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sexta-feira, 9 de junho de 2017

Fome, êxodo e suicídio: os problemas de São Gabriel da Cachoeira

Cidade mais indígena do país sofre com problemas históricos. Saiba como dois moradores de São Gabriel pretendem ajudar o município que carece de serviços essenciais
Localizado no extremo norte do estado do Amazonas, o município de São Gabriel da Cachoeira se faz conhecido por ser o local mais indígena do Brasil, com uma predominância de mais de 70% de povos tradicionais de diferentes comunidades ocupando os seus 109,185 km² de extensão.
Em um lugar que conserva grande parte da história dos nossos antepassados, a negligência do Estado com as 23 etnias que residem ali há milênios é gritante, trazendo consequências que afetam diretamente a vida destes povos.

Uma delas é o êxodo de jovens indígenas que buscam, em várias regiões do país, outros modelos de aprendizado com intuito de, em uma possível viagem de volta, contribuir e dar assistência aos povos que sofrem com a exploração financeira, escassez alimentar e altos índices de suicídio juvenil.
Segundo dados do Sistema de Informação da Mortalidade do Ministério da Saúde apurados pelaAgência Pública, em 2012 houve média de 51,2 suicídos por 100 mil habitantes, um número duas vezes maior do que a média nacional daquele ano. Além disso, a cidade de São Gabriel da Cachoeira faz fronteira com a Colômbia e Venezuela, sendo rota importante do narcotráfico internacional, o que também ameaça o modo de sobrevivência tradicional dos povos.
Ronil Lima Fontes, conhecido como Keramohi e Gilberto Montenegro Fontes, Kamida, são respectivamente tio e sobrinho. Os dois vivem na comunidade Ukuki Cachoeira, tendo como língua mãe o Baniwa. Ambos fizeram uma longa viagem até São Paulo e vão ficar algum tempo por aqui.
Com apoio de padres missionários, os dois vieram em busca de especialização. Kamida tem 20 anos e faz Direito. Já Keramohi, alguns anos mais velho, é estudante de Enfermagem e explica que “a ideia é voltar para lá e ajudar com o que estamos aprendendo na faculdade. Saúde lá é muito difícil. As comunidades são muito isoladas e ás vezes as pessoas morrem sem atendimento. Eu quero atender diretamente as comunidades”, concluiu.
A distância entre a área urbana de São Gabriel da Cachoeira e suas comunidades, espalhadas pela floresta amazônica, é um outro problema que afeta diretamente as comunidades. Kamida conta que, em uma viagem de rabeta (barco com um pequeno motor acoplado), “demoramos nove dias para ir da comunidade para a cidade, e mais nove para voltar. Tem gente que acaba ficando, nem volta”, disse com naturalidade. “Eu demorei menos para vir para São Paulo do que demoro para chegar de São Gabriel até Ukuki”, explicou.

“O transporte condiciona essa situação de isolamento. Isso gera um problema muito, mais muito pior: a fome.”

Para ele, fazer Direito pode garantir uma formação para se tornar um gestor público e barrar as ameaças sofridas pelas comunidades: “Nossa terra é demarcada, mas mesmo assim todos os indígenas correm risco com a nova lei”, se referindo à PEC 215 de 2000, que dá ao poder legislativo brasileiro – Câmara dos Deputados e Senado Federal – a decisão sobre a demarcação de terras indígenas, que hoje é de responsabilidade do poder executivo.
Contribuindo ainda mais para a instabilidade social de São Gabriel, o processo de aculturação, ou seja, de modificação da cultura tradicional indígena pela cultura branca, ocorre desde os anos 60, o que dificulta a união entre as comunidades da floresta. Elas foram atingidas por duas vertentes da Igreja: a católica, que se difundiu no norte e no nordeste do Brasil após as diretrizes sociais do Concílio Vaticano II nos anos 60; e a evangélica, que chegou em São Gabriel da Cachoeira com missões oficiais em meados dos anos 70.
Os católicos, com a consciência social proveniente da Teologia da Libertação, buscavam, na maioria das vezes, apoiar as comunidades tradicionais em suas lutas e reivindicações, sem alterar significativamente as tradições culturais. A igreja evangélica, por sua vez, proibiu as comunidades influenciadas de manterem e preservar seu modo tradicional de vida.
Isso ocasionou uma estranha divisão: comunidades que defendem o catolicismo e comunidades totalmente evangélicas, que não preservaram a cultura indígena. Keramohi conta que “existe briga entre essas comunidades. Uma não pode conviver com a outra, são modelos diferentes. Nossa comunidade ainda preserva a dança, o canto, bebidas tradicionais e a contação de histórias. Tem o perigo de isso se perder. Se não mantiver a história, daqui 5 ou 10 anos vai acabar tudo.”, contou com tristeza.

Fotos: Gil Reis/ Gilberto Montenegro Fontes, Kamida e Ronil Lima Fontes, Keramohi
Sociólogo formado pela Universidade de São Paulo (USP), Diego Amorin faz parte de uma rede de apoiadores que busca projetos para melhorar os serviços públicos e a integração dos povos de São Gabriel da Cachoeira. Segundo ele, há a percepção de que o isolamento das comunidades é uma consequência direta da falta de atuação do Estado brasileiro naquela região: “O transporte condiciona essa situação de isolamento. Isso poderia ser facilmente resolvido pelo Estado em esfera municipal, regional ou federal, existem políticas de transporte que podem eliminar essa dificuldade, mas não é feito”, analisa Diego, que completa: “Isso gera um problema muito, mais muito pior: a fome”.
O sociólogo explica que, apesar da produção de subsistência, as comunidades  necessitam de alimentos e materiais para complementar a alimentação, como sal, óleo e fósforo. Os indígenas só tem acesso a essas variedades quando conseguem trocar sua produção alimentar própria por um “rancho”, nome que se dá à uma cesta básica comum.

“Eu demorei menos para vir para São Paulo do que demoro para chegar de São Gabriel até Ukuki”

Gilberto Montenegro Fontes, Kamida
Diego explica de maneira exemplificada a dinâmica de troca, que funciona da seguinte forma: “Os agricultores indígenas chegam até os comerciantes com um saco de farinha, que o indígena quer vender por 50 reais. E o comerciante só compra por 5.”, esclarece. “Eles ficam 2 ou 3 dias tentando vender isso e, quando ficam cansados, vendem por qualquer preço e tentam voltar para casa. Isso se conseguir voltar, pois não conseguiu comprar o necessário. Se isso ocorre, o cidadão fica pedindo na rua. Pedindo para vereador, prefeito, pra pelo menos pagar a gasolina para colocar na rabeta e voltar pra comunidade. Essa realidade é a que mais assustou”, conta com detalhes. “Temos três coisas que não se esperam: a fome, a sede e a dor. Não se pode pensar políticas a médio e longo prazo, é uma coisa que tem que ser pensada agora, são necessidades reais. São Gabriel passa por isso e os meninos (Keramohi e Kamida) estão tentando ajudar de um jeito diferente”, desabafa Diego.
A população de São Gabriel, com base em dados do Censo de 2010, é de 37.896 habitantes, dos quais 19.054 vivem em área urbana. A percepção é que a produção alimentar dos outros 18.842 habitantes comportaria a necessidade tanto das famílias da cidade, quanto dos povos ribeirinhos.
Para isso, é necessária criação de um modelo justo de compra, venda e troca de produtos: “A pessoa da cidade não produz nada ou muito pouco, pois lá não tem terra para plantar”, conta Diego. “Eles são somente consumidores e o que é produzido nas comunidades poderia abastecer São Gabriel inteira. Mas as pessoas da comunidade não tem nem acesso à cidade, nem dinheiro para comprar comida. A fonte de sobrevivência ainda depende de projetos como bolsa escola, e bolsa família”. Diego acredita que é necessária uma intervenção para mediar a situação entre os produtores e a comunidade urbana, prática que não é incentivada pelos comerciantes, que detêm o poderio econômico do município.

NOVO PROJETO

Diego e gestores sociais de diferentes partes do país criaram um modelo que pode amenizar o problema da fome em São Gabriel da Cachoeira. Depois de um curso sobre Fé e Política em Brasília, houve a consciência de que precisava ser criado um projeto de resgate e valorização cultural das comunidades do norte do Amazonas.
Denominado Projeto Mawaco – em referência a um instrumento musical indígena feito de bambus – a ideia buscava, a partir das realidades e dificuldades dos jovens e os altos indicies de suicídio juvenil indígena, resgatar a cultura e sobretudo a valorização dos cantos tradicionais.
Porém, houve a percepção de que o buraco era mais embaixo: “Inicialmente começou com a ideia de valorização da cultura mas, diante dos gritos de São Gabriel, percebemos que as mazelas lá são aterrorizantes, e que era necessário fazer alguma coisa concreta”, explica Diego. Por isso, a ideia agora é montar uma cooperativa que faça a mediação entre a troca e venda de alimentos, tanto os que são produzidos nas comunidades, quanto os complementos encontrados na área urbana.
Diego conta que o projeto ainda é incipiente, mas o “pensamento da cooperativa é conseguir dar acesso. Você vai com seus produtos, vende para cooperativa a um preço justo e tem acesso aos produtos que voce não consegue produzir, por um preço mais justo ainda”, explica. “Isso vai amenizar muito a situação da fome e da falta de renda dos povos tradicionais”, salienta o sociólogo.
Mesmo assim, Diego sabe que essa não é a situação ideal, ela representa apenas um passo para mudança: “muitos acham que os indígenas não podem ter dinheiro, que eles tem terras e por isso não precisam ter dinheiro. Mas eles não querem ter dinhiero, o dinheiro só serve como moeda de troca. Eles querem é comida”.
Fonte: Vai da Pé

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