação. Entre os seus alvos, está uma professora da Uerj, uma advogada de manifestantes e uma jornalista da Empresa Brasileira de Comunicação. A Polícia Civil os enquadrou no crime de formação de quadrilha armada em um processo opaco. Os advogados dos presos não tiveram acesso à investigação, ao contrário dos veículos da Rede Globo que veicularam trechos dela na última terça-feira 22.
O inquérito de duas mil páginas virou um processo em um intervalo de duas horas, e agora as prisões deve continuar por tempo indeterminado. A forma como este processo aconteceu incomodou até parte da Justiça. O desembargador Siro Darlan questionou o delegado que não deu acesso à documentação relativa ao inquérito.
Este movimento não foi uma exclusividade da Copa. No último mês, sobrou para quem se mobiliza por outros causas em diversos lugares do país. Militantes do Movimento dos Atingidos por Barragens foram intimados a depor devido a mobilizações contra a Norte Energia, consórcio responsável pela construção da usina de Belo Monte no interior do Pará. Em Marabá, no mesmo Estado, um líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra foi preso, acusado de roubar um gado do grupo Santa Bárbara, controlado por Daniel Dantas.
Todas essas investigações asfixiam os militantes. Na rua e em reuniões, o medo de um processo é maior do que o sentido diante da Tropa de Choque. Acompanhando mobilizações de movimentos sociais, presenciei diversos exemplos disso nos últimos meses.
Em São Paulo, uma militante precisava conversar sobre uma ação do seu movimento. Ela entregou seu celular, mesmo desligado, a uma pessoa que ficou afastada enquanto ela conversava. Celulares grampeados, explicou ela, podem captar informações mesmo quando desligados.
O mundo virtual é onde este medo fica mais escancarado. O Facebook deixou de ser um meio de conversas com militantes. Telefonemas só servem para marcar um lugar para conversar. Serviços de e-mail alternativos, criptografados ou não, estão sendo usados constantemente. O programa de conversa instantânea Whatsapp também dá lugar, aos poucos, a um serviço criptografado.
A postura de alguns militantes, que até o ano passado era considerada exagerada, virou a regra entre os militantes brasileiros. Contra os policiais nas ruas, bastava a eles a coragem. Diante dos grampos e das intimações na polícia, restou a “saudável e segura paranoia”. Com o medo alastrado, a própria Justiça ataca diretamente o direito à manifestação do pensamento presente na Constituição.
Fonte: A Carta Capital
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