Nos últimos dias, livros, revistas, dissertações e o computador têm sido minhas principais companhias. A tarefa é dura e desafiadora: escrever sobre Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das maiores intelectuais negras que este país já teve.
Em um dos parágrafos, falei dos desafios a serem enfrentados para a superação da desigualdade racial existente no Brasil. Da mesma maneira, discorri sobre os avanços e vitórias que a população negra obteve, principalmente nas duas últimas décadas: A criação da SEPPIR em 2003, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial em 2010, e mais recentemente a vitória histórica com a aprovação das Cotas no ensino superior.
Como ninguém é de ferro, resolvi desanuviar um pouco: um café e uma olhadela no Facebook. Minha estratégia não deu muito certo: me deparei com uma “ordem de serviço” (imagem acima) da Polícia Militar de São Paulo, o que mostra que, apesar dos avanços, a luta contra o racismo tem de ser cotidiana.
Temos na medida da PM Paulista uma continuidade histórica. Ainda no século XIX, representantes da classe dominante brasileira tomaram de empréstimo as teorias raciais disseminadas na Europa, que atestavam a inferioridade dos negros. Ao adaptá-las à realidade nacional, imputaram aos descendentes de escravos uma suposta tendência ao crime. Outrossim, o negro associado à criminalidade foi fundamentado pela Ciência, ganhou caráter institucional no Estado e acabou amplamente disseminado pela população.
Passados mais de um século, este estigma permanece arraigado no inconsciente coletivo e nas abordagens policiais. Os moradores das periferias, vilas e favelas, sobretudo os negros e do sexo masculino, são vistos como elementos suspeitos.
Do ponto de vista da violência urbana, um estudo realizado pelo Laboratório de Análises Estatísticas Econômicas e Sociais das Relações Raciais da UERJ mostrou que, entre os anos de 2009 e 2010, o número de pretos e pardos assassinados cresceu 46,3%. No contingente branco, esse crescimento foi de 0,1%.
Mano Brown, que recentemente pediu o impeachment do governador Geraldo Alckimim, pelo alto índice de jovens negros assassinados nas periferias de São Paulo, em 2011, durante palestra em Belo Horizonte afirmou que de cada 15 jovens assassinados 14 são negros. Esses números não deixam claro que um genocídio está em curso no Brasil, e pouco ou nada se faz para reversão desse quadro aterrador.
Os reflexos das teorias raciais formuladas pela elite brasileira nos anos finais do século XIX e início da primeira República também são visíveis no sistema prisional. No Rio de Janeiro, 90% da população carcerária é formada por afro-descendentes. Diante disso, torna-se impossível não lembrar dos versos de Gil e Caetano:
“mas presos, são quase todos pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres, e pobres são como podres, e todos sabem como se tratam os pretos”.
Num país que entende como natural a distância que separa negros e brancos, a postura genocida da Polícia Militar de São Paulo dificilmente é associada à violência racial. Além disso, quando chegam a ser noticiados na mídia são fruto de denúncias de moradores e de pressões dos movimentos sociais. Assim, é necessário louvar as reportagens veiculadas pela Rede Record e pela Carta Capital, que nos últimos anos têm levado ao ar e publicado matérias sobre a discriminação racial e a violência policial no Brasil. Fato raro na televisão brasileira.
Nas eleições de 2010, em um dos debates entre os presidenciáveis, Plínio Arruda, nos poucos minutos a que teve direito de se pronunciar, sintetizou numa frase um dos legados deixados pelos quase quatro séculos de escravidão no país: “Ser negro no Brasil é extremamente perigoso”.
Poucos devem ter prestado a atenção na assertiva de Plínio, porém, a “ordem de serviço” emitida pelo Comandante da PM, Ubiratam Beneducci, não deixa dúvidas de que o então candidato do PSOL estava coberto de razão.
Vídeo sobre a matéria:
Fonte texto: Portal UJS
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