Após colecionar desafetos, Eduardo Nepomuceno foi afastado de investigações de corrupção e desvios envolvendo mandachuvas da política mineira
Um ano atrás, o promotor Eduardo Nepomuceno de Souza recolhia pastas e objetos pessoais em uma despedida sem cerimônias do cargo que ocupou ao longo de 14 anos no Ministério Público de Minas Gerais.
Acusado de retardar o andamento de processos, ele foi banido da promotoria de Defesa do Patrimônio Público do MP estadual mineiro e deslocado para a área criminal. Agora, em vez de fiscalizar as contas do Estado e apurar suspeitas de corrupção, lida com processos de homicídio no Tribunal do Júri. “Meu trabalho na promotoria [do Patrimônio Público] incomodava muita gente”, diz Nepomuceno, lotado em uma sala acanhada na sede do MP em Belo Horizonte.
Acusado de retardar o andamento de processos, ele foi banido da promotoria de Defesa do Patrimônio Público do MP estadual mineiro e deslocado para a área criminal. Agora, em vez de fiscalizar as contas do Estado e apurar suspeitas de corrupção, lida com processos de homicídio no Tribunal do Júri. “Meu trabalho na promotoria [do Patrimônio Público] incomodava muita gente”, diz Nepomuceno, lotado em uma sala acanhada na sede do MP em Belo Horizonte.
Parte do incômodo a que ele se refere veio à tona em maio de 2014, quando o senador Zezé Perrella (MDB) subiu à tribuna do Senado para demonstrar revolta contra o que chamou de “perseguição implacável” do promotor. Uma semana antes, o parlamentar havia ido pessoalmente à corregedoria do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para se queixar de Nepomuceno. De 2003 a 2014, o promotor abriu seis processos e instaurou cinco inquéritos contra o senador, a maioria deles para investigar contratos entre empreendimentos da família Perrella e o Governo mineiro, sobretudo durante a gestão de Aécio Neves (PSDB).
A bronca de Perrella, entretanto, era anterior ao pronunciamento indignado em 2014. Ele já havia protocolado representações na corregedoria do Ministério Público Estadual, que, a partir de 2012, começou a monitorar o trabalho de Nepomuceno. Uma inspeção interna de quase três anos e meio encontrou irregularidades, já que alguns processos tocados pelo promotor, especialmente os que implicavam Aécio e Perrella, estavam atrasados. O corregedor Luiz Antônio Sasdelli Prudente recomendou, então, a remoção compulsória de Eduardo Nepomuceno do Patrimônio Público, mas não teve êxito no decorrer do processo. Nenhum procurador do MP aceitou relatar o caso.
Nepomuceno seguiu normalmente em suas funções até que o CNMP resolveu assumir o processo e montou uma equipe para avaliar o promotor. Após seis meses de análises, os três procuradores integrantes da comissão concluíram que Nepomuceno “não atuou de maneira relapsa ou negligente”, tampouco vislumbraram “culpa ou dolo no desempenho de suas atribuições”. Apesar de o trio ter sido unânime em sugerir a absolvição, o relator do processo no CNMP, Sérgio Ricardo de Souza, contrariou a comissão ao pedir a remoção compulsória do promotor. Em março de 2017, a decisão do Conselho foi ratificada pelo MP, e Nepomuceno não só se viu oficialmente afastado da promotoria, como também proibido de atuar em qualquer tipo de fiscalização do poder público. “Estou de mãos atadas”, afirma, resignado.
Ele ainda espera o acolhimento de um recurso no Supremo Tribunal Federal (STF), mas acha improvável a hipótese de ser reconduzido à sua antiga função. Assim como Nepomuceno, a Associação Mineira do Ministério Público (AMMP) considera a punição injusta e descabida, por entender que o trabalho do promotor “sempre se pautou exclusivamente pela estrita observância das leis e da Constituição do país”. Na época do afastamento, colegas do Patrimônio Público também fizeram uma moção de apoio a Nepomuceno. Bancados por um grupo de magistrados, professores e empresários mineiros, outdoors com sua foto e os dizeres “Retaliação contra quem combate a corrupção é inaceitável” foram espalhados em algumas avenidas de BH. O Conselho Nacional do MP sustenta que a pena máxima imposta ao promotor não se deve a pressões políticas, mas sim ao suposto “descumprimento de deveres inerentes ao cargo”.
Do futebol à política
Nascido em Uberaba, no Triângulo Mineiro, mas criado em Belo Horizonte, Eduardo Nepomuceno se formou em direito pela UFMG em 1992. Três anos mais tarde, entrou para o Ministério Público após uma incursão sem muito entusiasmo na advocacia. Logo descobriu sua vocação no funcionalismo, principalmente ao integrar a Defesa do Patrimônio Público como auxiliar, em 2001. Por divergências com superiores, durou pouco na promotoria. “Diziam que eu não era maleável porque me recusava a ‘tirar o pé’ de algumas investigações”, conta.
Em 2003, não pensou duas vezes ao trocar a pasta de Meio Ambiente pela vaga de titular no Patrimônio Público. A partir daí, tirar o pé de divididas jamais passou pela cabeça de Eduardo Nepomuceno. Assim que assumiu a promotoria, teve seu primeiro embate com Zezé Perrella, que havia acabado de encerrar um mandato como deputado federal pelo PFL e cedido a presidência do Cruzeiro ao irmão Alvimar. Como desdobramento da CPI da CBF/Nike, o promotor indiciou o presidente da Federação Mineira de Futebol, Elmer Guilherme, que acabou afastado do cargo por causa de desvios de aproximadamente 4 milhões de reais, e também Perrella, por suspeita de lavagem de dinheiro na venda do zagueiro Luisão.
O processo contra o dirigente celeste não foi adiante. A defesa do Cruzeiro alegou que o Ministério Público não poderia investigar clubes e federações por se tratarem de entidades privadas, argumento recorrente de cartolas e combatido por Nepomuceno. “O futebol é patrimônio cultural do povo. Isso gera ao clube uma necessidade de responsabilização perante a sociedade”, afirma o promotor. Por ser torcedor do Atlético-MG, rival do Cruzeiro, foi várias vezes acusado de clubismo em suas investigações contra o cartola cruzeirense. Porém, em sua trajetória de mais de duas décadas no MP, ele abriu quatro inquéritos em desfavor do clube do coração, incluindo processos para investigar empréstimos irregulares de ex-presidentes do Atlético, a exemplo do banqueiro Ricardo Guimarães e Alexandre Kalil (PHS), atual prefeito de BH.
Publicamente, apenas Zezé Perrella, que voltaria a comandar o Cruzeiro entre 2008 e 2011, período em que também exerceu o cargo de deputado estadual, reclamava da atuação ferrenha do promotor. O dirigente sempre deixava claro seu poder de influência sobre a alta sociedade mineira. No fim do último mandato no clube, mesmo investigado pela promotoria de Nepomuceno, cedeu os campos de treinamento do Cruzeiro para a realização de um torneio promovido pela Associação Mineira do Ministério Público, que reunia procuradores e promotores de todo o país. Em 2004, quando prestou depoimento no MP, esteve frente a frente com o promotor acompanhado de cinco desembargadores conselheiros do clube. “Era uma forma de intimidação”, diz Nepomuceno. “O futebol, no Brasil, movimenta muita coisa. Pessoas influentes querem fazer parte do meio, tirar foto com jogadores, interferir na vida do clube. Isso deslumbra e dá poder aos dirigentes.”
Mas, como as ações do promotor nunca se restringiram ao futebol, os choques com Perrella se tornaram mais frequentes no campo da política. De acordo com investigações do MP, as empresas de Perrella, divididas entre vários parentes do senador, fraudavam licitações para garantir uma espécie de monopólio no fornecimento de comida para presídios, hospitais e órgãos públicos do Estado. Entre os indiciamentos movidos pela promotoria contra a família Perrella, dois deles envolvem o ex-deputado estadual Gustavo Perrella, filho do senador e proprietário da Tapera Participações Empreendimentos Agropecuários, apontada pela Procuradoria-Geral da República como receptora dos 2 milhões de reais negociados por Aécio com Joesley Batista. Sua outra firma, a Limeira Agropecuária e Representações Ltda, foi acusada de firmar contratos sem licitação com a Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), que tinha como vice-presidente Mendherson Souza Lima, cunhado de Perrella responsável por entregar o dinheiro da JBS à Tapera após os repasses de Frederico Pacheco de Medeiros, primo de Aécio.
Segundo o senador Perrella, Eduardo Nepomuceno “violou garantias constitucionais em processos”
O escândalo Aécio/JBS, revelado pela Operação Lava Jato no ano passado, jogou luz sobre as investigações iniciadas há muito mais tempo por Nepomuceno no Ministério Público mineiro. Ainda em 2004, o promotor já associava os indícios de enriquecimento ilícito de Perrella a supostas vantagens recebidas na relação com o governo de Aécio. Para ele, “as denúncias da Lava Jato não foram nenhuma novidade”. Além dos contratos com o Estado, a procuradoria de Nepomuceno ainda investigou Zezé pela apreensão do helicóptero com 445 quilos de cocaína, que pertencia a Gustavo, em 2013. A Polícia Federal isentou os Perrella de envolvimento no tráfico de drogas, mas o MP pediu a devolução de 14.000 reais utilizados por Gustavo, que era deputado estadual, para abastecer o helicóptero com verba indenizatória.
Aécio, por sua vez, ainda foi processado por contratos fraudulentos na Cidade Administrativa, sede do governo erguida a um custo de 1,2 bilhão de reais, e a construção do aeroporto de Cláudio em terras de seu tio-avô. A ação acabou arquivada em 2015. No entanto, uma gravação da Polícia Federal que flagrou Frederico Pacheco insinuando que um segurança de Aécio teria as chaves do aeroporto reavivou a trama no ano passado. “Esse fato já seria suficiente para desarquivar o inquérito estadual contra o Aécio”, diz Nepomuceno. Depois de sua saída da promotoria e da divulgação dos grampos da PF, o Ministério Público não retomou as investigações. Tanto Aécio quanto Perrella afirmam ser inocentes nas ações encampadas pelo promotor. Segundo o senador emedebista, Eduardo Nepomuceno “violou garantias constitucionais em processos” e, por isso, foi afastado do cargo. Seja como for trata-se, na verdade, de um caso inédito de remoção compulsória no MP mineiro após a queixa de um político.
Inimigo público
“BH é um ovo”, costumam dizer os mineiros ao encontrar conhecidos com espantosa frequência em vários cantos da cidade. A definição da capital se aplica ao Estado, onde, não raro, as relações de amizade e os laços de parentesco estão imbricados. Nesse cenário provinciano, Eduardo Nepomuceno, que, ao contrário de muitos colegas, não vem de uma família tradicional de juristas, foi acumulando desafetos na medida em que ganhava experiência e traquejo à frente do Patrimônio Público. Tal qual no futebol, ele não costumava discernir alvos de investigações pela orientação partidária.
Fora Aécio e Perrella, o promotor investigou o governador Fernando Pimentel (PT) por improbidade administrativa e superfaturamento de obras na época em que era prefeito de Belo Horizonte. Também foi o responsável pelo processo que levou à suspensão do mandato do vereador Wellington Magalhães (Podemos), que presidia a Câmara Municipal, por fraude de licitações, em 2016. Antes, dentro de suas atribuições, já havia investigado um suposto favorecimento ao advogado de Perrella, Sergio Santos Rodrigues, pelo fato de ser filho do então presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Joaquim Herculano Rodrigues. O desembargador afirma que, por condição de impedimento, jamais atuou em processos conduzidos pelo filho.
Além de Zezé Perrella, outros desafetos e investigados protocolaram representações contra Nepomuceno no MP, como os ex-dirigentes do CruzeiroAlvimar Perrella e José Maria Fialho, uma juíza que cuidava de um processo relacionado à Fecomércio e um procurador do Ministério Público de Contas do Estado. “Minha queda foi uma soma de interesses, de vários lados. Na hora que me colocaram à beira do precipício, todo mundo quis empurrar”, afirma o promotor.
Integrantes do MP ouvidos pelo EL PAÍS entendem que Nepomuceno foi tirado do cargo devido a “pressões internas e externas”. Embora a esfera de atuação do promotor seja independente do Judiciário, sua situação é comparada à do juiz federal Sergio Moro, que também foi acusado por vários réus de cometer ilegalidades em processos como o do ex-presidente Lula, mas nunca recebeu qualquer sanção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Basicamente, ele foi punido por investigar demais”, resume um ex-colega do Patrimônio Público.
“Passei a ser visto como um problema. E aí deram um jeito de me tirar”
Em sua defesa no processo, Nepomuceno argumentou que as falhas apontadas pela corregedoria são comuns em todas as promotorias do Ministério Público por questões estruturais e pela complexidade de cada ação. Quando ocupava o antigo cargo, o promotor tinha de dividir seu tempo entre as investigações de políticos e a rotina diária de dezenas de processos comuns – desde professores que apresentam atestado médico falso a roubo de peças de carro –, que correspondem a cerca de 80% dos inquéritos no Patrimônio Público. “Era uma frustração permanente”, conta. “Eu não podia me dar ao luxo de ficar por conta de um ou outro processo, ao contrário da Lava Jato, que dispõe de uma força-tarefa para investigar políticos.”
A promotoria tinha apenas dois peritos à disposição. Faltavam recursos financeiros para fazer as chamadas “investigações de campo”, em que são produzidas filmagens e gravações. Com déficit de pessoal, o cruzamento de informações colhidas em quebras de sigilo bancário acabava sucumbindo às atribuições do dia a dia. No mesmo ano em que Nepomuceno foi afastado, uma inspeção do CNMP ainda constatou que muitos processos do MP mineiro contra políticos com foro privilegiado eram retidos indevidamente pelo ex-procurador-geral de Justiça, Carlos André Mariani Bittencourt. A procuradoria recebeu apenas uma advertência. No Ministério Público Estadual, todos os indiciamentos produzidos por promotores envolvendo políticos são encaminhados ao procurador-geral, nomeado de dois em dois anos pelo governador. “O andamento dos processos não depende só da promotoria”, afirma Nepomuceno.
Investigados pelo promotor ainda o acusaram de abuso de autoridade e de promover vazamentos seletivos de inquéritos para a imprensa. Ele afirma que, apesar das brigas que comprou, nunca teve medo de amargar o mesmo fim que o promotor Chico Lins do Rego, assassinado a tiros na capital mineira ao investigar a máfia dos combustíveis, em 2002. Mas sabia que a pressão de seus detratores seguiria aumentando enquanto ele não fosse tolhido no MP, sobretudo depois de conseguir encaminhar um acordo de delação premiada sobre o mensalão tucano com o publicitário Marcos Valério, no fim de 2016, e avançar em investigações em torno do pagamento de propina a Aécio Neves pela Andrade Gutierrez e Odebrecht nas obras da usina de Santo Antônio – o senador é alvo de inquérito no STF sob a mesma acusação. “Como vivemos em um país corrupto, os embates na Defesa do Patrimônio Público eram diários. Todo procurador-geral ouvia reclamações sobre mim. Passei a ser visto como um problema. E aí deram um jeito de me tirar.”
Desde sua saída, a promotoria teve quatro substitutos diferentes em apenas um ano. Para Nepomuceno, que se especializou no cargo, essa inconstância de comando prejudica o andamento dos processos, pois novos promotores perdem muito tempo até se inteirarem das minúcias de cada inquérito. Hoje recluso em funções burocráticas no Júri, ele diz ter a consciência limpa e o mesmo afinco para escrever uma nova página de sua jornada no MP. “Muitas vezes, é difícil provar o óbvio. Mas sinto orgulho de ter cumprido meu dever. Nunca precisei da ajuda de nenhum político denunciado em esquemas de corrupção para alavancar minha carreira. Eu não fiz parte de nada disso.”
Fonte: El Pais
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