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quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Somos Vulcões

Documentário “#PrimaveraDasMulheres” mapeia o movimento feminista no Brasil e mostra sua importância em momento de embate com forças conservadoras no Congresso 

Em 1895, um artigo na importantíssima revista científica americana Scientific American levantava uma questão relevante à época: mulheres deveriam andar de bicicleta? Ou seria um risco à saúde? O artigo partia do princípio de que mulheres eram constituídas muscularmente distintas dos homens. Seus músculos, por exemplo, permitiam grande habilidade para uso de máquinas de costura. Mas bicicletas demandariam outras habilidades, outra constituição física. A conclusão era a de que bicicletas requeriam movimentos musculares agressivos, alongamento, rapidez nos movimentos das pernas. Nem uma mulher preparada para tal atividade seria capaz de exercê-la sem colocar sua saúde em risco.
Em 1895, um artigo na importantíssima revista científica americana Scientific American levantava uma questão relevante à época: mulheres deveriam andar de bicicleta? Ou seria um risco à saúde?
O artigo partia do princípio de que mulheres eram constituídas muscularmente distintas dos homens. Seus músculos, por exemplo, permitiam grande habilidade para uso de máquinas de costura. Mas bicicletas demandariam outras habilidades, outra constituição física. A conclusão era a de que bicicletas requeriam movimentos musculares agressivos, alongamento, rapidez nos movimentos das pernas. Nem uma mulher preparada para tal atividade seria capaz de exercê-la sem colocar sua saúde em risco. Nunca uma mulher alcançaria, nem com muito treino, o vigor de um homem adulto no guidão. Além de estar se expondo a um grande perigo. 


Caminhamos muito desde que tais artigos figuravam nas páginas das mais respeitadas revistas científicas do mundo. Mas não o suficiente. A noção da inferioridade feminina, da sua incapacidade natural para o desempenho de algumas funções e das suas habilidades igualmente naturais para o desempenho de outras segue entranhada em nossa cultura. A desigualdade de gênero persiste, embora mulheres nunca tenham deixado de insistir em superá-la. Nunca tenham deixado de resistir a ela bravamente. E mais: parece ganhar terreno com rapidez impiedosa no nosso país. 


As nossas casas legislativas trabalham a todo vapor contra os poucos direitos que conquistamos – e jamais plenamente realizados. Na semana passada, caminhou no âmbito da Câmara dos Deputados o PL 4703/98, até então parado na CCJ. O projeto de lei tem como objetivo tornar o aborto crime hediondo. No dia 11 de outubro, o deputado Pastor Eurico (PHS-PE), da Assembleia de Deus, foi designado relator da matéria.


Simultaneamente, segue caminhando na mesma casa a PEC 181/2015, a chamada PEC Cavalo de Troia. Proposta pelo senador Aécio Neves (PSDB-MG), a PEC inicialmente alterava a redação do inciso XVIII do art. 7º da Constituição Federal para estender a licença maternidade em caso de nascimento prematuro. Uma iniciativa que traria benefícios às mulheres. Porém, o parecer do deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP), relator da matéria na comissão especial destinada a apreciar a PEC, traz o que Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional Brasil, chamou apropriadamente de uma “perigosa armadilha escondida entre as boas intenções”. Trata-se de uma proposta de alteração de dois artigos da Constituição com o intuito de estender até o momento da concepção a noção de inviolabilidade da vida. O resultado: ameaça os direitos reprodutivos duramente conquistados pelo movimento de mulheres de interromper uma gravidez decorrente de um estupro, quando o feto não tem nenhuma possibilidade de sobrevida após o nascimento ou nos casos em que a gestação representa risco de vida para a mulher.  


E não para por aí. São inúmeras as iniciativas de nos tolher liberdades. O PL 478/2007, conhecido como Estatuto do Nascituro, aguarda designação de relatoria Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher. Igualmente, a PEC 164/2012, a PEC 58/2011 e a PEC 29/2015, dentre outras, caminham nas comissões do Senado e da Câmara - todos esforços de alterar a Constituição no mesmo sentido: emplacar a ideia de inviolabilidade da vida, nos negar qualquer possibilidade de aborto legal e seguro e transformá-lo em crime hediondo. 


O terremoto conservador que fez tremer as bases da nossa democracia, a assemblage de elites políticas e econômicas que nos deu esse presidente misógino e uma tropa de ministros homens brancos, tudo isso tem se traduzido, para as mulheres, em um backlash – um movimento de reação antifeminista – sem precedentes. 


É nesse momento, de perplexidade diante de tantas ameaças de retrocesso, que vai ao ar no GNT o telefilme documental “#PrimaveraDasMulheres”*, de Antonia Pellegrino e Isabel Nascimento Silva. Uma tentativa de construir uma cartografia do movimento feminista brasileiro. Um esforço de mapear as protagonistas deste movimento diverso e plural sem jamais ceder à lógica do patriarcado: construir lideranças que são essencialmente melhores que suas bases e devem ser, portanto, seguidas. Veneradas. As mulheres em cena estão representando todas as demais. São todas elas. Sozinhas andamos bem, juntas andamos melhor. 


O filme tem o DNA do coletivo #AgoraÉQueSãoElas: deseja ocupar o mainstream com debates feministas. E não podia ganhar o mundo em melhor momento. Ele completa o quebra-cabeça e nos explica por que os direitos das mulheres, a tal "ideologia de gênero", o empoderamento feminino e o feminismo causam tamanho medo nos conservadores. Por que os fazem trabalhar tanto, numa atividade legislativa que segue em ritmo insano. 


A razão é elementar: o feminismo contemporâneo brasileiro é um 2013.  É um maio de 1968. É desobediência. É disrupção. É transgressão. E é potente. Tem força para explodir bolhas, transcender guetos. O feminismo se mostrou capaz de pautar o debate público nacional. Varrer o mainstream. É um movimento por direitos, com agendas contra-majoritárias, mas que consegue chegar na maioria. E fazê-la refletir. 


Não há nenhum brasileiro que não tenha, desde 2015, pensado sobre a desigualdade de modo inédito, se fazendo perguntas que nunca havia feito. Tamanho poder, que o filme registra, jamais passaria despercebido. 


Andar de bicicleta vá lá. Libertar-se das amarras do patriarcado, aí já é demais.  


“#PrimaveraDasMulheres” revela um movimento social vibrante, uma floresta exuberante. Árvores frondosas de troncos grossos que polinizam a terra à sua volta e fazem a sombra necessária para que brotem ao seu redor novas sementes. Acima da terra, vemos plantas distintas, cada uma de uma espécie, dando frutos diferentes. Contudo, no subterrâneo, todas têm em comum raízes profundas entrelaçadas. Enredadas. Erguem-se acima do chão porque estão, no íntimo, atadas. São essas raízes emaranhadas que permitem que esta floresta sobreviva intempéries. Vento, chuva demais ou de menos. PECs, PLs. Retrocessos. Backlashes. “#PrimaveraDasMulheres” busca expor essas raízes imbricadas, mostrar a exuberância dessa floresta e por que ela apavora os conservadores. 


A escritora norte-americana Ursula K. Le Guin uma vez escreveu: "somos vulcões, nós mulheres. Quando entramos em atividade, desce lava quente. E a topografia do poder se transforma". “#PrimaveraDasMulheres” é um filme sobre a lava descendo. Na TV Câmara e a TV Senado vocês podem assistir o medo daqueles que sabem que virarão estátuas de Pompéia quando chegarmos neles.

Fonte: Jornal Nexo

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