A Copa de 1970, para o brasileiro oprimido por uma ditadura que prendia, torturava e matava nos calabouços da covardia militar, trazia um sofrido dilema político e ético. Torcer ou não torcer para a Seleção?
Até que ponto uma vitória dos Canarinhos iria levar água ao moinho (expressão repetidamente ouvida à época) do regime de farda?
Até que ponto uma vitória dos Canarinhos iria levar água ao moinho (expressão repetidamente ouvida à época) do regime de farda?
Como evitar que aquele presidente sanguinário, que se fazia de bonzinho nas tribunas dos estádios, com o radinho de pilha ao ouvido, tirasse vantagem de uma eventual conquista obtida em campo pelos talentosos operários da bola?
Nos círculos dos que estavam exilados em Paris, onde o aqui subscrito morava, as discussões foram particularmente acirradas. A capital francesa agrupava um considerável contingente de jovens do MR-8 e de tiozinhos do antiquado Partidão. Eram raros os trotskistas, salvo os mais abonados, e mais raros ainda os neomaoístas do PCdoB.
Como era praxe na esquerda, o debate sobre o tema Seleção invariavelmente descambava para um incendiário acerto de contas ideológico, cada facção acusando a outra de fraquejar no combate em prol do verdadeiro socialismo.
No dia (em Paris, na noite) em que o selecionado que fora arquitetado pelo comunista João Saldanha e agora se encontrava sob a vigilância de um staff militar ia estrear no México contra a Tchecoslováquia, ainda não havia sinal algum de consenso entre os expatriados brasileiros.
A tevê francesa foi documentar o dilema existencial na Casa do Brasil da Cidade Universitária, administrada pela embaixada, mas onde, paradoxalmente, encontravam abrigo muitos dos militantes e simpatizantes da esquerda. Estudantes costumavam ser de esquerda, em 1970. Assim como os jornalistas.
A Tchecoslováquia abriu a contagem aos 11 minutos de partida e um discreto alvoroço percorreu parcela da plateia, a qual de imediato se desiludiu ao ver Petras, o loiríssimo goleador tcheco que ali representava uma nação adepta do materialismo dialético, jogar-se de joelhos no gramado e fazer um convicto sinal da cruz.
Que diabo de país comunista era a Tchecoslováquia para exibir ao mundo tal exemplo de carolice? Como se sabe, a Seleção venceu por 4 a 1 e a galera da Casa do Brasil, num entusiasmo quase unânime, rompeu a madrugada festejando, com bandeiras vindas sabe-se lá de onde.
Mas 2018 não é 1970 e é compreensível que a indecisão seja ainda maior. Faz sentido torcer para uma equipe que vai envergar em campo o mesmo fardamento que foi expropriado pelos manifestoches do impeachment?
A dúvida tem menos a ver com o poder institucionalizado pelo golpe, totalmente desmoralizado, e muito mais com uma nação idiotizada pela mídia, pronta para se enlevar com as trombetas cívicas de Galvão Bueno. Será possível comemorar em comunhão com um povaréu infantilizado que aceita passivamente a servidão, o desemprego, a injustiça, em troca de um golzinho de Neymar?
Para alguém que torceu a favor em 1970, chancelar em 2018 a hipocrisia, a burrice e a vulgaridade que passaram a exalar da pátria em chuteiras é missão ironicamente mais dolorida que a da época da ditadura. Em 1970, o povo ainda desabafava no futebol uma alegria asfixiada, mas esperançosa.
Em 2018, o futebol exprime a mediocridade turbulenta de um país que perdeu o rumo – em parte pela cegueira suicida de seu próprio povo. Uma gente sempre disposta a culpar “os políticos”, mas prestes a confirmar de novo, em outubro, os piores pilantras no Parlamento de Brasília.
Há quem compare os événements de mai de 1968 em Paris com os protestos de 2013 no Brasil. Até aceito a ideia de que 2013 aflorou com a mesma espontaneidade, passando por cima das instituições, num desabafo em prol de questões reais e cotidianas. A massa queria opinar e buscava respeito.
Pressentindo a oportunidade sorrateira, a mídia oligárquica e as brigadas da direita sequestraram a agenda de reivindicações legítimas com foco num objetivo único: derrubar o governo Dilma e interromper a hegemonia eleitoral do PT. Com a ajuda do Congresso e do Judiciário iriam chegar lá.
O Brasil teve duas ocasiões de ouro perdidas com a cumplicidade de seus cidadãos. A Copa de 2014 e a Olimpíada do Rio em 2016. São eventos únicos na história de uma nação. A pretexto de que a saúde pública é precária, a educação não funciona, os transportes, a segurança etc., e que haveria superfaturamento nas obras, argumentos de resto verdadeiros, produziu-se um bloqueio emocional generalizado que desaguou no 7 a 1. A saúde pública, a educação, os transportes – o protesto foi inútil, tudo só iria piorar.
O complexo de vira-latas voltou a nos contagiar em 2014. A manchete da Folha de S.Pauloentrou para o anedotário do jornalismo mundial: “Copa começa com futebol em alta e organização em baixa”. O hexa, anunciou-se, estava a caminho.
Parte considerável da imprensa esportiva, cúmplice da cartolagem, deleitava-se com o estilo paizão do técnico Felipão – capaz de transformar craques maduros em bebês chorões. A organização mostrou-se corretíssima. O hexa murchou com uma catástrofe.
As ofensas dirigidas à presidenta da República, puxadas pelos camarotes vips, na abertura da Copa, revelou um Brasil engalanado em verde-amarelo que, sempre derrotado nas urnas, sairia do estádio para tramar o golpe de Estado.
As cornetas barulhentas se juntariam às panelas desafinadas para entoar o réquiem da democracia. As camisas canarinho da CBF estarão de volta em junho, prontas para celebrar, em êxtase coletivo, com os rojões da estupidez, a equipe capitaneada por um conhecido cafajeste.
Em pesquisa do Datafolha, 42% dos entrevistados alegam que têm interesse zero pela Copa que começa em poucos dias. Mesmo se ressalvando que enquetes que envolvem questão de comportamento são invariavelmente falsas, uma vez que os pesquisados costumam dizer o que gostariam de acreditar e não o que de fato fazem ou pensam, trata-se de um expressivo retrato do Brasil humilhado pelo 7 a 1.
Não me incluam nessa estatística. Torcer vai ser difícil. Mas não hei de perder um Egito vs.Uruguai, e menos ainda um Portugal vs. Espanha. Um celeiro de craques vai desfilar aos olhos do mundo. Íntimos da bola, cavalheiros de caráter.
Penso no egípcio Salah. Nos belgas Hazard e De Bruyne. No gajo CR7. Em todo o time da Alemanha – sem ressentimento, por favor. E a França, repleta de jovens virtuoses. Não dá para não ter simpatia pelo Uruguai, pela Colômbia, pelo Peru. E até los hermanos têm meu respeito.
Matérias de paixão como o futebol ficam, porém, a critério do coração de cada um. Quem quiser vestir o figurino corrupto da CBF e dos patos patetas, que se locuplete.
Fonte: A Carta Capital
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