Em gravação obtida com exclusividade por CartaCapital, João Clá
Dias diz que o mau desempenho na coleta de donativos pode levar ao inferno
Investigados pelo Ministério Público e sob
intervenção do Vaticano, os Arautos do Evangelho chamam atenção pela
suntuosidade de suas igrejas. O faturamento médio mensal dos Arautos aproxima-se dos 10
milhões de reais. Baseia-se principalmente em doações. Ex-integrantes detalharam
a CartaCapital um complexo
esquema que inclui manipulação, pressão por resultados e jornadas extenuantes.
Tudo para aumentar os lucros da organização fundada pelo monsenhor João
Sconamiglio Clá Dias.
CartaCapital teve acesso a uma
gravação que corrobora esses relatos. Nela, João Clá fala a sessenta
internos que viajariam coletando donativos. Depois de se certificar que
apenas eles o ouviam, o líder dos Arautos deixa claro qual o grande
objetivo da missão. “Nossa Senhora quer de cada um o quê? Que conquiste
dinheiro.” Anunciar o reino dos céus, acrescenta, estaria em segundo plano.
“Sem se dar conta, vocês vão fazer um apostolado enorme, porque a presença dos
senhores já vai impactar todas as pessoas que vocês vierem a procurar.”
Ouça o áudio:
O encontro ocorreu em meados de 2010 no Monte Thabor, um dos
anexos da suntuosa igreja dos Arautos em Caieiras. Clá explica que a verba é
necessária para financiar a expansão dos Arautos e a construção de novas sedes
e santuários. “Os grupos precisam se desenvolver, vocês viram aqui os planos de
fazer uma academia, um santuário em cada lugar onde há grupos. O ideal é termos
terreno próprio, sede própria e ao lado da sede, um santuário”.
Ouça:
A galinha dos ovos de ouro da instituição é uma lista com dezenas de milhares de endereços aos quais são enviados, periodicamente, boletos e um terço ou medalhinha benzido. Não há nesse material nenhuma menção aos Arautos – os padres são apresentados como “assistentes espirituais” e os templos, como “belas igrejas em estilo gótico”. As investidas postais mais frutíferas rendiam uma visita das chamadas ‘duplas’: jovens escolhidos para viajar coletando doações.
Oficialmente, existem quatro sociedades sem fins lucrativos ligadas à instituição. A principal é a Associação Cultural Nossa Senhora de Fátima, fundada por Clá em 1997. Outras três instituições registradas nos anos seguintes completam o grupo: a Associação Brasileira Arautos do Evangelho, a Associação Católica Rainha das Virgens, e a Sociedade Clerical Virgo Flos Carmeli.
Há duas ramificações menos visíveis, que também enchem os cofres dos Arautos, segundo ex-integrantes: a Associação Cultural e Artística Nossa Senhora das Graças e a Associação Maria Regina Cordium. Ambas atuam na distribuição de brindes benzidos e são administradas por colaboradores fervorosos. Segundo Carlos*, que trabalhou até 2014 no setor financeiro, o mailing dos arautos enviava material de todas as associações, o que poderia levar fiéis a doar duas ou três vezes.
Clá deixa claro que o trabalho garantiria a salvação eterna a esses jovens. “A partir do momento que a gente diz ‘coletor de donativos’, liga-se algo no céu imediatamente”, promete. Na sequência, Clá sugere que os escolhidos que preferissem ficar nos ‘êremos’ — os monastérios dos Arautos—, poderiam ir para o inferno. “Se ele [o interno], sem razão, pede pra ficar dentro do êremo, ele vai ser um sabugo dentro do êremo. Ele não vai dar, nem de longe, aquilo que daria na coleta de donativos”, diz Clá em outro momento. E completa: “Quem diz isso são os teólogos”.
Ouça:
As duplas são escolhidas a dedo conforme o perfil e a aparência dos internos. O mais loquaz tomava a frente. O outro, chamado de ‘retaguarda’, ficava responsável, entre outras tarefas, por distrair pessoas que eventualmente atrapalhassem a abordagem. Uma das táticas mais eficazes era mostrar fotos de arautos mais jovens e pedir ao fiel que ‘adotasse’ aquele seminarista. Muitas vezes a pessoa se apegava à moça ou rapaz que havia ‘adotado’ e pedia para conhecê-lo. “Aí tinha que enrolar, mas em alguns casos especiais promoveram esse encontro”, lembra um ex-arauto, hoje com 33 anos, que prefere não se identificar.
À época em que a gravação foi feita, cerca de 400 jovens arrecadavam doações em todo o Brasil. “No final de semana, eram comentadas dupla por dupla as melhores, para poder incentivar as piores a se esforçarem mais”, lembra Alex Ribeiro de Lima, ex-membro da instituição por dezoito anos. Essa movimento é, ainda hoje, coordenada por uma célula em São Paulo. Alex Ribeiro conheceu os Arautos ainda adolescente. Já maior de idade, atuou na coleta de donativos, viajando inclusive a outros países. “Minha dupla conseguia de 8 mil a 10 mil reais por mês”, lembra. Depois de dezoito anos de servidão, sua saúde mental se deteriorou e ele terminou internado à força em uma clínica psiquiátrica.
Pais e ex-integrantes denunciam maus-tratos, alienação parental e abusos sexuais e psicológicos. Foram encaminhadas ao Ministério Público de São Paulo mais de quarenta denúncias.Os casos envolvem de castigos físicos e manipulação psicológica a exorcismo praticado em menores de idade e uma morte
Um outro vídeo, gravado em 2010 e obtido na semana passada por CartaCapital, mostra João Clá dando uma bofetada em um menor de idade durante uma cerimônia.
Assista:
Negando o Vaticano
Apesar de fiar-se à Igreja Católica para angariar donativos, os Arautos agora negam o poder do Vaticano sobre sua instituição. Em comunicado divulgado no dia 19, a instituição diz que considera ‘inválido’ e ‘ilegal’ o decreto que nomeou o cardeal Dom Raymundo Damasceno Assis como interventor. No último domingo
O texto atribui a conclusão a Felipe Lecaros Concha, atual presidente da instituição. Concha, um leigo cuja família é ligada a João Clá desde os tempos de TFP, foi alçado recentemente ao cargo, ocupado pelo próprio Clá até 2017, quando eclodiram as primeiras acusações de exorcismo e conspiração contra o papa Francisco. Desde então, o cargo era ocupado interinamente pelo padre Alex de Brito. Segundo o sacerdote afirmou a CartaCapital no dia 11 de outubro, o novo presidente foi eleito no início do ano.
Os Arautos do Evangelho foram fundados em 1998 como associação privada de fiéis, no Campo Limpo. Foram reconhecidos pelo Vaticano em 2001. Em 2005 nasceram duas sociedades de vida apostólica, uma feminina e uma masculina, ambos fundados por Clá, ainda como leigo. Em 2009, o papa Bento XVI concedeu aprovação pontifícia a essas duas entidades e deu a Clá o título de Monsenhor.
Diferente de uma associação pública (como as ordens beneditinas e franciscanas), uma associação privada não é, rigorosamente, ligada à Igreja. Um grupo de escoteiros católico pode pedir à igreja um selo de direito pontifício. Mas isso não faz dela uma associação religiosa. Os ramos feminino e masculino dos Arautos, no entanto, são sim ‘comissariáveis’.
Fonte: Carta Capital
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