Pensava no que abordar para o meu segundo artigo desta Coluna, sempre em mente questões relacionadas à linha de investigação escolhida no programa de Doutorado – globalização neoliberal — tema com muito a se pesquisar, sobretudo pelas consequências nefastas desse fenômeno com a disseminação de um modelo político ideológico de Estado-mercado que vem ceifando vidas e destruindo países.
Pensava em como avançar nesse tema para que pudesse, cada vez mais, desnudar esse fenômeno e mostrar sua perversidade e a partir dele trazer alguns aportes que tornassem possível desenhar um novo contrato social, um contrato social planetário, forjado na solidariedade.
Enquanto construía minhas ideias fui impactada pela leitura de artigos desta Coluna que me levaram a seguir outro curso. Senti um enorme desejo de também denunciar a gravidade das escolhas de uma Corte de justiça que tinha por dever de ofício respeitar cláusulas civilizatórias da Carta Constitucional dizendo não ao retrocesso social. Decidi, então, juntar-me às vozes desses maravilhosos articulistas desta Coluna para fazer ecoar o grito de indignação, tal qual o grito do Cacique Babau Tupinambá – liderança indígena conhecida pela luta incansável em defesa dos Tupinambás de Olivença, pelos violentos conflitos fundiários sofridos por sua gente.
O Cacique Babau foi um dos painelistas do Encontro Nacional da Associação Juizes para a Democracia, ocorrido na Bahia entre os dias 6 e 7 de março de 2015, onde se reuniram operadores do direito para dialogar com os que heroicamente lutaram contra a ditadura civil-militar pós 1964; com aqueles que cotidianamente lutam pela igualdade racial e contra a violência do Estado pela terra. Somavam-se ao Cacique outras lideranças dos movimentos sociais (MST e quilombolas).
Enquanto ouvíamos as falas dos representantes dos movimentos sociais – relatos das lutas e resistências, dos atos de violência praticados pelas polícias, do grande número de negros mortos pelas polícias como forma de encerrar uma investigação inconclusiva, da injustiça promovida pelo Estado brasileiro contra essa gente; de repente o Cacique Babau, transfigurado, soltou um grito de guerra – que representava a indignação travada no peito de quem sofre a injustiça social e a opressão, a repressão violenta da polícia e das políticas de um mundo que se autodefine civilizado.
A leitura do texto de Grijalbo Coutinho, Extermínio de direitos do trabalho sem combinar com “russos”, fez ecoar em meus ouvidos aquele grito de guerra do Cacique Baubau. Grijalbo faz uma denúncia contundente de o quanto a fúria neoliberal de destruição do marco regulatório das relações de trabalho no Brasil tem sido chancelada pelo judiciário brasileiro. Relaciona as inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal, entre 2011-2020, em total menoscabo às cláusulas civilizatórias abraçadas pela Carta Constitucional de 1988.
Constatar a destruição dos direitos dos trabalhadores, chancelada pelo STF, provocou, em mim, a indignação que levou o Cacique àquele grito. Passei a lembrar das aulas ministradas pelos saudosos professores da Faculdade de Direito do Recife, nos ensinando os fundamentos de todo um conceito de Justiça, visto de uma perspectiva jurídico–filosófica. A conceituação filosófica da Justiça participava do espírito da frase referida ao poder judiciário, que a história dos Estados Unidos atribui a Thomas Jefferson: “Jurei, perante o altar de Deus, eterna hostilidade a toda forma de tirania sobre o espírito do homem.”
Como entender um Judiciário a serviço do rei e contrário ao povo!
Em O Direito do Trabalho, o Supremo e a Morte, Tadeu Alkmin inspirado em Lev Tolstoi (A Morte de Ivan Ilitch), denuncia a derruição do pensamento crítico. Não há contraponto. A hegemonia político-cultural capitalista tem dado curso a esse modelo de juízes de suposta neutralidade, como na narrativa: “momentos finais de um juiz cumpridor dos seus deveres que vestiu ao longo da vida o manto da (suposta) neutralidade, aplicando ao pé da letra o Código Russo de 1864 […]. Sem riscos, nem inovações. Empolgavam-lhe os louros…”
Em retrocesso interpretativo a Suprema Corte mostrou-se indiferente ao pacto social, advindo do processo constituinte de 1988, escolhendo por sacrificar um projeto civilizatório que teve como pilar ético e principiológico a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Negou, assim, o princípio da dignidade humana que norteia o Estado Democrático de Direito, manifesta no Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, optando pela subalternidade às diretivas do Consenso de Washington.
Nem mesmo a peculiar teoria política absolutista de Filmer delineada em seu Patriarca, e o Leviatã de Hobbes, protótipo legitimador do autoritarismo e da ditadura, foram capazes de parar o impulso irreprimível dos novos ventos políticos vividos no século XVII que desencadeou o poder teórico do constitucionalismo inglês.
Em verdade, a Suprema Corte se colocou como um longa manus da vontade do poder de plantão, na melhor caracterização do juiz Eichmann definido por Zéu Palmeira (O Juiz Eichmann: a burocracia judiciária como armadilha de classe), “o protótipo da autoridade que respalda o poder de plantão e valoriza a hiperdisciplina judiciária, tornando a “lei ordinária” um fetiche a ser servilmente louvado e observado.” O juiz Eichmann de Zéu não se importa se há justiça no texto legal, é indiferente ao mal ou ao bem. Mesmo diante do claro retrocesso social promovido pela chamada “Reforma Trabalhista” a Suprema Corte brasileira manteve-se inerte, tal como o coelho fascinado pela serpente, nada fez para evitar o perigo que ameaça todo um projeto de Nação.
Obriga-nos a perguntar: a quem servem os juízes se, em qualquer democracia, devem ser servidores de quem lhes delega o poder? Quem é o soberano, o rei ou nós mesmos – o povo?
Enquanto não estivermos cientes de que as constituições são obra política do povo, não comparáveis às Tábuas da Lei de Moisés, nem assimiláveis ao dogma da Santíssima Trindade, teremos decisões que estão mais próximas do espírito de Filmer e Hobbes do que da verdadeira democracia.
Muito embora a razão nos diga que deverímos estremecer de horror ante tais perspectivas, está havendo algo de estranho como se todos caminhássemos ao encontro do desastre.
Recentemente o Tribunal Superior do Trabalho – TST, em julgamento de dissídio coletivo instaurado pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (DCG-662-58.2019) permitiu que um capitalismo de rapina destruísse cláusulas históricas da negociação coletiva entre as categorias profissionais e econômicas e pior, em prejuízo ao trabalhador.
Ao que parece estamos vivendo uma época dominada pelo sentimento de perplexidade impotente, como expressou Bertrand Russell (A última oportunidade do homem).
A ofensiva neoliberal no Brasil fundou um bloco histórico capitalista com alterações, não só na base econômica também na superestrutura político-ideológica, a partir do recurso às instituições ditatoriais e hegemônicas do Estado burguês. O projeto neoliberal representou a derrota do movimento operário brasileiro. Percebe-se que o direito, tal como concebido no pensamento moderno, perdeu sua essência enquanto instrumento de emancipação social e infelizmente o judiciário tem caminhado para uma interpretação puramente econômica do Direito.
No dissídio coletivo referido a douta maioria condutora do voto vencedor em relação a cláusula 28ª, contra os votos dos Ministros Maurício Delgado e Kátia Magalhães, violou o princípio da proibição do retrocesso social previsto no caput do artigo 7º da Constituição Federal de 1988, postulado esse já referendado pelo STF na ADI 1.946/99-DF sobre o salário maternidade e que teve como relator o Ministro Sidney Sanches.
Os ministros vencidos pretendiam criar alternativos compensatórios ante a revogação de disposições normativas convencionadas anteriormente, ou seja, cláusulas históricas. Mas a douta maioria acompanhou o voto divergente adotando uma posição não condizente com os avanços obtidos pelo processo civilizatório construído nas batalhas sindicais, consolidados na Constituição Federal de 1988. Abandonaram uma classe de trabalhadores, existente há mais de 360 anos, que luta por seus direitos ao tempo em que algumas categorias sequer existiam, como enfatizou a Ministra Kátia. Outro aspecto enfatizado pela Ministra foi o momento vivenciado: “o momento social que vivenciamos – um momento de pandemia, com poucos precedentes na história. Um momento que gera incerteza, insegurança, gera medo em todos nós e que deveria aguçar os sentimentos de solidariedade e não de arrogância.”
Nada disso foi importante para os que acompanharam o voto divergente. Ao contrário, consagraram a redução do conteúdo do direito ao trabalho, afirmando-o unicamente com base na teoria das necessidades, o que esvazia da noção de trabalho o seu sentido emancipador, de transformação do real, no curso do qual se dá a descoberta e o desenvolvimento das potencialidades humanas.
Para quem milita na Justiça do Trabalho há mais de 26 anos é impossível não se indignar em assistir a desconstrução dos direitos sociais, e presenciar a desolação do trabalhador brasileiro, cada dia mais vulnerável, abandonado à própria sorte, minado em sua força pela destruição dos sindicatos, um total enfraquecimento dos movimentos dos trabalhadores não só pelo modelo de Estado neoliberal, forjado na autonomia da vontade, sobretudo pelo descompromisso civilizatório do próprio judiciário brasileiro.
Por tudo isso, quero ecoar o grito do Cacique Babau contra as formas sociais determinadas na formação vigente, contra o economicismo que instrumentaliza as relações sociais; à mercantilização generalizada e aos ditames da política que subordina os direitos sociais à mera circulação no acesso aos mecanismos de poder.
Grito contra o (dis)funcionamento social que a fragmentação e redução do significado do trabalho têm provocado em milhões de vidas.
Grito contra a ilusão da criação de empregos através do mecanismo da flexibilização, instrumentalizada pela terceirização politicamente estimulada, que só trouxe o aumento da desigualdade.
Grito com o mesmo sentimento dos deuses dos Tupinambás que fez eclodir aquele grito do Cacique Babau.
Fonte: Justificando
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